Lucas Taoni, Autor em Marília Notícia https://marilianoticia.com.br/colunista/lucastaoni/ Aqui você lê a verdade! Tue, 06 Dec 2022 18:57:45 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 A goleada da Coreia do Sul https://marilianoticia.com.br/a-goleada-da-coreia-do-sul/ Tue, 06 Dec 2022 18:56:12 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=446001 Em meados da década de 1950, a tão tímida e paupérrima península da Coreia havia acabado de se dividir em duas partes, a Norte e a Sul. As sequelas do divórcio geopolítico não poderiam ser mais traumáticas, especialmente por causa da morte de civis e militares na escala de milhões, seguida de sucessivas crises econômicas […]

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Em meados da década de 1950, a tão tímida e paupérrima península da Coreia havia acabado de se dividir em duas partes, a Norte e a Sul. As sequelas do divórcio geopolítico não poderiam ser mais traumáticas, especialmente por causa da morte de civis e militares na escala de milhões, seguida de sucessivas crises econômicas e de abastecimento que preencheram várias das décadas do pós-guerra.

Oficialmente falando, inclusive, esta guerra ainda não terminou. Vira e mexe um lado hostiliza o outro, de maneira ideológica, econômica ou militarmente. Ainda hoje, confundir os pontos cardeais da península está para um absurdo tão grotesco como fazer a dancinha do pombo de uniforme vermelho. Nesta parte do mundo, Norte e Sul não se bicam de jeito nenhum.

O mais curioso é que, para a parte Sul da península, o imediato futuro do pós-guerra anunciava-se ainda menos alvissareiro, se de um lado o país estava todo espremido pela falta de recursos naturais e fontes de energia, haveria ainda a complicada cena política de violentas ditaduras que perdurariam por quase 30 anos.

Neste contexto, justamente, que um modelo centralizado de Estado deteve até o controle da quantidade de alimentos por pessoa e, não raro, também da quantidade de alimento para as crianças, comumente subnutridas nas escolas apenas com leite em pó, doado pelos EUA e outros países ocidentais que comungavam da tosca tentativa de purificação moral com o oriente, chamada humanitária, após quatro séculos de colonialismos pelos quatro hemisférios do mundo.

Por essas e por outras, olhando de viés a história do último meio século, que nem os mais desconstruídos gurus da Terra ousariam supor que a partir deste cenário desastrado nasceria, em tão pouco tempo, uma potência econômica tão profícua nos campos informacional, tecnológico e automobilístico, e tão péssima no campo de futebol, chamada Coreia do Sul.

Mas, é a Samsung que está na vida de bilhões de pessoas direta ou indiretamente. O HB20, da Hyundai, é o carro mais vendido do Brasil há vários anos, e pelas projeções continuará sendo. A LG é quem exporta em amplíssima escala, para quem quiser e der conta de pagar, aqueles monitores de LED que quase nos revelam uma nova dimensão da categoria espaço. Que goleada, econômica.

Os sul-coreanos operaram um milagre social, se é verdadeiro reconhecer que em um intervalo tão curto de tempo alçaram este voo, que partiu do estigma da miséria e aterrissou no panteão sagrado dos poucos países do mundo que produzem riqueza em profusão. Graças a um modelo desenvolvimentista que mesclou ingredientes do típico liberalismo ocidental, como facilitação tributária para grandes conglomerados monopolistas, combinado às melhores práticas da social-democracia, que não deixa a peteca da educação cair em nome de recuperar empresas ou bancos que por seu demérito falem, a Coreia do Sul é dos pontos mais luminosos que existem no mundo.

Os próximos desafios para a Coreia do Sul é revitalizar seu modelo para gerar mais iniciativas privadas jovens (ou startups), olhar com mais rigor para os casos flagrantes de nepotismos que existem entre as maiores empresas e o governo, e cuidar da saúde mental de toda uma juventude que, quando não adere bem às metas quase impossíveis das instituições, cometem suicídio diante do fardo insuportável da sensação de desonra que um Coreano, e orientais em geral, sentem sobre as costas. Desafios esses que, se comparados à dificuldade de ganhar um jogo de futebol, podem ser elevados à enésima potência.

De resto, tudo vai de vento em popa para a Coreia e não precisa mexer em quase nada. Talvez, até no futebol já está bom do jeito que está. Aquela seleção de uniforme vermelho vestindo homens de pouca estatura foi gigante, na raça que eles deram em campo e, sobretudo, na demonstração de elegância do pós-jogo, quando entraram no vestiário da Seleção Brasileira para cumprimentar nosso time um a um. Mesmo os quatro belíssimos gols do Brasil não deram conta de corroer a fibra moral daqueles coreanos, que receberam uma bela educação pública e integral desde a tenra infância.

No rompante de estarmos cometendo um exagero, de interpretar que a derrota nem doeu para a Coreia, mesmo avaliando tudo o que eles já passaram ou tudo o que já conseguiram enquanto nação próspera, vamos só ver se na próxima vez a gente conseguirá gozar de novo de uma vitória, coreografada com dancinhas lúdicas, entre as quatro linhas, de uma arena de Taekwondo. Daí, o buraco é bem mais embaixo, é do outro lado do mundo.

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Copa do Mundo: histórias, afetos e brasilidades https://marilianoticia.com.br/copa-do-mundo-historias-afetos-e-brasilidades/ Tue, 22 Nov 2022 21:11:15 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=443292 A existência dos jogos de bola remontam a tempos praticamente imemoriais. Há grandes chances de eles serem tão antigos que, talvez, toquem até em um pedaço da pré-história e das civilizações autóctones. E se não é exatamente de hoje que sociedades, sobretudo ocidentais, acham um bom negócio instigar uma disputa em torno da bola, é […]

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A existência dos jogos de bola remontam a tempos praticamente imemoriais. Há grandes chances de eles serem tão antigos que, talvez, toquem até em um pedaço da pré-história e das civilizações autóctones. E se não é exatamente de hoje que sociedades, sobretudo ocidentais, acham um bom negócio instigar uma disputa em torno da bola, é evidente também que este sem número de pessoas no planeta torcendo por um lado, ao mesmo tempo que defenestram todos os outros, é qualquer coisa que toca na essência profunda da gente, na emoção incontida de uma vitória suada, no diletantismo prazeroso da jogada bonita do craque ou na fibra moral de quem perde e mesmo assim não vira a casaca.

