O valor da utopia
Na origem toda palavra é um neologismo, uma invenção, que como todas as coisas inventadas pode virar ruptura ou tornar-se permanência. Do ponto de vista das palavras de escopo mais existencial, utopia parece ser a melhor, popularmente eleita como preferida na cultura brasileira.
De tempos em tempos está na boca do povo, seja para associá-la à corriqueira prática onírica de sonhar ou, mesmo, a um esforço de – a partir dela – fazer certa depreciação dos que anseiam um mundo diferente. Ser utópico entre brasileiros não é positivo ou negativo, depende muito do momento, há uma incrível plasticidade no uso e no significado da palavra.
Porém, à rigor, utopia tem na realidade um apelo político muito forte, combativo, militante, que surgiu para dar título a obra do humanista Thomas More (1478-1535), conselheiro do Rei Henrique VIII e jurista inglês. Seu texto é convencionalmente retomado como o mais subversivo legado do pensamento ocidental século XVI, ao passo que mais tarde Marx e Engels incluíram o nome de More entre as figuras fundadoras do comunismo na Inglaterra.
Publicado no ano de 1516 o livro Utopia é, afinal, uma história fantástica que transcorre numa ilha de ficção onde não há propriedade privada, porque todos os bens são públicos. Onde todos se alimentam bem e a riqueza é distribuída em porções equânimes. Lugar onde dinheiro não existe e, portanto, não é utilizado, enquanto que as reservas de ouro que guardam o lastro econômico é matéria-prima para fazer os penicos e os mictórios. Os trabalhos mais penosos no campo são alternados em turnos sazonais e democráticos, e são apenas seis horas de atividades laborais por dia, entremeadas por uma longa sesta. Há ainda grande prazer e estímulo para que os habitantes se dediquem em suas horas livres às atividades intelectuais. Os dirigentes, são necessariamente pessoas muito cultas e, nesse sentido, similar à República de Platão.
A Utopia de Thomas More tinha uma grande inclinação pela cultura clássica, especialmente grega, atrelada a uma admiração curiosa pelo exótico Novo Mundo, numa mistura que revelaria o anseio incontido por uma verdadeira república que pudesse oferecer segurança a todos, independente da sua condição. Há cinco séculos atrás, este livro trouxe a crítica explícita de um autor célebre aos países do ocidente europeu que, imbuídos com preceitos civilizatórios de uma noção presunçosa de superioridade cultural, passaram a destruir culturas e aniquilar etnias mundo afora, na África e na América sobretudo, em longos processos de colonização e comércio atlântico. Não muito mais tarde, em julho de 1535, More foi tragicamente condenado à morte e decapitado, julgado como traidor após desaprovar as ações de Henrique VIII com relação à supremacia da Monarquia sobre a Igreja.
O perigo de escrever e pensar com liberdade não é uma coisa só do nosso tempo. Porém, ironicamente, quatro séculos depois Thomas More foi canonizado pelo Papa Pio XI e do seu legado, além da atual santidade, e da diluição da palavra utopia no cotidiano da fala comum, parece que o mais importante é que com o tempo a Utopia de More será libertada de um raso utopismo. Ou, melhor dizendo, que nós consigamos criar um lugar de interpretação do tempo pensando no futuro como um sonho utopicamente bom.
Utopia é o direito de imaginarmos o que não temos para, quiçá, evoluirmos. Há esperança!