‘Uma pedra que achei no meio do mato virou isso’, lembra o paleontólogo William Nava

Poucos nomes estão tão ligados à paleontologia no interior do Brasil quanto o de William Nava. Autodidata e movido pela curiosidade, iniciou suas buscas por fósseis entre as décadas de 1980 e 1990, percorrendo estradas e paredões de Marília. Seu olhar persistente resultou na descoberta do primeiro fóssil de dinossauro da cidade — um osso de titanossauro — em 1993, ano que coincidentemente marcou o lançamento do filme Jurassic Park, impulsionando o interesse público por suas pesquisas.
Ao longo de mais de três décadas, Nava transformou o cenário científico da região. Suas descobertas — que incluem fósseis de dinossauros, crocodilos e aves pré-históricas — colocaram Marília e cidades vizinhas no mapa da paleontologia internacional. Seu trabalho culminou na criação do Museu de Paleontologia de Marília, em 2004, um espaço que nasceu de sua própria coleção particular e do desejo de compartilhar conhecimento com o público.
Mesmo sem formação acadêmica em paleontologia, Nava tornou-se referência, contribuindo com universidades e publicações científicas de prestígio. Em 2024, viu seu nome eternizado na revista Nature, ao batizar uma nova espécie de ave fóssil, a Navaornis, descoberta em Presidente Prudente. O feito não só honra seu legado, como reforça a importância da ciência feita fora dos grandes centros acadêmicos.

Mais do que um pesquisador, William Nava é símbolo de perseverança e paixão. Seu trabalho, apoiado pela família e impulsionado pela curiosidade, fez de Marília um polo de estudos sobre o passado remoto da Terra. E na semana em que se celebra o Dia do Paleontólogo, lembrado neste domingo (15), o Marília Notícia traz uma entrevista com o maior exemplo profissional da cidade.
***
MN – Como surgiu seu interesse pela Paleontologia?
William Nava – Minha família se mudou para Marília no fim dos anos 60. A topografia da cidade, com esses vales e os “buracões”, me chamou a atenção. Meu pai assinava a Folha de S. Paulo, e eu comecei a folhear as enciclopédias antigas. Quando chegava na parte de dinossauros, ficava fascinado. Já na década de 80, trabalhando no Banco Itaú, comecei a vasculhar as rochas da região por curiosidade. Sabia da existência de uma formação geológica chamada “Formação Marília” e fui procurá-la.
MN – O senhor começou de forma autodidata? Qual foi sua primeira grande descoberta?
William Nava – Comecei por curiosidade. Pegava minha moto e ia ver os paredões, as estradas. Em 1993, entre Padre Nóbrega e Rosália, topei com o meu primeiro fóssil de dinossauro. Ele estava exposto no leito da estrada. Percebi uma diferença entre a rocha e o fóssil. Não sabia se era de verdade, mas era comprido e bem delimitado. Fotografei, coletei fragmentos e mandei para um professor do Museu de Paleontologia de Monte Alto e para um geólogo. Os dois confirmaram que era um fóssil.
MN – Como foi a escavação desse primeiro fóssil, já que você não tinha experiência na época?
William Nava – Eu era bancário, mexia com dinheiro na tesouraria, não sabia como escavar. O professor de Monte Alto, Antônio Celso de Arruda Campos, ofereceu-se para vir. Em junho de 1993, ele veio, ficou na minha casa e escavou o fóssil, me ensinando a lidar com a escavação. Era um osso de titanossauro, um dinossauro quadrúpede, pescoçudo e herbívoro, com uns 80 cm de comprimento. Ele me estimulou a continuar procurando, dizendo que eu acharia mais.
MN – Essa descoberta coincidiu com o lançamento do filme Jurassic Park no Brasil. Isso ajudou na divulgação?
William Nava – Totalmente! Foi uma coincidência feliz que ajudou muito a divulgar a descoberta. Saiu na Folha, no Estadão, no Globo, no Jornal Nacional. Foi muito legal. A imprensa ia toda na minha casa para ver o fóssil, porque não existia museu de paleontologia na cidade ainda. Os fósseis ficavam na minha casa.

MN – Como foi essa transição entre o banco e o trabalho com a Paleontologia?