Assistir aos jogos da bola e viver suas dinâmicas é algo que, especialmente durante a Copa do Mundo, mexe com afetos de bilhões de pessoas nos quatro cantos da Terra.

O curioso é que no passado as formas proto futebolísticas eram, na maioria dos casos, refregas violentas e absolutamente sem regras, que desde a Grécia e Roma clássicas, traduziam-se mais em um tipo de corpo a corpo sanguinário, às vezes mortal, tampouco dotado de limites espacialmente predispostos em algum tipo de superfície.

O jogo com a bola estava antes entremeado de tal maneira com práticas de força e violência, no afã de levá-la com êxito até algum ponto, que esses atuais teatros insólitos de um jogador de 20 e poucos anos, com cabelo de calopsita e gingado da vila, seriam possivelmente ovacionados às gargalheiras do teatro dos bobos. Porque o futebol, desde a antiguidade, é coisa muito séria.

Os ingleses foram os primeiros a perceber a seriedade do futebol, bem como foram os primeiros a formalizar os limites primordiais do esporte. O irrefutável porquê, que explica eles saindo na frente das outras nações na matéria deste jogo é, sem nenhuma dúvida, o porquê político. Como é razoável admitir que há na Inglaterra, desde muitos séculos, um imaginário popular funcionando pelas regras do parlamentarismo, isto por si pressupõe já as bases fortes da possibilidade de formalização do jogo da bola.

Imaginemos, por exemplo, que no Parlamento haverá sempre dois lados em disputas constantes, ao passo que no jogo de futebol também são dois times em disputa. Também há de se considerar, dentro do parlamentarismo, que as regras são estabelecidas a priori por uma monarquia, que determina o que pode e o que não pode na disputa, vigiando-a, exatamente como no futebol, onde há um juiz que vigia tudo o que pode, e não obstante paga com as honras da própria mãe o que negligencia.

Outra coisa evidente é que, nas sessões do Parlamento inglês, ainda hoje há quem ganha e há quem perde, e só às vezes existem empates, bem como no futebol, que são acirradamente disputados por inúmeros jogos, sem a expectativa que as disputas deixarão de existir um dia, reiterando constantemente a necessidade da vitória hoje e sempre, em um movimento revigorador de prestígio na disputa de campeonatos que não têm vitalícios, se no ato em que uma disputa acaba já anunciam-se todas as próximas, em rodadas, em temporadas, e globalmente em quadrienais Copas do Mundo.

Por essa invenção extraordinária, um viva para os bretões, especialmente se eles continuassem para sempre apenas com uma modesta taça, a de 1966, numa posição que os legaria, se não fosse pela criação das primeiras regras do jogo, aos coadjuvantes – futebolisticamente falando.

Das polêmicas, lembrar de Nelson Rodrigues e a “síndrome de vira-lata” é matéria obrigatória na história da bola, se ainda hoje infelizmente muita gente resvala nessa mania tosca e crônica de achar que o Brasil é ruim e que os brasileiros não prestam.

A sensação da superação do viralatismo nasceu justamente quando, na nossa primeira vitória numa Copa em 1958, Nelson inseminou através da imprensa que, enfim, vez o Brasil tinha deixado de ser e sentir-se um vira-lata das nações, e o brasileiro um vira-lata entre os povos. Este sentimento passou a compor o futebol junto à identidade nacional, transfigurando-o em um dos símbolos brasileiros mais intensos, se através das quatro linhas a gente conseguiu demonstrar superioridade diante de todas as nações, com graça e com poesia, com Pelé e Garrincha – lembrou um amigo é historiador corintiano, de Assis, Antônio Vicenzotto.

Ali, na nossa primeira vitória, foi capturada para sempre o poder de uma Copa pela autoestima de um país inteiro, que quando ganha a taça passa a se enxergar melhor, a comungar de um otimismo que põe, inclusive, assuntos econômicos para andar mais rápido.

1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. E, no anseio de erguer a taça de novo, neste exato segundo o futebol une mais as pessoas no Brasil do que quaisquer outras amenidades ou coisas sérias, sobretudo porque não vemos a hora de gritar um retumbante “é hexa!” para, quem sabe, tamponar diferenças abissais que foram forjadas nos últimos anos entre nós, fazendo nosso povo rivalizar tanto e tão pouco tempo.

O amigo e cientista político Carlos Roberto de Almeida Jr, de Marília, defende com unhas e dentes o futebol como fenômeno social multifacetado, que fica entre uma diversão diletante e uma complexa sociologia da conexão de todo um povo. Aquela ideia de que estamos todos juntos rumo a um mesmo ideal fica consolidada numa Copa que nos serve, também, como uma experiência de celebração da brasilidade e emblematiza a possibilidade de nos mostrarmos valiosos para o mundo, mostrarmos nossas cores, nossos gostos, nossa inteligência, nossa criatividade, nossos sonhos, nossa força, nosso jeito único de ser e viver. A Copa do Mundo é uma possibilidade catártica de mostrarmos para o mundo inteiro o quão incrível é o Brasil.

O célebre anfitrião e físico Leonardo José Jacobino, de Presidente Prudente, tria da magnitude da Copa a chance que ela nos oferece para viver pedaços da história do tempo presente, viver momentos históricos sabendo que estamos vivendo-os, em uma comunhão fina que pode acontecer na casa de um mais chegado, no bar, na rua ou em qualquer outro lugar onde a experiência coletiva suprima o individualismo, tanto através da energia forte deste evento bem como pela imprevisibilidade de lances que tão logo entram para os livros com o crivo de testemunhas oculares de uma grande massa torcedora.

