Indígenas de todo o Brasil, uni-vos!
Para o começo da conversa, uma importante evolução para nós enquanto brasileiros é identificar que a terminologia “índio” é tanto chula quanto desqualificada. Reduz uma incrível miríade de povos e pessoas culturalmente distintas entre si sob uma mesma classificação generalizante que, simplesmente, não dá conta do recado. Seria mais ou menos como chamar todas as pessoas do país de brasileiros para sempre e ponto final. Como se não houvesse as regionalidades, os dialetos e os sotaques, os gêneros, os sabores locais, e sim 220 milhões de pessoas idênticas. Assim, como em outros casos e outros vícios de linguagem, “índio” está entre as palavras do nosso cotidiano que a gente repete por aí sem saber exatamente de onde veio, ou sem saber a correta etimologia, consequentemente então desconhecendo o lado pejorativo que ela carrega, e o pesar que eventualmente causa nos cidadãos que vivem a vida indígena, seja na comunhão espiritual com a natureza, ou no jeito de morar e comer e vestir, ou na experiência com os antepassados. E no Brasil, felizmente, os indígenas estão aí e unidos!
O direito à diferença está garantido pela nossa Constituição e a existência das Reservas Indígenas também. Há no Brasil segundo os últimos levantamentos uma população de aproximadamente 900 mil indígenas, para usar a terminologia correta, que mantêm os seus estilos de vidas, idiomas e necessidades espaciais em territórios demarcados exclusivamente para esta função, concentrados sobretudo na Região Norte do País, além dos estados de Mato Grosso e Maranhão. As maiores reservas são a Yanomami, Alto do Javari e Alto do Rio Negro.
Tudo na paz, então? Quer dizer, exceto pela necessidade premente de incutir no cérebro de todo mundo, através da educação, a ideia básica de que as populações indígenas merecem o respeito como quaisquer outras, e que uma tribo ou aldeia consumir produtos manufaturados e industrializados não a descaracteriza enquanto tal, o que mais pode dar errado se a identificação das Terras Indígenas no país transcorre comumente pela força da lei desde 1988?
“Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombola. Menos de um milhão de pessoas vivem nesses lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros ” é a transcrição sem por nem tirar de uma das primeiras postagens, no Twitter, do Presidente da República logo no início do governo, no dia 02 de janeiro de 2019. Este trecho foi, na realidade, uma espécie de prenúncio cruel da condição periclitante que as populações indígenas encontrar-se-iam menos de quatro anos depois, especialmente em função de dois problemas centrais que, se combinados, significam em conjunto um esforço político vindo do centro do governo para desarticular a vida indígena remanescente do país. De um lado há o terrível “Marco Temporal das Terras Indígenas”, e de outro o tão sombrio estímulo às atividades de mineração dentro das reservas produzindo, no mais das vezes, envenenamento dos recursos dos solos e das águas através de metais pesados. Mas vamos por partes…
A tese do Marco Temporal Indígena foi a julgamento no Supremo Tribunal Federal em agosto de 2021 e a partir dali discutido em seis sessões plenárias da Corte. O julgamento foi suspenso por um pedido de vistas, ou mais tempo para a análise do caso, pelo ministro Alexandre de Moraes. A retomada do caso está prevista para julho de 2022. Porém, o que o marco significa, na prática, é que as populações indígenas só poderão recorrer ao processo de demarcação de terras naqueles espaços que já estão por eles ocupados, ou que já estavam em processo de disputa judicial, até a data da promulgação da última Constituição Federal, de onde saiu a Terra Indígena, isto é, apenas até o dia 05 de outubro de 1988.
A origem desta tese está associada a um sangrento conflito que houve em 2009, no governo Lula, entre os produtores de arroz e indígenas no estado de Roraima, numa reserva mais tarde identificada como Raposa Serra do Sol. O precedente utilizado pelo Supremo para conceder às tribos o domínio territorial da reserva embasou-se no fato de que eles já estavam ali, antes mesmo do processo legal de identificação oficial daquelas terras enquanto Território Indígena. No entanto, por dedução contrária, a bancada ruralista brasileira, que lidera os assuntos do agronegócio no Congresso Nacional, achou, por lógica, que se os indígenas reivindicaram, pois, estavam na terra, então caso eles não estivessem não haveria o porquê jurídico para reivindicar quaisquer outras terras do país, para transformá-la em futuras reservas. Tem lógica?
Não! Esta tese é absurda, no centro, devido ao fato dela negligenciar a dramática história indígena do Brasil. Certos dados historiográficos são relevantes, como por exemplo, a noção de que o trabalho de africanos escravizados no Brasil organizou-se apenas depois de algumas décadas da escravização dos originais da nossa terra, o que promoveu expropriação dos territórios de então como problema social crônico no desenvolvimento do país desde a colônia. Ou, também, a observação da demografia do Brasil, que enquanto a população brasileira ao longo dos últimos dois séculos cresceu milhares de vezes, ao mesmo tempo, as populações indígenas foram suprimidas às dezenas de milhões, processo este que na literatura menos eufemista costuma-se chamar de genocídio. Agora, como endossar normalmente a ideia de que demarcações indígenas exigem antes que ali estejam indígenas instalados se, no mais das vezes, houve o massacre bélico e epidemiológico das aldeias?
