Marília tem de 14 a 18 doadores de sangue raro e dois de sangue raríssimo

O biomédico David Sebastião Lopes Nevoa Junior atua no Hemocentro de Marília desde 2002, com grande experiência na área de imuno-hematologia. Formado pela Universidade de Marília (Unimar), o profissional também realizou especialização na Unesp de Botucatu e acumulou experiência em laboratórios clínicos e bancos de sangue, antes de ingressar na unidade local por meio de concurso público.
Ao longo de sua trajetória, acompanhou avanços tecnológicos que transformaram a hemoterapia, especialmente com a introdução da biologia molecular, permitindo a identificação mais precisa dos grupos sanguíneos. Atualmente, existem 44 grupos sanguíneos e mais de 350 tipos, sendo o sistema ABO o mais conhecido.
Contudo, pacientes que necessitam de múltiplas transfusões podem desenvolver anticorpos que tornam a compatibilidade mais complexa, exigindo uma investigação detalhada para encontrar doadores compatíveis.
Isso aconteceu recentemente, quando um garoto de apenas sete anos precisou de doação de um sangue do tipo U, raríssimo. Um doador foi encontrado em Marília, mas as outras duas bolsas de sangue vieram do Distrito Federal e do Ceará.
David Sebastião Lopes Nevoa Junior atendeu a equipe do Marília Notícia, trouxe importantes informações sobre a doação de sangue e, principalmente, sobre a busca ininterrupta por pessoas com sangues raros.
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MN – O senhor atua há quanto tempo no Hemocentro de Marília?
David – São 23 anos. Saí da Unimar e fui fazer uma das minhas especializações. Depois, eu atuei um período em laboratório clínico. Aí, em torno de 2000, eu retornei à hemoterapia, ao Banco de Sangue, na região de Limeira e Americana. Trabalhei na Santa Casa de Limeira e Americana, que era uma agência. E depois eu passei em concurso para cá. Desde então, atuo aqui no laboratório de imuno-hematologia do Hemocentro de Marília.
MN – Desde que começou na área, mudou muito?
David – Mudou sim. Com as inovações tecnológicas, conseguimos caracterizar grupos sanguíneos. As próprias técnicas empregadas hoje. Uma ferramenta atualmente muito importante, que na época não era tão acessível, é a biologia molecular. A gente que trabalha com imuno-hematologia (que é o estudo dos antígenos presentes nos glóbulos vermelhos ou eritrócitos, que são as células vermelhas do sangue), e que eu atuo com imuno-hematologia eritrocitária (hemácias).

MN – O que é isso?
David – Estudamos os grupos sanguíneos de células vermelhas, o sangue. Aí existe a imuno-hematologia plaquetária (que estuda todo o aspecto genético, sorológico, bioquímico e molecular dos constituintes sanguíneos) e as células de transplante. A nossa área de estudo são as células eritrocitárias, células vermelhas do sangue.
MN – Como são divididos os grupos sanguíneos?
David – Tudo começou com a descoberta do ABO, do RH, depois vários grupos sanguíneos, mas alguns grupos sanguíneos a gente não conseguia caracterizá-los. Com a vinda de várias tecnologias, entre elas, a biologia molecular, o estudo de DNA, a gente conseguiu descobrir muitos grupos sanguíneos novos. Além dos que já tínhamos.
MN – Como funciona?
David – Existe um grupo sanguíneo que todo mundo conhece. É o grupo sanguíneo ABO, que é formado pelo A, pelo B, pelo AB e pelo O. Esse grupo sanguíneo tem quatro tipos de sangue. O RH, positivo e negativo, é outro grupo sanguíneo, só que a gente foi descobrir que dentro do RH existem outros fenótipos. São 44 grupos sanguíneos e mais de 350 tipos, mas o mais importante é o ABO, que aprendemos na época da escola.
MN – Existem pacientes que precisam de uma pesquisa mais apurada para compatibilidade de sangue?
David – Alguns pacientes têm histórico de necessidade de receber muitas transfusões. Alguns acabam criando anticorpos contra algum sistema de grupos sanguíneos. Por exemplo, um paciente portador de anemia falciforme é um paciente que precisa de muitas transfusões de sangue para se manter vivo. Esse paciente tem sangue A positivo. Ele recebe A positivo, mas você vai fazer um teste de compatibilidade, que é obrigatório, e você vai ver que um A positivo não é mais compatível para ele.
MN – Por que?
David – É quando entra a imuno-hematologia. Se um A positivo é para servir para um A positivo. Por que que não tá servindo? O sangue está incompatível? Como aquele paciente teve um contato, muitas vezes, com as transfusões sanguíneas, infelizmente ele criou alguma defesa, algum tipo de anticorpo ou uma proteína específica de grupo sanguíneo. Dali para frente, ele tem que receber um sangue mais específico, para evitar alguns tipos de reações. Você vai ter que fazer uma investigação mais fina para achar sangue para esse receptor. Dependendo do que ele cria de anticorpo, existem alguns tipos que são mais difíceis de você encontrar. A gente chama isso de procura de fenótipo.