Como não lembrar, só para citar os exemplos mais óbvios, da Seleção Canarinho, de Romário e Bebeto, do sufoco de 1998, da beleza de 2002, do fenômeno voando depois de cirurgias no joelho ou do infame 7×1? Tudo bem ou mal, virará história e passará a preencher a memória coletiva de um povo que se lembra orgulhosamente do Penta e, como numa piada interna que tem que ser brasileiro pra entender, grita em qualquer espécie de comemoração “é Tetra!”.

Meu pai, economista e advogado Luiz Carlos Taoni Neto, de Valinhos, lembra que a Copa é algo fascinante porque ela que tem o poder de mexer com a autoestima da molecada, onde improvisadamente nas peladas de rua, com bola feita de restos, traves imaginárias entre chinelos de dedo no asfalto quente, cada menino performa como pode para ser o craque da vez. Há poesia e dramaturgia neste processo de tentar encarnar o melhor jogador, e é bonito de ver.

Como disse um poeta, se todo menino é um rei, eu também já fui rei, porque se há este anseio de ser o melhor, inspirar-se no melhor, estar no melhor time, dar o seu melhor, erguer a taça mais bonita do mundo, haverá outrossim o poder de fazer uma criança vibrar positivamente, fazendo-a sentir a força desejante de ser tão bom quanto um craque da bola. Ser bom consigo, bom com os outros ou ser bom em algo é vontade que pode mudar a trajetória de uma vida inteira.

Daqui há dois dias o Brasil terá o seu primeiro jogo contra a Sérvia, parte da antiga Iugoslávia e, se Deus nos ajudar, eles ficarão tão inertes quanto aqueles duros Balcãs do leste europeu, diante da nossa jovem e criativa Seleção Brasileira.

A Copa do Mundo é nossa.

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Brilha uma estrela https://marilianoticia.com.br/brilha-uma-estrela/ Wed, 09 Nov 2022 12:00:08 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=440871 A vantagem de ser o mais novo do trabalho, da família, dos amigos ou da redação de um jornal é que quase sempre estou na posição de quem tem muito mais a aprender do que a ensinar. Professor aprendiz e aprendiz profissional resumiriam um sociólogo e historiador controverso de Três Lagoas/MS. Aprendi no trabalho que […]

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A vantagem de ser o mais novo do trabalho, da família, dos amigos ou da redação de um jornal é que quase sempre estou na posição de quem tem muito mais a aprender do que a ensinar. Professor aprendiz e aprendiz profissional resumiriam um sociólogo e historiador controverso de Três Lagoas/MS.

Aprendi no trabalho que a política da sala de aula exigirá sem trégua dos professores um equilíbrio delicado de forças, entre – de um lado – a necessidade de não se fazer omisso, pois há regras institucionais, prazos e etc., e – de outro – a obrigação de se manter sensível para entender que os jovens do nosso país estão bastante aflitos, não só com a própria situação psíquica, bem como com a imprevisibilidade de futuro que se desenha, especialmente pela política e pela economia.

Eles ouvem uma coisa na rádio, outra dentro de casa, outra do STF, outra do professor e um milhão de outras nas redes sociais, de sociabilidade ditada por algoritmos que formam sinistros guetos de preferências ideológicas. Neste amálgama todos terão a provável noção de que não dá para acreditar piamente em alguém ou algum grupo, se ninguém fala de um lugar sem intenções outras.

Para um jovem secundarista, não está tão explícito a irrevogabilidade das urnas eletrônicas ou o golpismo atabalhoado de civis sem civismo democrático algum. Isso tudo bagunçado pela esperança remota de ser testemunha ocular, pela primeira vez na vida, da seleção erguendo a taça, pois um hexa nos seria no mínimo alvissareiro.

Aprendi no ambiente da família, por exemplo, com o meu avô Benedito Taoni, que um estadista de grande eleitorado comumente provocará uma oposição à sua altura ou maior. Ele já me contou a mesma história várias vezes, e todas as vezes que conta ainda sinto um prazer afetivo em ouvi-la, com alguns detalhes que vão oscilando ao sabor do estado de espírito do momento, de quando outrora moço, no inverno paulistano de 1954, atravessava a Praça da Sé aos tropeços e ameaças ostensivas da polícia, esgueirado numa amorfa multidão que ora comemorava e ora chorava o suicídio de Getúlio Vargas. Uns enlutados com a impressão de que perderam um pai, o pai dos pobres, e outros bradando contrários impropérios contra um oligárquico gaúcho, na melhor das versões um caudilho.

Então, se todo mundo morre, meu avô me ensinou que uns morrem menos. Quando o Bolsonaro morrer, bem como quando o Lula morrer, sobreviverão as memórias e as narrativas de ambos, e elas passarão a povoar o inconsciente coletivo das conversas dos jantares de família, das festas comemorativas, dos feriados nacionais, das crises políticas e econômicas e da ojeriza indestrutível que parte da nação alimenta por um – e a outra metade por outro.

Por isso, se daqui há 50 anos não dá para termos nem a mais leve noção de onde o Brasil estará, embora me pareça este fantasma de um Brasil meio venezuelano mais falso do que uma nota de três pesos, provavelmente, o dicotômico ódio petismo/bolsonarismo será ainda uma ferida. Contudo, com outras personagens residuais preenchendo uma polarização que aparentemente veio para ficar na história da República, como já houve em outros lugares do ocidente democrático, vide os EUA.

Aprendi, com um pequeno rol de amigos que trago desde a adolescência, que as diferenças ideológicas mais oceânicas entre duas pessoas, parecerão uma gotinha d’água se elas verdadeiramente se amarem. Há uns três meses atrás, um grande amigo meu que não tem absolutamente nada a ver comigo, pois, é mais bonito, mais forte, mais rico, mais bem sucedido e menos articulado, menos politizado, menos acadêmico e menos letrado, me lembrou bem empertigado que, lá no colégio, a gente já sabia um pouquinho o que era esquerda e direita e quem inclinava mais para cada lado, e mesmo assim nos gostávamos numa sintonia tal que cinco dias por semana juntos não eram o bastante.

