‘Não basta recriar um coração, ele precisa bater como um verdadeiro’, diz professora

A bioimpressão 3D está transformando a medicina regenerativa ao possibilitar a criação de tecidos e órgãos sob medida. Essa tecnologia inovadora permite a reprodução de estruturas biológicas camada por camada, utilizando células vivas e biomateriais. O avanço promete revolucionar o transplante de órgãos, reduzindo a dependência de doadores e minimizando o risco de rejeição.
Entre as aplicações mais promissoras da bioimpressão 3D estão a reconstrução de tecidos danificados, a criação de próteses personalizadas e até a produção de órgãos artificiais funcionais. Um exemplo recente desse progresso foi o primeiro transplante bem-sucedido de uma traqueia impressa em 3D na Coreia do Sul, oferecendo novas perspectivas para pacientes com estenose traqueal, condição que compromete a respiração. Além disso, o primeiro transplante de um rim de porco para um humano representa um passo importante na busca por alternativas viáveis à escassez de órgãos.
Marília faz parte desse cenário de inovação. A Universidade de Marília (Unimar) já conta e agora está implantando uma bioimpressora em seu avançado Laboratório de Pesquisa em Medicina Regenerativa, coordenado pela professora doutora Maria Angélica Miglino. O espaço já se destaca pelo desenvolvimento de técnicas como a descelularização de tecidos, que viabiliza o uso de órgãos de doadores falecidos para transplantes, ampliando a disponibilidade de órgãos e reduzindo desafios éticos.

Em entrevista ao Marília Notícia, a professora Maria Angélica explicou o trabalho que está sendo desenvolvido e os processos que antecedem a utilização da bioimpressora. A expectativa é que a nova tecnologia amplie as possibilidades de pesquisa e aplicações médicas na cidade, colocando Marília no mapa da inovação em medicina regenerativa.
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MN – Professora, para entender a chegada da bioimpressora, é importante conhecer o trabalho anterior do laboratório. Como ele funciona?
Maria Angélica Miglino – Nós temos aqui um conjunto de dois laboratórios, um que é uma área menos limpa e o outro que é uma área mais limpa, onde fica a bioimpressora. O objetivo é preparar material dentro da técnica que chamamos de engenharia de tecidos e órgãos. Essa técnica é fundamental para uma área chamada medicina regenerativa, que veio para substituir, com muita categoria, os transplantes.
MN – Como a medicina regenerativa se diferencia dos transplantes tradicionais?
Maria Angélica Miglino – Nos transplantes convencionais, há uma fila enorme de candidatos a órgãos, como córnea, fígado, coração e pulmão. Além disso, quando um paciente recebe um órgão transplantado, ele precisa tomar imunossupressores pelo resto da vida para evitar rejeição. Já na medicina regenerativa, trabalhamos para fabricar tecidos e órgãos compatíveis com o próprio paciente, reduzindo esses riscos.
MN – Como ocorre esse processo de fabricação de tecidos e órgãos?
Maria Angélica Miglino – Meu projeto chama-se Fábrica de Tecidos e Órgãos. O que fazemos é pegar um órgão, como um coração ou um testículo, e remover todas as células através de um processo chamado decelularização. Isso é feito lavando o órgão com uma série de detergentes, removendo as células e deixando apenas a matriz extracelular, que é a estrutura do órgão. Essa matriz pode ser recelularizada com células do próprio paciente, evitando rejeição.
MN – Esse processo é semelhante ao uso de próteses?
Maria Angélica Miglino – Sim, mas com diferenças. Quando um dentista faz um implante dentário, ele usa um material de titânio, não biológico. Já o que produzimos é biológico. O que propus foi juntar os dois tipos para construir órgãos e tecidos para transplantes.

MN – O que a bioimpressora acrescenta a esse trabalho?
Maria Angélica Miglino – A bioimpressão é a próxima etapa deste processo. Antes de chegarmos à bioimpressora, precisamos entender como criar tecidos compatíveis. A bioimpressora nos permitirá imprimir estruturas biológicas de forma mais precisa e controlada, com camadas de células organizadas de maneira muito mais semelhante ao que ocorre na natureza.
MN – Poderia nos dar exemplos dos resultados obtidos no laboratório?
Maria Angélica Miglino – Um exemplo é o caso da Pirulita, uma cachorrinha que nasceu com fenda palatina. Ela não conseguia se alimentar corretamente, pois o leite vazava para a cavidade nasal. Usamos um pedaço de pele descelularizada e suturamos no local. Hoje, ela está completamente curada. Outro exemplo foi um cachorro que teve um grande tumor retirado, deixando uma cicatriz imensa. Aplicamos um curativo biológico de pele descelularizada e, em 50 dias, ele já tinha até pelo no local.
MN – Esse tipo de pesquisa também pode ser aplicado em humanos?
Maria Angélica Miglino – Sim. Existem experimentos com fígados, pâncreas e traqueias, mostrando que é possível decelularizar esses órgãos e depois recelularizá-los com células do próprio paciente. Isso abre caminho para o desenvolvimento de órgãos bioimpressos no futuro.
MN – O que ainda falta para que essa tecnologia se torne realidade no dia a dia da medicina?
Maria Angélica Miglino – Precisamos aperfeiçoar os processos de recelularização e garantir que os órgãos impressos tenham funcionalidade total. Além disso, há desafios regulatórios e éticos a serem superados. Mas estamos avançando e acreditamos que, no futuro, a bioimpressão será uma solução viável para muitos pacientes.
MN – Como o Laboratório de Medicina Regenerativa da Unimar está contribuindo para esse avanço?
Maria Angélica Miglino – Estamos desenvolvendo pesquisa de ponta e preparando profissionais para atuar nessa área. Nossa infraestrutura e parcerias nos permitem avançar rapidamente na construção de tecidos e órgãos bioimpressos. O futuro da medicina regenerativa está apenas começando, e a Unimar está na vanguarda desse movimento.
MN – Como funciona o processo de impressão?
Maria Angélica Miglino – Primeiro, calibramos a impressora. Testamos para ver se tudo está funcionando corretamente antes de usarmos a biotinta. Depois, passamos a imprimir pequenas estruturas e, gradativamente, avançamos para formatos mais complexos.