MN – O que é o fenótipo?
David – O grupo sanguíneo é um fenótipo. Nós temos o nosso DNA, que é o gene. E o nosso fenótipo é a expressão do gene. Quem tem o olho verde conta com um gene para o olho verde. O meu fenótipo é o olho verde. Eu tenho o gene que eu sou A. O meu fenótipo é A. É isso que a gente chama de fenótipos. Então a gente começa a fazer uma fenotipagem em alguma população de doadores, essa fenotipagem um pouco mais estendida, um pouco mais apurada, são procedimentos mais caros, e precisa de um tempo. É necessário um tempo maior para você procurar esses doadores para suprir a demanda desses pacientes que precisam desse sangue mais difícil de encontrar. Agora, você pode ter um receptor de grupo sanguíneo que é um sangue raro.
MN – O que é um sangue raro?
David – É aquele sangue que é classificado que você precisa de mil doações para achar um. E tem um raríssimo, que você precisa achar um entre 10 mil e 100 mil doadores. Um receptor pode ser O positivo, mas ele tem uma particularidade que ele se torna raro. Ele foi recebendo várias transfusões e ali ele criou algum anticorpo. Você vai investigar esse anticorpo e descobre que ele é um sangue raro.
MN – Como atender esse público?
David – Você tem instrumentos hoje para desenvolver. Os hemocentros trabalham com isso. Existe um banco de sangue raro para isso. E esse banco de sangue raro foi desenvolvido. É um projeto da Coordenação-Geral do Sangue e Hemoderivados.
MN – Quando tudo isso começou?
David – A gente já fazia isso antes de 2014, mas não tinha nenhum projeto efetivo. Em 2014, com a Copa do Mundo, tinha que ter um projeto, porque vinham doadores de fora. Talvez o sangue raro para nós é um sangue que é comum lá fora. Aqui o sangue principal é o O, mas em outros países não necessariamente. Por exemplo, o sangue B é muito frequente na população japonesa e para nós não é tão comum. Existem algumas particularidades que são mais europeias, algumas particularidades que são africanas e outras asiáticas, mas no Brasil existe muita miscigenação racial, muita mistura. Em 2014 foi feito um cadastro, que é coordenado pelo Ministério da Saúde e pelo Hemocentro de Campinas.