Hoje este grupo recalcitrante de amigos sabe, uns mais, outros um pouco menos, quais são os espectros básicos da vida política do país e do mundo. Contudo, sabido tudo isso, as coisas que mais perfazem a nossa prosa não são do tipo o liberalismo do Guedes versus o keynesianismo do Haddad, mas mais um ímpeto de molecagem saudosista temperado com a impressão típica de que nós brasileiros parecíamos nos detestar menos, nos compreender mais, nos amarmos melhor. Dá verdadeiramente um pouco de saudade, de quando ninguém olhava desconfiado para o outro que soube concordar com a apuração do segundo turno de um país redemocratizado não há tanto tempo, tendo seu candidato ganhado ou perdido, em nome do respeito da vontade da maioria.

Aprendi, no exercício de escrever regularmente para um veículo de comunicação, a concordar com o que o nem sempre bem-humorado Edu Lobo pressagiou: um bom trabalho é produto de uma boa ideia com pouco tempo. Ratificando, é que prefiro produzir na véspera, na maioria das vezes a noite, sob o insuspeito álibi que surgirá alguma luz intempestiva para compor um texto virulento ou mais engajador.

À procura desta luz, foi curioso no céu desta noite clara olhar da janela do quarto o nosso Cruzeiro do Sul. Nosso, porque é apenas no Sul da Terra que é possível contemplá-lo, o guia astronômico fácil de achar para os pecados do lado debaixo do Equador. A estrela está lá, todos os dias, em cima de ameaças armadas, dos bloqueios rodoviários eivados com reivindicações estapafúrdias, dos acampamentos em frente aos quartéis, da tentativa de monopolização da bandeira nacional. Está lá, brilhando, e tomara que aos poucos clareie a perversa tônica do medo, como o afeto político mais poderoso dos nossos tempos.

Brilham as estrelas.

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O pitbull que mordeu o dono: caso Roberto Jefferson https://marilianoticia.com.br/o-pitbull-que-mordeu-o-dono-caso-roberto-jefferson/ Tue, 25 Oct 2022 19:32:18 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=438197 Quando estávamos há 100 dias das eleições, no espaço desta coluna, eu cometi a ingenuidade de escrever que o pior erro do atual governo, cometido à revelia da estratégia de manter e conquistar eleitores em 2022, era o caso do ex-ministro Milton Ribeiro, seus pastores corruptos no Ministério da Educação e suas suspeitas barras de […]

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Quando estávamos há 100 dias das eleições, no espaço desta coluna, eu cometi a ingenuidade de escrever que o pior erro do atual governo, cometido à revelia da estratégia de manter e conquistar eleitores em 2022, era o caso do ex-ministro Milton Ribeiro, seus pastores corruptos no Ministério da Educação e suas suspeitas barras de ouro. Ledo engano… O buraco, desta vez, está bem mais embaixo.

A oposição do presidente Bolsonaro não poderia ficar mais feliz com o pictórico (e por que não dizer absurdo?) atentado cometido pelo ex-deputado Roberto Jefferson neste fim de semana, que em um rompante de insanidade e violência recebeu quatro policiais federais na bala de fuzil e na granada de efeito moral! Situação, aliás, que faz parecer aqueles pastores evangélicos, os que roubaram dinheiro do Fundo Nacional da Educação, três princesas da Disney.

Faltando apenas cinco dias para o segundo turno da eleição presidencial mais tensa da história da nova república, o sinistro que houve entre a PF e Roberto Jefferson é simplesmente de cinema, absolutamente improvável até ter acontecido, e seguramente legará efeitos controversos na apuração das urnas do domingo, bem como já trouxe dinâmicas negativas de desvalorização para o mercado financeiro do país, pontuação das bolsas de valores, ações da Petrobras e valor do dólar.

Não é de hoje que Roberto Jefferson comete um ato de violência entremeado a interesses políticos, fazendo da violência um caminho para a política, ou por intermédio da sua posição política fazer válidos os seus atos repugnantes de violência armada. Definições estas que, no resto do mundo, as ciências políticas de todas as universidades conceitualizam como “terrorismo”: o uso da violência para fins políticos.

Mas, se não é de hoje que este exótico ex-deputado mete o louco, afinal, quais são os ingredientes especiais deste caso, que faz a oposição se refestelar no escândalo como se fosse um banquete de Natal?

Primeiro, põe uma pitada de Roberto Jefferson em prisão domiciliar e de casa exercendo o papel de coordenador, embora não o único, da campanha de Jair Bolsonaro. Vai mexendo até depois dos disparos contra a polícia, mas quando chegar no ponto de alguns populares bolsonaristas amotinaram-se para agredir um profissional do telejornalismo, que estava no dever da função de registrar os interditos da receita da desgraça, abaixa um pouco o fogo.

Logo na sequência, adicione uma boa dose de padre Kelmon, que aparece como aquele ingrediente improvável na composição geral, mas que tem tudo para deixar a cena tão mais esquisita que um prato de festa junina fora de época. O padre, ou sabe lá Deus qual o verdadeiro ofício deste senhor, foi até o lugar da quádrupla tentativa de homicídio para supostamente ajudar na negociação, mas, cá entre nós, era melhor ele ter ficado em casa.