William Nava – Eu tinha sido demitido do banco em 1991 devido à automação. Fiquei dois anos meio parado. Depois da descoberta, que chamou bastante atenção, comecei a trabalhar na Prefeitura, com cargo comissionado até 1996. Essa descoberta, embora fosse só mais um osso para a ciência em um contexto maior, foi importante porque Marília não tinha nenhum registro efetivo de dinossauros, ao contrário de cidades próximas. Por isso, chamou muita atenção. Comecei a me concentrar em encontrar mais fósseis.
MN – Onde mais o senhor encontrou fósseis na região de Marília?
William Nava – Depois do primeiro entre Padre Nóbrega e Rosália, achei fósseis na estradinha do distrito de Dirceu. Em 1994 e 1995, encontrei fósseis de crocodilos da época dos dinossauros no Rio do Peixe, onde escavei por muitos anos e aprimorei minhas técnicas. Pessoas da zona rural que encontravam algo suspeito em rochas me avisavam e eu ia verificar. Isso me ajudou a diferenciar o que era fóssil e o que não era. Também colecionei materiais arqueológicos, como machadinhas indígenas. Fiquei uns nove anos direto no Rio do Peixe, até 2003 e 2004, quando achei material fóssil em Presidente Prudente. Então, larguei um pouco o Rio do Peixe e fui escavar em Prudente, onde estou há 20 anos.
MN – Além de Presidente Prudente, houve outras grandes descobertas?
William Nava – Sim. Em 2009, fui para Rosália e depois para a SP-333, em direção a Júlio Mesquita. Lá, encontrei vários ossos que são do famoso Dino Titã. Larguei Prudente por um tempo e me concentrei ali. Em 2011, entrei em contato com a Universidade de Brasília (UnB) e, entre 2011 e 2014, dedicamos muito esforço à escavação desses ossos. Havia mais de 100 ossos de dinossauro debaixo da colina, o que exigiu uma logística complexa para retirar o material com segurança, usando guindastes e carretas.
MN – A descoberta do Dino Titã foi uma das mais importantes, certo?
William Nava – Sim, foi uma das mais significativas. O professor de Brasília disse que era um titanossauro bem completo, com quase 70% do esqueleto preservado. É provável que ele estivesse inteiro antes da rodovia ser aberta, há 60 anos, e dinamitada, perdendo a cauda. Mas, por outro lado, se a estrada não tivesse sido aberta, ninguém o teria achado. Os ossos ficaram expostos, e eu os vi.

MN – Quando a gente vê um esqueleto de dinossauro em museus, ele são réplicas ou originais?
William Nava – Em museus com mais recursos, eles replicam os ossos em resina para montar um esqueleto idêntico, inclusive com a coloração original do fóssil. Os ossos originais são muito pesados, e muitas vezes não dão encaixe perfeito, porque faltam pedaços que se perderam na fossilização. Essa técnica de replicagem começou nos Estados Unidos no início do século 20. A dificuldade número um é encontrar um dinossauro 100% preservado. Fatores como movimentação de camadas do solo ou a ação de carnívoros que devoravam as carcaças impediram que se encontrasse um dino inteiro ao redor do mundo.
MN – Então, não existe nenhum dinossauro 100% completo encontrado no mundo?
William Nava – Que eu saiba, como paleontólogo, não. Os mais preservados são os chineses e os da Argentina, com 80% a 90% do esqueleto, e alguns da América do Norte. Nosso Dino Titã de Marília tem entre 65% e 70% do esqueleto preservado. O pessoal de Brasília está estudando os ossos originais e fazendo uma réplica em 3D, que depois que o estudo terminar, voltará para Marília. Essa réplica terá 15 metros de comprimento, um pouco maior que a que temos aqui. Ter os ossos originais em mãos é fundamental para essa reconstrução, pois evita a fantasia e permite saber seu comprimento e altura.
MN – Ter um museu em Marília era um sonho?
William Nava – Sim, era um sonho. Comecei as descobertas em 1993, e o museu só foi inaugurado no fim de 2004, 11 anos depois. As primeiras descobertas, incluindo o primeiro fóssil, ficavam em caixas de papelão na minha casa. Não era um ambiente adequado, mas era o que eu tinha. Muitos pesquisadores do Rio de Janeiro, de São Paulo e Brasília, vinham à minha casa para ver os ossos. Eles me diziam para ter um museu. Voltei para a prefeitura em 2002 e comecei a alimentar a ideia.
