Cultura do estupro
Ser professor implica mais em aprender do que em ensinar. Não tem muito tempo, por exemplo, aprendi com estudantes mulheres, numa cidade no Pontal do Paranapanema, que elas sofrem com alguma espécie de assédio moral ou sexual todos os dias, sem folga, especialmente quando estão andando pela cidade. Todos os dias da vida, repito, são muitos dias, e não dá pra achar normal.
A situação que fez este assunto vir à tona em sala de aula foi um flagrante que, sem que eu pudesse prever, aconteceu bem na minha cara. Estava na frente de uma escola particular durante um fim de tarde de verão quando vi, do outro lado da rua, três amigas caminhando com roupa de fazer exercício. Adiante, quando as três passaram na frente de um banco onde estavam três homens sentados, bebendo tereré, os três – sem exceção – disseram obscenidades para elas sem o menor constrangimento. As meninas apertaram os passos e foram embora mais do que depressa. E eu? Fiquei olhando meio estupefato e resolvi, no outro dia de manhã, que iria perguntar para as estudantes se elas já tinham passado por isso e, se sim, com qual frequência passavam.
No início do ensino médio as adolescentes tem entre 14 e 15 anos. No final, elas têm quase 18. Outras, que fazem curso pré-vestibular, são quase sempre maiores de idade. Porém, todas elas, independentemente da idade ou da aparência que têm, afirmaram em uníssono que é muito raro quando há um dia de paz onde nenhum desinfeliz fala algum impropério, quase sempre de conotação sexual, assediando-as. Em suma, o que elas me ensinaram é que para sofrer este tipo de violência basta ser uma mulher.
No dia 20 de maio de 2016, em uma comunidade do Rio de Janeiro, um caso de uma adolescente de 16 anos que foi vítima de um estupro coletivo ganhou a imprensa e a mídia do país e, dali para frente, grande parte dos movimentos feministas passaram a se referir ao estupro não como um caso isolado, mas como uma cultura do estupro que vige no Brasil, e por aí afora também, perfazendo as relações entre homens e mulheres, em um mundo tradicionalmente dominado por homens, ou patriarcal.
A priori, a ideia de que há uma “cultura do estupro” sofreu rejeição ora implícita, se grande parte das pessoas não puderam entender de primeira a profundidade do conceito ou tampouco procurou aprendê-lo, ora explícita, quando muita gente através dessa grande caixa de pandora – que são as redes sociais – referiu-se à ideia como um exagero militante da esquerda lacradora.
Para ambos os casos, deveria ser indicado por decreto ou providência divina a leitura do artigo “Cultura do estupro: considerações sobre violência sexual, feminismo e Análise do Comportamento” das psicólogas e mestres em psicologia Júlia Castro de Carvalho Freitas (Universidade Federal de São Carlos) e Amanda Oliveira de Morais (Universidade Estadual de Londrina), publicado em 2019 pela Revista Latina de Análise de Comportamento, da Universidade Veracruzana do México, pois, oferecem boas dicas, cientificamente comprovadas, de que sim, há uma cultura do estupro a ser considerada para que, enfim, seja possível entendê-los para além da percepção antiga de que são simples eventualidades.
Elas começam situando a noção de que atualmente no Código Penal brasileiro, o estupro é definido no artigo 213 como “constranger alguém, mediante violência e grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Brasil, 2009). Estupro, portanto, é uma forma das mais hediondas de violência sexual.
No Brasil, a Lei Maria da Penha (Brasil, 2006) caracteriza a violência sexual como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos” (art. 7o, inciso III).
Do ponto de vista teórico produzido pelo feminismo, assim, o estupro não é uma ocorrência isolada ou simplesmente tributário de defeitos psicológicos que levam a este tipo de violência. Na verdade, diz respeito a um contexto socialmente maior que corrobora para o vínculo entre a violência e o exercício de uma sexualidade perversa.
Emilie Buchwald, citada pelas psicólogas brasileiras, disse no início dos anos 1990, se valendo dessa ideia de cultura do estupro que existe na literatura desde a década de 1970, que na verdade se trata de um conjunto complexo de crenças que encorajam agressões sexuais masculinas e sustentam a violência contra a mulher, numa sociedade em que a violência é vista como sensual e a sexualidade como violenta.
Desde 2011, o Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) mostra estatisticamente que os casos de violência sexual incorrem em um padrão recorrente de homem violentando mulheres. Dos 12.087 casos registrados pelo Sinan, em todas as faixas etárias, as principais vítimas eram mulheres, 81% no caso de crianças, 93% no caso de adolescentes e 97% no caso de adultos. Em todos os casos, os homens compõem pelo menos 90% dos agressores. Ou seja, violência sexual é na realidade uma violência de gênero.
Depois do estupro que cometeu o ex-médico Giovanni Quintella Bezerra, instantes após o parto de uma mulher sob os efeitos de várias anestesias, o tema violência sexual tomou de assalto novamente o debate público no Brasil, de onde surgiu esta síntese largamente republicada “nem todo homem, mas sempre um homem.”
É irrefutável que são sempre homens e, entre homens que não o fazem, há um pesar constrangedor em reconhecer que temos que nos desconstruir todos os dias para não condicionar as mulheres a situações de abuso. Nada comparado, é claro, ao perigo que é ser mulher num país machista.
Talvez, um bom caminho para cada homem começar sua transformação pessoal é não incorrer na imoral repercussão de quaisquer tentativas de culpabilização das vítimas. Mulher nenhuma é estuprada por causa da roupa que vestiu ou do horário que saiu de casa ou do jeito que olhou ou do lugar que foi.
Violência contra as mulheres acontece, quase 100% das vezes, porque são os homens que admitem um exercício de poder nocivo sobre elas, sobretudo quando não se dão conta do quão privilegiada é a condição masculina.