Depois, vai na receita mais ou menos um quilograma de açúcar para engrossar o caldo, precisamente adicionado no momento em que a PF será recebida dentro da casa de Roberto Jefferson. Como com açúcar fica tudo mais gostoso, revela-se agora na uma curiosa combinação, do político que abriu fogo contra quatro policiais conversando prazenteiro e despreocupado com um representante da própria PF, entre incontidas risadas e explicações de desconcertante cinismo do tipo “eu não atirei pra pegar neles” ou “pode ficar tranquilo”. Não gosta de doce…

Porém, a receita da desgraça ficará perfeita apenas com algum ingrediente escatológico, que você encontrará com exclusividade na rara narrativa do ex-deputado, quando, ao se referir à ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse em vídeo das suas redes sociais: “Eu estou indignado, não consigo! Fui rever o voto da Bruxa de Blair, da Carmem Lúcifer, na censura prévia à Jovem Pan, olhei de novo e não dá pra acreditar, lembra mesmo aquelas prostitutas, aquelas vagabundas, arrombadas, né?”. Está pronto! Um delicioso banquete extraordinariamente conveniente para a oposição roubar a cena.

Agora, o Bolsonaro terá que se virar nos 30 para explicar, por exemplo, como no passado Roberto Jefferson contratou um dos seus filhos, o Eduardo Bolsonaro, aos 18 anos de idade, para cargo comissionado em Brasília, se o jovem herdeiro ainda estudava no Rio de Janeiro. Hora mais inoportuna para romper com esta amizade longa dificilmente haveria.

Porém, mais delicado ainda que o fim dos afetos, para o presidente, será desarticular-se em tão pouco tempo da imagem e semelhança deste ex-deputado metido a pitbull. Se ele conseguir fazer isto até o dia 30, aliás, capaz de entrar para o Guinness Book, premiado com o recorde mundial da desfaçatez.

Essa doeu.

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Xenofobia é crime contra as pessoas e contra a democracia https://marilianoticia.com.br/xenofobia-e-crime-contra-as-pessoas-e-contra-a-democracia/ https://marilianoticia.com.br/xenofobia-e-crime-contra-as-pessoas-e-contra-a-democracia/#comments Tue, 11 Oct 2022 18:59:45 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=435692 A democracia não é uma coisa perfeita e tampouco é fácil praticá-la. Contudo, de todos os possíveis estilos socialmente criados para escolhermos os representantes da política, da organização do poder oficial, a democracia ainda é o melhor que há, pois, embora ela tenha também os seus interditos, a gente ainda não soube como criar nada […]

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A democracia não é uma coisa perfeita e tampouco é fácil praticá-la. Contudo, de todos os possíveis estilos socialmente criados para escolhermos os representantes da política, da organização do poder oficial, a democracia ainda é o melhor que há, pois, embora ela tenha também os seus interditos, a gente ainda não soube como criar nada mais feliz, no entrecruzamento que há entre a praticidade do voto majoritário e a idoneidade do respeito à maioria. Aliás, já faz tempo que o que está em jogo é melhorar a democracia, em vez de supor que um dia ela será superada.

No Brasil, então, a democracia é um capítulo à parte, porque somos republicanamente recentes e porque tivemos mais de uma vez democracia maculada por golpes de Estado. A complexidade outrossim está em admitir que este jogo democrático exigirá sempre dos cidadãos e cidadãs que participam, uma certa dose de boa fé e de credibilidade nas regras elementares do próprio jogo, como entender a importância da obrigatoriedade do voto, acreditar na tecnologia de computação e apuração eletrônica dos mesmos ou, acima de todas as outras coisas, saber que de vez em quando você estará do lado da minoria, do lado dos que escolheram o candidato ou candidata que tentou, mas perdeu.

É muito feio quando um conjunto de eleitores não acatam a derrota, o que compõe também parte das máculas que ao longo da história fizeram a nossa democracia cambalear. Certamente a dificuldade de aceitar os resultados das urnas eletrônicas, que além de eletrônicas são também auditáveis, está associada à falta de noção ou mesmo de consciência, de que não há entre quaisquer brasileiros diferenças no valor do voto que cada um tem direito.

O pobre ou o rico, o da classe média, o indígena, o branco, o preto, o mestiço, o central ou periférico, o urbano ou camponês, o intelectual ou o analfabeto, o nordestino, o sudestino ou qualquer outro regional são todos iguais perante a lei e, a partir dos 16 anos de idade, têm direito a um voto por candidato, e o voto de todos vale exatamente um e não mais do que isto. Contudo, a xenofobia compromete gravemente esta noção democrática básica.

Aurélio Buarque de Holanda, irmão do Sérgio e tio do Chico, além de célebre lexicógrafo, ou dicionarista, definiu assim o verbete da xenofobia: aversão a pessoas ou coisas estrangeiras; xenofobismo. Já o Código Penal aplica ao caso da xenofobia uma extensão de sentido, entendendo-a como quaisquer tipos de injúrias contra uma pessoa que pertence a alguma etnia. No site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, encontra-se que para sua caracterização é necessário que haja ofensa à dignidade de alguém, com base em elementos referentes à sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência. Nesta hipótese, a pena aumentará para um a três anos de reclusão, agravando-a.

Nesta última semana houve no Brasil um aumento brutal dos casos de xenofobia, vinculados implícito ou explicitamente aos resultados das eleições do dia 2 de outubro, mais particularmente às eleições para presidência da República. A apuração dos votos que indicou que haverá um segundo turno entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (48,43% dos votos), e o presidente Jair Messias Bolsonaro (43,20% dos votos) foi acompanhada de uma avalanche de casos e denúncias, até agora na escala de centenas, considerando só as violações feitas pela internet, mídias virtuais e redes sociais. Lula teve a maioria dos votos em todas as nove unidades federativas do Nordeste, enquanto Bolsonaro teve a maioria nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, com exceção de Minas Gerais.

A Safernet, organização não governamental que trabalha em prol de combater violações aos direitos humanos que ocorrem no mundo on-line, publicou recentemente que dia 3 de outubro, dia seguinte ao primeiro turno, houve 348 denúncias de xenofobia, sendo 232 delas links únicos. No dia da eleição, 2 de outubro, a organização recebeu dez denúncias, nove únicas e uma duplicada. Enquanto no dia 5 de setembro, primeira segunda-feira do mês pretérito às eleições, não houve nenhuma denúncia de xenofobia.