MN – Como foi a criação do Museu de Paleontologia de Marília?
William Nava – Ao longo de 2004, conversamos com o então prefeito, Abelardo Camarinha. Ele destinou uma sala onde funcionava o museu histórico pedagógico. Em 25 de novembro de 2004, a Secretaria da Cultura inaugurou o Museu de Paleontologia. A notícia saiu no Estadão. As escolas começaram a ligar para visitar. No entanto, o museu nasceu apenas comigo, e eu estava nas escavações, então não tinha quem ficasse ali. Foi um pontapé inicial, mas ainda tímido. Em 2006, banquei do meu bolso uma placa grande para avisar o povo que havia um museu em funcionamento aqui, que foi substituída por um letreiro mais moderno em 2012.
MN – O senhor chegou a cursar jornalismo?
William Nava – Fiz jornalismo na Unimar. Faltou um ano para terminar. Descobri que os jornais escreviam errado sobre minhas descobertas. Em vez de chamarem de ‘descoberta paleontológica’, chamavam de ‘arqueológica’. Quis corrigir isso. Fiz jornalismo para ter essa base e ajudar a divulgar as descobertas corretamente. Também fiz história na Unesp de Assis.

MN – Como foi o evento da extinção dos dinossauros?
William Nava – A era Mesozoica, dos dinossauros, é dividida em Triássico, Jurássico e Cretáceo. Os fósseis do Oeste Paulista são do Cretáceo, entre 90 e 70 milhões de anos. A ciência e a geologia contam que um meteoro caiu na Terra. O ponto do impacto no Golfo do México, na Península de Yucatán, no México, deve ter causado terremotos e tsunamis. O efeito pós-impacto principal foi a poeira que cobriu a atmosfera quase globalmente. Essa poeira é associada a uma camada de irídio em rochas, onde abaixo dela há fósseis de dinossauros e acima não. A poeira teria sufocado os animais, de forma semelhante à forma como as cinzas do vulcão Vesúvio mumificaram Pompeia. As plantas teriam morrido por falta de luz, causando a morte dos herbívoros por fome, e depois dos carnívoros, numa reação em cadeia.
MN – Mas há outras hipóteses para a extinção?
William Nava – Sim. Alguns paleontólogos trabalham com a hipótese de que, independente do meteoro, os dinossauros já estariam em extinção por eventos catastróficos terrestres, como terremotos e vulcanismo, talvez doenças, e o surgimento de mamíferos que se adaptaram melhor. Mudanças de habitat que tornaram regiões úmidas repentinamente secas também teriam contribuído para a falta de alimento para grandes herbívoros. O meteoro seria a ‘gota final’.
MN – Tartarugas, crocodilos, insetos e aves sobreviveram?
William Nava – É interessante, eles sobreviveram. Um grupo de aves, que deram origem às aves atuais como galinhas, patos e marrecos, já existiam na época dos dinossauros e conseguiram sobreviver. As aves de hoje, desde um beija-flor a um avestruz, são dinossauros modificados, o único grupo de vertebrados que descende diretamente dos pequenos dinossauros carnívoros. O avestruz e a seriema, por exemplo, ainda lembram esses dinossauros. Esse conhecimento científico, com base nos fósseis, nos ajuda a entender a adaptação dos organismos e a complexidade da vida na Terra.
MN – O museu passou por uma grande reforma recentemente. Como isso impactou o espaço?
William Nava – Sim, na transição de 2016 e 2017, a administração decidiu reformar. O museu ficou fechado por quase cinco anos, de 2017 a 2022. Mas eu não o fechei 100%. Entre 2017 e 2022, por causa dos fósseis de aves, recebi pesquisadores da Argentina e dos Estados Unidos. Adaptei a primeira sala do museu para um laboratório improvisado. A reforma foi concluída com verba do estado, obtida em 2019, através do status de Marília como Município de Interesse Turístico (MIT). Isso permitiu melhorias, novo mobiliário, réplicas de dinossauros – que o público sempre pedia –, e aquisições como óculos 3D de realidade virtual e um totem interativo. Deu uma cara nova e era muito necessário.