O tempo dirá, porém, caso a tese do Marco Temporal seja aprovada pelo Supremo, algumas reservas poderão ser destituídas, ou outras em longo processo judicial de identificação poderão ir para a gaveta. Pior do que isto, talvez, sejam as atuais e crescentes discussões ufanas sobre exploração de minério dentro das atuais reservas indígenas já demarcadas e funcionando desde a década de 1980, a maioria delas concentradas em um bioma razoavelmente conservado que o Brasil ainda possui, chamado Floresta Equatorial Amazônica.
A Amazônia não é apenas brasileira, aparece em outros países como formadora de paisagens nacionais, especialmente na Colômbia, Venezuela, Peru, Bolívia e Equador. Mas, a imensa maior parte, é de nossa responsabilidade e costumamos chamá-la de “Amazônia Legal”, onde ocorre a maior oferta de água doce superficial e subsuperficial e a maior biodiversidade do planeta. Geologicamente falando, as partes centrais da Amazônia são ocupadas por vastos pacotes de rochas sedimentares que, se pesquisar, dá em hidrocarbonetos, muito provavelmente petróleo e gás natural. As bordas da área amazônica, no entanto, possuem rochas de outra densidade e idade, muitas de origens vulcânicas antigas, de onde costuma-se encontrar minérios raros e ornamentais e vários minérios metálicos. E, em cima disso tudo, reservas indígenas territorialmente protegidas por lei, bem como parte do Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC), classificadas ao lado dos pouquíssimos territórios quilombolas do país como Unidades de Uso Sustentável.
Isto é, tem minério, mas não pode mexer. Esta alquimia é perigosíssima, especialmente em tempos onde o país é parcialmente liderado por representantes que acham que o “índio” não está no Brasil de verdade se isolado em aldeias que ocupam 15% do território nacional. Pretexto este, para quem tem um mínimo de malícia, que serve para criar um ensejo, disfarçado de bom mocismo, para as grandes mineradoras acabarem de liquidar com o único bioma minimamente preservado que temos em troca de, como sempre, recursos naturais que só podem valer comercialmente se extraídos e vendidos na escala de bilhões de toneladas, exportados em dólares.
A notícia boa é que, desde sempre, os indígenas não tem medo nenhum de brigar. Aliás, antropologicamente falando, há nas aldeias de raiz linguística tupinambá e guarani, um gosto tradicional tanto pela festa como pela guerra. Desde o dia 4 de abril, e previsto para durar até o dia 14, estão em Brasília acampados aproximadamente 7 mil pessoas que são representantes de 170 povos indígenas, com um foco explícito que faz o lema do acampamento: “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”. A exigência de esclarecimentos transparentes do governo federal, sobre as discussões de mineração nas áreas demarcadas, bem como sobre a tese do Marco Temporal, além da grande ânsia popular pelo encontro no contexto de fim da pandemia, fez desta 18a edição do acampamento a maior e mais longa mobilização indígena do país. O Acampamento Terra Nova conta com lideranças da oposição que fazem do evento uma plataforma que tem, inclusive, consciência do peso disso em um ano eleitoral. Sônia Guajajara, que é a coordenadora-geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que o objetivo de aldear a política é, se preferirem, articular com os povos indígenas que têm direito ao voto e inserir representantes no Congresso Nacional. Pensou, que bonito, embaixo do mesmo teto, discutindo e votando justamente com o mesmo peso, um Kaingang e um fazendeiro mato grossense? Sensacional!
E quem pegou o bonde andando e sentou na janelinha? Adivinha? O próprio. O Lula! Desembarcou um dia mais cedo do que o planejado em Brasília, para visitar o acampamento e fazer o que ele faz de melhor, ou seja, alianças políticas das mais excêntricas, tudo em nome de uma oposição que não veio para brincar e também não está com vontade de perder. Vamos torcer apenas para que entre os 7 mil acampados em Brasília, não tenha nenhum membro, ou quem sabe algum parente, daqueles povos indígenas que hoje não conseguem mais pescar nem um lambari no Rio Xingu, devido ao desenvolvimento e conclusão das obras da Hidrelétrica de Belo Monte, na cidade de Altamira, Pará, a partir de 2010 no faraônico Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). Mas a eletricidade não é importante? É lógico! E seria ainda mais importante, contudo, caso esta que é a terceira maior hidrelétrica do mundo, construída em tempo recorde, entregasse os 11 mil MW prometidos, pois, há um ano que entrega só 3% do planejado.
Lula lá, fica esperto, o povo de Altamira não está mais pescando graças a tal hidrelétrica que o senhor tanto quis levantar. O que implica em fome, dificuldades econômicas com as demais aldeias e muito desalento para os ribeirinhos. Vamos torcer pra ninguém lembrar? Vamos! Porque, até onde eu saiba, flecha não sai pela culatra.