A advogada Flávia Aparecida Rodrigues Moraes publicou nas suas redes que “não vai mais alimentar quem vive de migalhas”, se referindo preconceituosamente aos nordestinos. Ela era vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Uberlândia. Porém, após repercussão polêmica e negativa do vídeo, pediu afastamento do cargo e na sequência foi exonerada pela OAB. “Reiteramos que não compactuamos com os lamentáveis fatos veiculados nas redes sociais, nem com as expressões usadas pela advogada”, declarou o presidente da OAB Uberlândia, José Eduardo Batista, em nota. A Defensoria Pública de Minas Gerais propôs uma ação civil pública contra Flávia. O órgão pede que a advogada pague R$ 100 mil em danos morais.

Kannanda Camila, uma blogueira potiguar, disse “eu neste momento tenho vergonha, vergonha, vergonha, do Nordeste. Vocês nasceram para viver de auxílio, salariozinho, e só minha gente? Vocês são vagabundos, vocês não gostam de trabalhar não”. No dia 4 de outubro, Kannanda foi às redes sociais e se desculpou pela “fala infeliz” e que já teve, ainda nas palavras dela, “o pior castigo que me deram foi tirar as minhas redes sociais.”

Lucas Paolinelli Campos, sócio da empresa mineira Ramos & Campos do setor de comércio exterior, disse “eu queria só dizer o seguinte, galera: agora que o Bolsonaro ganhou, graças a Deus, ele vai excluir os nordestinos do grupo, ele já acabou de me mandar um WhatsApp e pessoalmente ele falou o seguinte: agora é faca na caveira, a gente não vai mais suportar esse pessoal do Acre, esse pessoal de Roraima, esse pessoal do Norte e Nordeste.”

E, entre todas as declarações xenofóbicas, houve também a do presidente, que após ler em um veículo de imprensa “Lula vence em 9 dos estados com maior taxa de analfabetismo” reiterou: “vocês sabem quais são esses estados? São os do Nordeste…” com a mão apoiada no lado esquerdo do peito. Após associar o voto dos nordestinos ao analfabetismo, completou a análise afirmando que a macrorregião foi administrada pela esquerda do PT por 20 anos, e por isso mesmo ali há problemas crônicos de escolarização e outros indicadores sociais.

Frederico de Castro Alves, professor Doutor em História da Universidade Federal do Ceará, analisa que a “repercussão da fala do presidente Bolsonaro está sendo muito negativa e está mobilizando os nordestinos das mais diferentes tendências e movimentando as famílias de nordestinos que moram em outras regiões. Basta levar em consideração que o nordestino é o povo brasileiro que mais migra e tem um percentual muito elevado de nordestinos em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, e isso chocou muito.”

No próximo dia 30 transcorrerá o segundo turno das eleições presidenciais onde Lula e Bolsonaro disputarão o cargo. Para conquistá-lo, é necessário o voto da maioria, pelo menos 50% mais um. Para os eleitores, tanto de um como do outro, é necessário lembrar que todos têm direito ao voto e que, guardada a incrível diferença ideológica, partidária e política que há entre esses dois polos, tanto os apoiadores como os opositores estarão sujeitos exatamente ao mesmo presidente até 2026. E para aqueles que desconhecem os limites explícitos entre o direito de ser oposição e o crime de xenofobia, há a força da lei.

Não é linda a democracia?

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Constituição, Marília e Responsabilidade Social https://marilianoticia.com.br/constituicao-marilia-e-responsabilidade-social/ Wed, 28 Sep 2022 12:00:45 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=432772 Não seria exagerado supor que na educação do Brasil, entre as disciplinas obrigatórias, ainda falta uma para ensinar a riqueza e a complexidade da nossa Constituição, sobretudo na fase da escolarização pública de nível fundamental e médio. É estranho que a principal lei que rege no país seja do domínio intelectual apenas de uma quantidade […]

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Não seria exagerado supor que na educação do Brasil, entre as disciplinas obrigatórias, ainda falta uma para ensinar a riqueza e a complexidade da nossa Constituição, sobretudo na fase da escolarização pública de nível fundamental e médio. É estranho que a principal lei que rege no país seja do domínio intelectual apenas de uma quantidade infinitesimal de juristas, pois, bem ou mal, todos nós deveríamos estar e viver dentro dos limites constitucionais o mais conscientemente possível.

A primeira Constituição produzida no Brasil foi no início do I Reinado de D. Pedro I em 1824, situação do país recém-independente. Contudo, ainda muito associado a um conjunto de interesses dominantemente marcado pelo domínio político das elites oligárquicas. Muito mais tarde, houve a produção de outras Constituições: uma em 1891 ainda da Primeira República, duas durante a Era Vargas em 1934 e 1937, uma na Quarta República em 1946, e outra em 1967 no início da Ditadura Militar.

A atual Constituição, que já é a sétima da história do país, foi produzida no contexto especialmente delicado e promissor do pós-ditadura militar. A Assembleia Constituinte foi convocada em 1985 enquanto o país se redemocratizou e, no dia 5 de outubro de 1988, nascia a tão cheia de esperança Constituição apelidada de “cidadã”, pois, foi preenchida de artigos explicitamente preocupados com os direitos civis numa escala sem precedentes na política brasileira.

Das célebres novas conquistas, estão mais na memória do povo especialmente o direito ao voto entre 16 e 17 anos, o direito do voto para analfabetos, a redução da jornada máxima semanal de trabalho para 44 horas, o aumento da licença-maternidade e da licença-paternidade, o seguro-desemprego e as férias remuneradas acrescidas de um terço do salário. Politicamente, houve a instituição de eleições em dois turnos, a criação do Supremo Tribunal de Justiça e o restabelecimento do habeas corpus.

É curioso que este exercício de navegar pela leitura dos artigos desta Constituição cidadã, que é de acesso gratuito e domínio público, levará quaisquer pessoas de primeira viagem a perceber um certo hiato entre a lei e a prática concreta do país, especialmente no ponto sensível do aumento da pobreza e diferentes formas de carência social. Como diz o povo, na teoria é uma coisa e na prática é outra.

