Constituição, Marília e Responsabilidade Social
Não seria exagerado supor que na educação do Brasil, entre as disciplinas obrigatórias, ainda falta uma para ensinar a riqueza e a complexidade da nossa Constituição, sobretudo na fase da escolarização pública de nível fundamental e médio. É estranho que a principal lei que rege no país seja do domínio intelectual apenas de uma quantidade infinitesimal de juristas, pois, bem ou mal, todos nós deveríamos estar e viver dentro dos limites constitucionais o mais conscientemente possível.
A primeira Constituição produzida no Brasil foi no início do I Reinado de D. Pedro I em 1824, situação do país recém-independente. Contudo, ainda muito associado a um conjunto de interesses dominantemente marcado pelo domínio político das elites oligárquicas. Muito mais tarde, houve a produção de outras Constituições: uma em 1891 ainda da Primeira República, duas durante a Era Vargas em 1934 e 1937, uma na Quarta República em 1946, e outra em 1967 no início da Ditadura Militar.
A atual Constituição, que já é a sétima da história do país, foi produzida no contexto especialmente delicado e promissor do pós-ditadura militar. A Assembleia Constituinte foi convocada em 1985 enquanto o país se redemocratizou e, no dia 5 de outubro de 1988, nascia a tão cheia de esperança Constituição apelidada de “cidadã”, pois, foi preenchida de artigos explicitamente preocupados com os direitos civis numa escala sem precedentes na política brasileira.
Das célebres novas conquistas, estão mais na memória do povo especialmente o direito ao voto entre 16 e 17 anos, o direito do voto para analfabetos, a redução da jornada máxima semanal de trabalho para 44 horas, o aumento da licença-maternidade e da licença-paternidade, o seguro-desemprego e as férias remuneradas acrescidas de um terço do salário. Politicamente, houve a instituição de eleições em dois turnos, a criação do Supremo Tribunal de Justiça e o restabelecimento do habeas corpus.
É curioso que este exercício de navegar pela leitura dos artigos desta Constituição cidadã, que é de acesso gratuito e domínio público, levará quaisquer pessoas de primeira viagem a perceber um certo hiato entre a lei e a prática concreta do país, especialmente no ponto sensível do aumento da pobreza e diferentes formas de carência social. Como diz o povo, na teoria é uma coisa e na prática é outra.
Caso existisse uma preocupação escolar de ensinar senão toda a Constituição, mas pelo menos os excertos clássicos dela, seguramente entraria para a lista e para o imaginário comum dos brasileiros os artigos 182 e 183, pois, são justamente os primeiros artigos constitucionais na história do Brasil que foram deliberadamente produzidos para estabelecer diretrizes sobre as cidades, e o Brasil tem a maioria da sua população concentrada nas cidades desde a década de 1960. Isto é, são partes da lei que interessa a cada vez mais pessoas se é correto assimilar que nossa realidade urbana é um fato consumado há décadas.
O êxodo rural brasileiro, o abandono da vida camponesa e o anseio por uma vida melhor através da prática do consumo de bens e de serviços nas cidades fizeram com que a realidade urbana no Brasil crescesse demograficamente em uma intensidade tal que a maioria das cidades não estavam preparadas. Este despreparado, tanto administrativo como estrutural, provocou em ampla medida nas cidades médias e grandes a incorporação de enormes periferias por onde proliferaram carências de bem-estar e problemas severos de moradia.
Por essas e por outras, de maneira razoavelmente atrasada, é que apareceu na atual Constituição o artigo 182: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. E o artigo 183: “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”
Bem-estar não é sinônimo de felicidade. Porém, a importância do bem-estar diz respeito às condições materiais necessárias para que seja possível a experiência de uma vida digna, como domicílio, privacidade, higiene, segurança, lazer, trabalho, renda, escolarização e saúde. Coisas sem as quais a vida se tornará tão penosa quanto provavelmente infeliz. A lei não obriga a garantia da felicidade para os cidadãos e cidadãs da cidade, porém obriga que haja um ordenamento administrativo na cidade para que todos tenham acesso ao bem-estar, pré-condição de uma vida digna.
Não há muito tempo atrás, a cidade de Marília foi agraciada com a posição de 1º lugar no ranking de melhores cidades do Brasil, no critério Responsabilidade Social, no conjunto de cidades que possuem população acima de 200 mil habitantes, segundo a revista Isto É. “Nosso destaque em indicadores sociais e digitais confirmam os grandes avanços em qualidade de vida, educação, saúde, habitação, responsabilidade e assistência social, acesso ao conhecimento, mobilidade digital e muito mais. Só uma cidade Humana e Realizadora é capaz de unir o desenvolvimento ao cuidado com sua gente”, disse o prefeito de Marília, Daniel Alonso, em meados de julho.
Pontuou ainda na mesma entrevista que “a cidade de Marília é polo de desenvolvimento, tem saneamento básico concluído, recorde de empregos e empresas abertas, é referência em saúde, exemplo em educação infantil e adulta, está executando a Iluminação 100% em LED, ar-condicionado e wi-fi nos ônibus, recorde em atendimento e assistência a famílias carentes, uma rede de restaurantes popular, 1º lugar em gestão pública em todo o Estado, são conquistas que ajudam a explicar o destaque da cidade.”
A premiação que Marília recebeu tornou-se aos poucos conhecida pela população da cidade, através especialmente dos outdoors espalhados pelas principais avenidas, antes de cair no famoso boca a boca. Entre populares, há de um lado aqueles que reconhecem a atual gestão como boa para a cidade, e há outros que estranham a dimensão “responsabilidade social” do prêmio, pois, já puderam observar aqui e ali o aumento sensível de pessoas em situação de rua, mendicância e aumento dos trabalhos informais.
O tempo dirá. Se entre mortos e feridos alguns se salvarão, eu prefiro acreditar que o futuro da nossa cidade será melhor que o passado com pitadas de melhorias que já se anunciaram no presente. E, se Deus quiser e que assim seja, tomara que as luzes da nossa icônica rodoviária possam um dia brilhar tão mais do que aquela brega estátua da liberdade que a avizinha.