MN – Você está na Unimar há quanto tempo?
Maria Angélica Miglino – Cheguei há menos de um ano. Passei 36 anos na USP e 10 anos na Unesp, em Jaboticabal. Agora estou estruturando tudo de novo aqui. Tive que reformar a sala, deixar o ambiente adequado para a impressora e iniciar a calibração. Nada acontece de um dia para o outro, é um trabalho meticuloso.
MN – Você estudou várias impressoras antes de escolher a que foi adquirida pela Unimar?
Maria Angélica Miglino – Sim. Pesquisei modelos em várias universidades e empresas, desde as mais compactas até as mais robustas. Acabamos optando por um modelo desenvolvido por um pesquisador brasileiro que hoje está na Suíça.
MN – Quem tem acesso a esse laboratório?
Maria Angélica Miglino – A pós-graduação, incluindo as áreas de Odontologia, Veterinária, Medicina e Biomedicina. A impressão 3D é um campo caro e avançado, por isso ainda não está disponível na graduação. Um dos meus alunos, o Matheus, está imprimindo uma tartaruga para fins educativos, permitindo que as escolas tenham acesso a réplicas anatômicas detalhadas.
MN – Já fizeram outros experimentos e estudos?
Maria Angélica Miglino – Minha aluna Tamires misturou materiais naturais e sintéticos, como óxido de grafeno para engenharia de tecidos. Ela testou o material sob a pele e viu que não havia rejeição. Ela queria reparar defeitos ósseos na mandíbula de cabras. Criou uma estrutura usando grafeno, placenta descelularizada e células-tronco. O transplante gerou uma resposta inflamatória temporária, mas mostrou ser viável para futuras aplicações. A gente viu que formou osso, reconstituiu a mandíbula da cabra. Esse é um passo muito importante para a medicina regenerativa.
MN – Você acredita que em breve será possível imprimir órgãos humanos para transplante?
Maria Angélica Miglino – Não tenho esse foco no momento, mas já foram feitos transplantes de outros tecidos, como mandíbulas. O avanço está acontecendo, e acredito que, com mais pesquisas, órgãos completos serão uma realidade acessível no futuro.

MN – Você citou o grafeno. Qual a vantagem desse material?
Maria Angélica Miglino – O grafeno é um material mais flexível que o titânio, que já está caindo em desuso. Ele pode ser usado em pó ou impresso no formato desejado.
MN – A bioimpressão será o futuro dos transplantes?
Maria Angélica Miglino – Acredito que sim. Podemos evitar rejeições e problemas éticos ao utilizar células do próprio paciente para regenerar órgãos.
MN – Isso é algo que ainda vai demorar muito para acontecer?
Maria Angélica Miglino – O mundo inteiro está investindo nisso. Em 2022, foram US$ 55 bilhões só nessa técnica. Precisamos aperfeiçoar os processos, e a inteligência artificial pode ajudar. Realmente a gente está vendo perspectiva de crescimento.
MN – Quais são os principais desafios?
Maria Angélica Miglino – O organismo é uma orquestra complexa. As células precisam interagir corretamente para que o órgão funcione. Não basta recriar um coração, ele precisa bater como um verdadeiro. A bioimpressão é um caminho promissor. Só que a regeneração depende de uma organização, depende de fatores que a gente muitas vezes não conhece. Ele tem que ser reconstruído, não só anatomicamente, ele tem que ser reconstruído funcionalmente para dar conta do processo.
MN – Você acredita que haverá um avanço rápido nessa área?
Maria Angélica Miglino – Vaso é fácil. Pele e esôfago já fizeram. Isso tudo funcionou. Traqueia já fizeram, mas assim, quando você pega órgãos-chave como rim ou fígado, agora que eles estão começando a decelularizar. Já imprimiram um coração e o paciente viveu três dias após o transplante. É um primeiro passo. A ciência, graças a Deus, evolui muito rapidamente. Eu acho que nós estamos dando um chute inicial e acho que a gente tem muito o que trabalhar. Eu não vou estar aqui para ver, mas eu tenho fé em Deus que essas coisas vão acontecer.