MN – O senhor completou recentemente 71 anos, sendo 32 anos dedicados à paleontologia. O apoio da família foi essencial?
William Nava – Sim. Fiz 71 anos em maio. Houve uma certa resistência no início, porque as circunstâncias nos forçam a ganhar dinheiro, e eu muitas vezes estava quebrando pedra sem ganhar nada. Devo muito à minha esposa, Francisca, que me sustentou durante os anos em que fiquei sem emprego formal, mas descobrindo fósseis. Ela acreditou. Hoje, meu trabalho é compartilhar esse conhecimento através do museu, porque quanto mais pessoas souberem da importância, mais serão guardiãs da história e da paleontologia.
MN – Suas descobertas abriram portas e possibilitaram muitas colaborações internacionais?
William Nava – Com certeza. Todos os pesquisadores que vieram aqui para Marília, que estão no artigo da Nature, moram nos Estados Unidos, em Los Angeles, e em Buenos Aires, na Argentina. Não fosse por essas descobertas, eles não viriam para cá, nem conheceriam Marília.

MN – Uma publicação na revista Nature deve ser algo difícil. Como foi conseguir emplacar uma descoberta em uma revista tão prestigiada?
William Nava – Foi uma jornada longa. Conseguimos essa publicação por causa de um fóssil de uma ave pré-histórica que encontrei em Presidente Prudente há dez anos. Ele foi estudado em parceria com o pessoal do Museu de Los Angeles, da Argentina, da UFRJ e da Universidade de Brasília. A ave foi descrita nesse número da revista em novembro do ano passado. Entrar na Nature é algo muito difícil, muito sério, e o artigo está todo em inglês. Meu nome e o nome da ave, Navaornis, em homenagem ao meu sobrenome, estão lá.
MN – E qual a importância dessa ave, a Navaornis, para a ciência?
William Nava – De acordo com os estudos dos especialistas em material de aves fósseis dos Estados Unidos e da Europa, a preservação desse crânio – que eu preparei em 2015 – é excepcional. Ele apresenta características muito interessantes porque o transfere para um estágio bem primitivo de evolução, mas também apresenta características de aves modernas. Por isso, eles consideram que seria um ‘elo perdido’, uma ligação entre a ave mais primitiva conhecida e as aves de hoje.
MN – Como foi o processo para a publicação?
William Nava – Desde 2022 e 2023 eles tentaram emplacar essa descoberta na Nature. Não é fácil. Em 2024, submeteram para a revista, passaram pelo parecer dos analistas, que pediram correções. É uma revista muito sistemática. Em outubro, liberaram, e em novembro o artigo saiu em nível mundial. Foi muito legal.
MN – E para conseguir um exemplar físico da revista aqui no Brasil, já que não tem para vender?
William Nava – Foi uma saga! É muito difícil conseguir. Um amigo meu da Argentina, que também é paleontólogo e está no artigo, conseguiu um exemplar com um amigo dele da Alemanha, que me mandou. Veio de Berlim e chegou no fim de maio.
MN – E a arte da capa da Nature?
William Nava – A paleoarte na capa, esses passarinhos replicados, foi feita por uma brasileira, a Júlia de Oliveira. Ela é uma paleoartista e ficou muito feliz em ver o desenho dela na capa da Nature. Depois que os pesquisadores estudam o fóssil, eles chamam um paleoartista para, olhando o esqueleto, imaginar como o animal era em vida, e ela esboçou isso. É super interessante.
MN – Como se sente sabendo que Marília hoje é conhecida como a Terra dos Dinossauros, e que isso surgiu das suas descobertas?
William Nava – Super feliz! Tudo que gira em torno do dinossauro em Marília foi graças às minhas descobertas de fósseis. O museu não existiria sem eles. Saber que meu nome estará eternizado em Marília, e no Brasil, é muito gratificante. Não havia outro paleontólogo aqui, antes de mim, revelando isso. Sinto que fui escolhido para essa missão, não é para mim, mas para a história, para a cidade, para o Brasil e para a humanidade, especialmente com a publicação na revista Nature. Uma pedra que achei no meio do mato virou isso. Isso enche o ego, mas também me faz gostar mais e mais do que faço. Sou apaixonado por paleontologia.