MN – Como ele funciona?
David – Todos os hemocentros, no final do ano, enviam um boletim, onde a gente informa quais sangues raros que a gente tem aqui. Existe uma planilha de sangues raros. A gente manda um e-mail. Todos os hemocentros do Brasil, vinculados ao SUS, abastecem esse banco de sangue raro que é coordenado pela Unicamp.
MN – Marília conta com sangues raros?
David – Aqui em Marília eu tenho 14 ou 18 doadores de sangue raro. Quanto maior o Hemocentro e o número de doadores maior a chance de encontrar um sangue raro, mas os menores, com menos doadores, também encontram. Quando tenho uma demanda, com um paciente que necessita de um sangue raro e não tem ela no cadastro interno, eu recorro a esse banco de sangue. Colocamos no sistema, aparecem três ou quatro hemocentros que podem ajudá-lo e a gente faz esse contato com esses hemocentros.
MN – Quando o sangue raro é utilizado?
David – O sangue raro a gente tem que ter muito cuidado com ele porque, se eu gastar indiscriminadamente, pode faltar para outro. Se o paciente vai fazer uma cirurgia, uma coisa mais grave, ele vai precisar desse sangue, vai precisar dessa transfusão, a gente liga nos hemocentros, que colhem esse sangue. O próprio Ministério da Saúde faz o transporte e entrega dessa bolsa aqui em Marília.
MN – Existe um tempo para isso? Como funciona?
David – Nós tivemos um paciente, esse mês agora, que necessitava de uma transfusão. O paciente era uma criança e eu só tinha um doador aqui, mas ela precisava de três bolsas e eu não tinha como atendê-la. Eu entrei em contato com o Cadastro de Sangue Raro de Campinas. Eles me deram os serviços que poderiam me ajudar. Nós conseguimos uma bolsa vinda de Brasília (DF) e uma bolsa vinda do Ceará. A criança fez a transfusão e está bem.
MN – Normalmente esse sangue raro já está estocado?
David – Uma parece que já tinha até no estoque, a outra, em Brasília, entrou em contato. O meu aqui também eu não tinha, só tem um doador desse que servia para ela. Eu entrei em contato.

MN – Costuma ser mais fácil encontrar compatibilidade na própria família?
David – A chance maior é da família, mas infelizmente não foi o caso dessa criança. Uma bolsa veio de Brasília, teve um doador que gente convocou aqui, que ele é cadastrado e veio doar, sendo que a terceira bolsa veio do Ceará, que estava em estoque. Eu liguei numa segunda-feira de manhã e na terça-feira, às 16h, a bolsa estava no Hemocentro de Marília.
MN – Como fazem em casos de acidentes e cirurgias de emergência?
David – Nesse caso não tem como. Você transfunde o sangue que a pessoa precisa, tipo o sangue O, mas se ele der reação, você tenta controlar. A gente sempre vai pensar no melhor para o paciente. O que é o melhor para ele? É transfundir uma bolsa compatível, mais compatível possível, para ele não ter uma reação. É por isso que a gente faz essa busca. Só que o estado de emergência não tem como. Não dá tempo. Então existem outros protocolos para atender esse tipo de paciente.
MN – Como é feita a procura dos sangues raros?
David – Existe um critério. Você vê se essa pessoa, por exemplo, tem pelo menos três doações. Porque você tem, às vezes, doador de primeira vez, que veio doar para um amigo que está precisando, mas passou mal e não voltou mais. Ele pode ser um sangue raro, mas você não convence ele a voltar mais. Aquele doador que já veio três vezes aqui no Hemocentro, é um doador já mais tranquilo para gente. Se convocar, ele vai vir nos ajudar.
MN – O que fazem quando encontram um doador de sangue raro?
David – Quando a gente acha um doador de sangue raro e conversa com ele. Nós temos dois doadores aqui, até um raríssimo. Esses doadores, eu conversando com eles, eles praticamente não doam sangue. Eles só doam sangue quando a gente convoca. O doador de sangue raro é esse que a gente procura conforme a nossa demanda.
MN – Como você vê esse trabalho realizado atualmente?
David – Eu vejo que o Cadastro-Geral de Sangue Raro é muito importante. Ele funciona. O SUS, a coordenação, o Ministério da Saúde e o pessoal do Hemocentro de Campinas estão de parabéns. Esse mês recebemos ajuda, mas não foi a primeira vez. Já recebemos ajuda de outros sangues e já mandamos também. Até mesmo antes do projeto, a gente mandou esse sangue para a Bahia. Depois de 2014 ficou um protocolo mais definido.
MN – Como estão as doações de sangue atualmente?
David – A gente vê que as doações hoje no Brasil estão caindo. Então está cada vez mais difícil encontrar um doador de sangue raro. Porque é proporcional. Quanto mais doação você tem maior a chance de encontrar um doador raro. Esses doadores de sangue raro hoje podem se tornar amanhã um paciente. Por isso que a gente sempre estar nesta busca constante.