Caso existisse uma preocupação escolar de ensinar senão toda a Constituição, mas pelo menos os excertos clássicos dela, seguramente entraria para a lista e para o imaginário comum dos brasileiros os artigos 182 e 183, pois, são justamente os primeiros artigos constitucionais na história do Brasil que foram deliberadamente produzidos para estabelecer diretrizes sobre as cidades, e o Brasil tem a maioria da sua população concentrada nas cidades desde a década de 1960. Isto é, são partes da lei que interessa a cada vez mais pessoas se é correto assimilar que nossa realidade urbana é um fato consumado há décadas.

O êxodo rural brasileiro, o abandono da vida camponesa e o anseio por uma vida melhor através da prática do consumo de bens e de serviços nas cidades fizeram com que a realidade urbana no Brasil crescesse demograficamente em uma intensidade tal que a maioria das cidades não estavam preparadas. Este despreparado, tanto administrativo como estrutural, provocou em ampla medida nas cidades médias e grandes a incorporação de enormes periferias por onde proliferaram carências de bem-estar e problemas severos de moradia.

Por essas e por outras, de maneira razoavelmente atrasada, é que apareceu na atual Constituição o artigo 182: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. E o artigo 183: “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

Bem-estar não é sinônimo de felicidade. Porém, a importância do bem-estar diz respeito às condições materiais necessárias para que seja possível a experiência de uma vida digna, como domicílio, privacidade, higiene, segurança, lazer, trabalho, renda, escolarização e saúde. Coisas sem as quais a vida se tornará tão penosa quanto provavelmente infeliz. A lei não obriga a garantia da felicidade para os cidadãos e cidadãs da cidade, porém obriga que haja um ordenamento administrativo na cidade para que todos tenham acesso ao bem-estar, pré-condição de uma vida digna.

Não há muito tempo atrás, a cidade de Marília foi agraciada com a posição de 1º lugar no ranking de melhores cidades do Brasil, no critério Responsabilidade Social, no conjunto de cidades que possuem população acima de 200 mil habitantes, segundo a revista Isto É. “Nosso destaque em indicadores sociais e digitais confirmam os grandes avanços em qualidade de vida, educação, saúde, habitação, responsabilidade e assistência social, acesso ao conhecimento, mobilidade digital e muito mais. Só uma cidade Humana e Realizadora é capaz de unir o desenvolvimento ao cuidado com sua gente”, disse o prefeito de Marília, Daniel Alonso, em meados de julho.

Pontuou ainda na mesma entrevista que “a cidade de Marília é polo de desenvolvimento, tem saneamento básico concluído, recorde de empregos e empresas abertas, é referência em saúde, exemplo em educação infantil e adulta, está executando a Iluminação 100% em LED, ar-condicionado e wi-fi nos ônibus, recorde em atendimento e assistência a famílias carentes, uma rede de restaurantes popular, 1º lugar em gestão pública em todo o Estado, são conquistas que ajudam a explicar o destaque da cidade.”

A premiação que Marília recebeu tornou-se aos poucos conhecida pela população da cidade, através especialmente dos outdoors espalhados pelas principais avenidas, antes de cair no famoso boca a boca. Entre populares, há de um lado aqueles que reconhecem a atual gestão como boa para a cidade, e há outros que estranham a dimensão “responsabilidade social” do prêmio, pois, já puderam observar aqui e ali o aumento sensível de pessoas em situação de rua, mendicância e aumento dos trabalhos informais.

O tempo dirá. Se entre mortos e feridos alguns se salvarão, eu prefiro acreditar que o futuro da nossa cidade será melhor que o passado com pitadas de melhorias que já se anunciaram no presente. E, se Deus quiser e que assim seja, tomara que as luzes da nossa icônica rodoviária possam um dia brilhar tão mais do que aquela brega estátua da liberdade que a avizinha.

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Cultura e arte em Marília https://marilianoticia.com.br/lucas-taoni-cultura-e-arte-em-marilia/ Tue, 13 Sep 2022 15:30:51 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=429755 Não há nada mais entediante do que morar em uma cidade que não tem nada pra fazer. Salvo engano, observando o evidente fato de que não é de hoje que existem formas de entretenimento que nos deixam prostrados no sofá ou na cama, a sensação de viver sem música, sem cinema, sem teatro, sem museu, […]

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Não há nada mais entediante do que morar em uma cidade que não tem nada pra fazer. Salvo engano, observando o evidente fato de que não é de hoje que existem formas de entretenimento que nos deixam prostrados no sofá ou na cama, a sensação de viver sem música, sem cinema, sem teatro, sem museu, sem vida cultural ou sem acesso a arte, é um desalento.

A pandemia, caso seja razoável nos referirmos a ela já usando o passado, se de um lado deixou em dificuldades agudas um sem número de artistas, de outro também atordoou toda uma classe de trabalhadores que têm seu ofício atrelado a parte operacional da cultura, ao backstage. E, entre nós, que gostamos e necessitamos das artes, ficou explícito o tanto que elas fazem falta no dia a dia, ou também o quanto que muitas vezes a gente não dá o devido valor à classe artística.

Se é com a arte que alimentamos parte da nossa alma, por que contraditoriamente ouvimos músicas todos os dias e há ainda a tão comum indisposição para pagar um couvert? Se assistimos tantos filmes, séries, novelas, conteúdo audiovisual na internet, por que há tão poucos cursos de teatro ou preconceito com a dramaturgia? Se Machado de Assis ou Jorge Amado, ou tantos outros, estão no inconsciente coletivo do brasileiro como monumentos e símbolos da brasilidade, por que motivo desidratou o interesse pelos cursos de letras na última década?

