Movimento Delas: feminismo em Marília
Lembro com bastante clareza da primeira vez que eu ouvi uma mulher falar, numa situação de evento acadêmico na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, em Assis/SP, “eu estou pesquisando o empoderamento feminino”.
Essas palavras, de tão novas para mim, fizeram eu sentir o enorme peso da minha infinita ignorância, e depois recorrer ao exercício da humildade de perguntar o que exatamente era aquilo. Ela, estudante de psicologia, na maior paciência do mundo explicou que o Brasil estava começando finalmente a falar sobre feminismo, movimento político organizado por mulheres no ocidente desde a Revolução Francesa e que, no Brasil, se aparentemente demorou muito para compor o debate público, enfim havia ganhado corpo além de uma cultura de gueto. Não muito tempo depois, todo mundo minimamente antenado no país pôde perceber que as feministas vieram para ficar, organizam-se cada vez mais e diuturnamente empoderam-se.
Meu conhecimento sobre o feminismo beira o zero. Li poucos excertos de livros, poucos artigos e um texto da feminista e escritora estadunidense Rebecca Solnit, “Os homens explicam tudo para mim”, aliás, iniciado com um preâmbulo tragicômico, dela contanto a situação em que um homem indicou para ela o próprio livro, sem conseguir supor no auge da empáfia que estava diante da própria autora.
Por isso, por pura ignorância e desconhecimento técnico sobre o tema, convidei para ajudar nesta coluna o Movimento Delas, coletivo feminista de Marília que existe e atua desde o início de 2020, na assistência de mulheres da cidade em situações de vulnerabilidade e de pobreza. Elas, generosamente, felizmente, aceitaram o convite e ainda me presentearam com uma bela aula sobre o tema.
Primeiro. Para um leigo, o que é indispensável saber sobre o feminismo é que não é um movimento que possui tangência com quaisquer tentativas de revanche ou vingança. Ou seja, não se trata de tentar construir agora uma superioridade das mulheres sobre os homens, inverter a posição clássica de poderes e privilégios do patriarcado, mas, nas palavras da Isis Martins, membra, cofundadora do coletivo e minha amiga, se trata de reconhecer que mulher também é gente e também merece na teoria e na prática os mesmos direitos que os homens. O que elas põem em luta é tanto mais uma questão de promover o equilíbrio entre os gêneros, não a desigualdade que já é vigente.
A percepção de que durante a história relegaram para as mulheres o lugar social da subordinação é fácil de comprovar. Exemplos, a população brasileira é composta em sua maioria por mulheres, porém, desde 1889 que há presidencialismo neste país, apenas duas vezes uma mulher venceu as eleições para a presidência, tão logo solapada por um golpe, inclusive.
Outra, dos 11 ministros do STF, há apenas duas mulheres. Ou, nas cadeiras de maior prestígio acadêmico, intelectual, ensino universitário e pós-graduações do Brasil, a distribuição não é equânime entre os gêneros. Nos casos de violência doméstica, então, o Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) aponta que 90% das vítimas são mulheres e 90% dos agressores são homens, configurando feminicídio.
Portanto, se por a mais b fica óbvio que não há equilíbrio entre homens e mulheres, não há nenhuma suspeita sobre a validade da causa das feministas, e ideologicamente falando o feminismo está à esquerda. O Movimento Delas também.
As definições do que é esquerda e direita têm uma certa plasticidade ao longo da história do pensamento e hoje, grosso modo, é razoavelmente normal encontrar uma noção de que a esquerda quer maior uma presença do Estado, enquanto que a direita quer uma menor.
Outro caminho teórico, entretanto, para não dar essa impressão estereotipada de que na esquerda tem bolsistas preguiçosos e na direita a vanguarda dos empreendedores, encontra-se na longa história do pensamento político do século XX, que elege na direita o lado mais preocupado com a conservação das estruturas sociais, e na esquerda uma força alimentada pelo anseio de promover as mudanças, em detrimento da conservação. Isto é, são coisas opostas.
Entre os lados, o Movimento Delas optou pelas ações que promovem mudanças. No início de 2020, quando começaram, a Isis Martins e a Alyssa Pfeifer, que são amigas desde outros carnavais, se uniram nas redes sociais, primeiro no Twitter com a #exposedmarilia e depois no Instagram, e abriram um canal organizado de denúncias que deu enorme vazão a literalmente milhares de histórias sobre agressões, abusos, assédios e violências sexuais que mulheres sofreram em Marília.
Em 2021 entre os meses de agosto e setembro, o Movimento Delas organizou uma arrecadação de absorventes pela cidade em escolas, faculdades e farmácias para assistir as mulheres de Marília em situação de pobreza menstrual, isto é, mulheres que em função da pobreza que estão não conseguem comprar este item básico do bem-estar, da saúde e da higiene e feminina que são os absorventes. Elas arrecadaram 9.210 absorventes e com isso assistiram 200 meninas por três meses, 40 mulheres por cinco meses e 17 refugiadas venezuelanas! Ou seja, foi um sucesso retumbante.
Este ano, 2022, no mês de maio o Movimento Delas organizou a campanha “Adote uma mãe” para arrecadação de fraldas. Conseguiram com as doações ajudarem dezenas de mães que receberam gratuitamente os pacotes junto a um kit de higiene para os seus bebês – este projeto, aliás, faz com que eu tenha um particular carinho por elas, porque pude ajudar com um pouquinho e vi de perto todo o empenho que elas têm de querer só fazer o bem.
Há, também neste ano, um projeto novo sendo desenvolvido, para instigar nas escolas públicas da cidade a circulação de informações básicas acerca das relações políticas do cotidiano, não no sentido partidário, mas no prático das opressões que os adolescentes podem ser vítimas, como LBGTfobia, racismo, machismo e opressão de classe.
Ísis Martins é estudante de Direito e Ciências Sociais. Alyssa Pfeifer é estudante de Psicologia. Heloísa Monteiro é estudante de Medicina. As três têm 20 e poucos anos, o elã da juventude e uma vida boa. Chama atenção, por isso, que cada uma delas dedique do seu tempo para fazer o bem para tantas mulheres que, além de oprimidas por uma sociedade machista, são também vítimas da proliferação da pobreza em Marília.
Ao Movimento Delas, deixo meu muito obrigado e admiração. Vocês fazem de Marília uma cidade melhor.