A goleada da Coreia do Sul
Em meados da década de 1950, a tão tímida e paupérrima península da Coreia havia acabado de se dividir em duas partes, a Norte e a Sul. As sequelas do divórcio geopolítico não poderiam ser mais traumáticas, especialmente por causa da morte de civis e militares na escala de milhões, seguida de sucessivas crises econômicas e de abastecimento que preencheram várias das décadas do pós-guerra.
Oficialmente falando, inclusive, esta guerra ainda não terminou. Vira e mexe um lado hostiliza o outro, de maneira ideológica, econômica ou militarmente. Ainda hoje, confundir os pontos cardeais da península está para um absurdo tão grotesco como fazer a dancinha do pombo de uniforme vermelho. Nesta parte do mundo, Norte e Sul não se bicam de jeito nenhum.
O mais curioso é que, para a parte Sul da península, o imediato futuro do pós-guerra anunciava-se ainda menos alvissareiro, se de um lado o país estava todo espremido pela falta de recursos naturais e fontes de energia, haveria ainda a complicada cena política de violentas ditaduras que perdurariam por quase 30 anos.
Neste contexto, justamente, que um modelo centralizado de Estado deteve até o controle da quantidade de alimentos por pessoa e, não raro, também da quantidade de alimento para as crianças, comumente subnutridas nas escolas apenas com leite em pó, doado pelos EUA e outros países ocidentais que comungavam da tosca tentativa de purificação moral com o oriente, chamada humanitária, após quatro séculos de colonialismos pelos quatro hemisférios do mundo.
Por essas e por outras, olhando de viés a história do último meio século, que nem os mais desconstruídos gurus da Terra ousariam supor que a partir deste cenário desastrado nasceria, em tão pouco tempo, uma potência econômica tão profícua nos campos informacional, tecnológico e automobilístico, e tão péssima no campo de futebol, chamada Coreia do Sul.
Mas, é a Samsung que está na vida de bilhões de pessoas direta ou indiretamente. O HB20, da Hyundai, é o carro mais vendido do Brasil há vários anos, e pelas projeções continuará sendo. A LG é quem exporta em amplíssima escala, para quem quiser e der conta de pagar, aqueles monitores de LED que quase nos revelam uma nova dimensão da categoria espaço. Que goleada, econômica.
Os sul-coreanos operaram um milagre social, se é verdadeiro reconhecer que em um intervalo tão curto de tempo alçaram este voo, que partiu do estigma da miséria e aterrissou no panteão sagrado dos poucos países do mundo que produzem riqueza em profusão. Graças a um modelo desenvolvimentista que mesclou ingredientes do típico liberalismo ocidental, como facilitação tributária para grandes conglomerados monopolistas, combinado às melhores práticas da social-democracia, que não deixa a peteca da educação cair em nome de recuperar empresas ou bancos que por seu demérito falem, a Coreia do Sul é dos pontos mais luminosos que existem no mundo.
Os próximos desafios para a Coreia do Sul é revitalizar seu modelo para gerar mais iniciativas privadas jovens (ou startups), olhar com mais rigor para os casos flagrantes de nepotismos que existem entre as maiores empresas e o governo, e cuidar da saúde mental de toda uma juventude que, quando não adere bem às metas quase impossíveis das instituições, cometem suicídio diante do fardo insuportável da sensação de desonra que um Coreano, e orientais em geral, sentem sobre as costas. Desafios esses que, se comparados à dificuldade de ganhar um jogo de futebol, podem ser elevados à enésima potência.
De resto, tudo vai de vento em popa para a Coreia e não precisa mexer em quase nada. Talvez, até no futebol já está bom do jeito que está. Aquela seleção de uniforme vermelho vestindo homens de pouca estatura foi gigante, na raça que eles deram em campo e, sobretudo, na demonstração de elegância do pós-jogo, quando entraram no vestiário da Seleção Brasileira para cumprimentar nosso time um a um. Mesmo os quatro belíssimos gols do Brasil não deram conta de corroer a fibra moral daqueles coreanos, que receberam uma bela educação pública e integral desde a tenra infância.
No rompante de estarmos cometendo um exagero, de interpretar que a derrota nem doeu para a Coreia, mesmo avaliando tudo o que eles já passaram ou tudo o que já conseguiram enquanto nação próspera, vamos só ver se na próxima vez a gente conseguirá gozar de novo de uma vitória, coreografada com dancinhas lúdicas, entre as quatro linhas, de uma arena de Taekwondo. Daí, o buraco é bem mais embaixo, é do outro lado do mundo.