Um olhar possível para explicar esses paradoxos, é reparar um pouco no lado legislativo da arte e da cultura. Além de todos os tipos de escárnios que já sofreu a Lei Rouanet, negativamente estigmatizada pela tese falaciosa de ser uma lei construída para subsidiar artistas letárgicos, no âmbito federal, por exemplo, os últimos dois anos foram marcados pela aprovação da Lei Aldir Blanc (LAB) e pela Lei Paulo Gustavo (LPG), que objetivam assistir com renda emergencial os profissionais no setor cultural e criativo, subsidiar a manutenção de espaços culturais que tiveram suas atividades interrompidas no período da pandemia, e fomentar novas atividades culturais através de editais e prêmios para o setor.

Essas duas leis que os homenageiam, pois, foram eles vítimas da pandemia na sua fase mais cruel, hoje preocupam toda uma classe artística do país, em vez de ajudá-la e acalmá-la, porque infelizmente já há duas semanas que foram adiados os repasses de verbas de ambas as leis, no valor que dispõe aproximadamente 6,8 bilhões de reais, para a classe dos trabalhadores da cultura e da artes – Medida Provisória (MPV) 1.135/2022.

Aldir Blanc disse em 1979, ano da Anistia no Brasil, que embora a tarde caísse feito um viaduto, havia esperança e o show tinha que continuar. Paulo Gustavo, dos atores e comediantes mais queridos da história recente da dramaturgia, encantou e emocionou a muitos de nós com um discurso sobre o riso, especialmente com a máxima ̈rir é um ato de resistência ̈ bem quando estávamos desenganados após o trágico primeiro ano pandêmico.

Esses apelos, que não deixam de serem éticos também, pela esperança e poder do humor fazem pensar que na nossa Marília, cidade tipicamente de uns 240 mil habitantes, equipada com não muitas indústrias e uma economia urbana sobretudo marcada pelos comércios e serviços, dá gosto de ver que mesmo contra a maré tem uma galera boa por aí trabalhando em prol da cultura da cidade.

Há por exemplo entre nós, desde 2018, atuando na construção artística e cultural da cidade e região, a jornalista e produtora cultural Caká Cerqueira César, mantenedora da La Musetta, empresa que amplia as possibilidades do mercado da arte captando verbas públicas ou privadas para projetos culturais dos mais diversos, que invariavelmente deixam a cidade muito mais interessante. De tantos casos de sucesso de crítica e público que a Caká já produziu, nos obrigamos a selecionar alguns porque seria, aliás, impraticável contemplar todos eles no espaço numa só coluna.

Recentemente, o artista gráfico Tiago de Moraes Chagas, profissional que faz parte do time de artistas produzidos pela Caká, lançou a ficção Radius, HQ editado pela LM Comics, que se passa no ano de 3121 em um futuro distópico, numa Marília que agregou as 62 cidades no seu entorno, em função do crescimento descontrolado e da conurbação, quando passamos a ter uma superpopulação entre 10 a 12 milhões de habitantes, explorando na história fissuras surgidas com a covid-19 a partir de 2020, ano zero da pandemia de coronavírus. Isto é, Marília tem uma personagem própria no formato de narrativa de HQ, um super-herói propriamente. Isto é obviamente muito legal de saber, de apoiar e de consumir.

Outro projeto belíssimo foi o espetáculo de Drag Queens em Marília, ‘Drags e Santas – Movidas pelo Amor’, que obteve aprovação do PROAC – Programa de Ação Cultural de São Paulo – Cidadania Cultural LGBTQIA. Com a direção e elaboração da Caká, trouxe interpretações e performances de um repertório musical intercalado com biografias em depoimentos de três artistas: Valentina Veigga, interpretada por Leandro Gustavo, Raphaella Albuquerque, personalidade de Renato de Souza e B. Diamond, drag queen vivida por Adilson Júnior dos Santos. Nas palavras da diretora é ¨Importante compartilharmos toda a construção destas personalidades que sempre estiveram ao lado do bem, praticando a solidariedade e levando o amor para todos os lugares em que passaram e passam. A proposta do espetáculo também é compreender melhor suas lutas e batalhas contra a  violência. Apesar de tamanhas dificuldades, elas jamais abandonaram sua autoconfiança e nunca deixaram a empatia para trás”. É a arte, portanto, aliada à função social de disseminar o amor no lugar da incompreensão.

Mais uma contribuição maravilhosa, embora esta já possa ser considerada clássica, é a exposição da obra Escaneandome, da fotógrafa e artista plástica Luciana Crepaldi, que Marília também contará em um futuro não tão distante. São conjuntos de grandes painéis verticais que exploram a poética das imagens de corpos, todavia captados não com câmeras fotográficas como é convencional, mas sim com um mosaico de imagens feitas impressionante e inovadoramente com um scanner.

Segundo texto do site da La Musetta, ipsis litteris, o tratamento de luz, sombra e fundo são limitados pelo periférico, todavia a tridimensionalidade da obra está no minimalismo dos movimentos que a artista se expõe em quadro a quadro, sugerindo gestos lentos e expressivos, numa referência ao Butô e a delicadeza das texturas orientais. Escaneandome é uma obra de imersão subjetiva e poética e traz em sua concepção de pós-fotografia a ideia de que o meio de produção é também parte do artista com a mensagem se fundindo à obra. É dessas coisas inenarráveis, só vendo pra crer na complexidade e nas impressões múltiplas que ocorrerão diante dos olhares privilegiados de nós que, tomara que logo, contemplaremos.

A arte existe porque a vida não basta, dizia sempre o saudoso Ferreira Gullar. Celebremos, então, o entusiasmo de uma Marília crescentemente artística e cultural pós-pandemia, valorizemos cada vez mais nossos artistas. Mesmo porque sem isso tudo, ficaria tudo perigosamente insosso.

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Movimento Delas: feminismo em Marília https://marilianoticia.com.br/lucas-taoni-movimento-delas-feminismo-em-marilia/ Tue, 23 Aug 2022 21:53:17 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=425880 Lembro com bastante clareza da primeira vez que eu ouvi uma mulher falar, numa situação de evento acadêmico na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, em Assis/SP, “eu estou pesquisando o empoderamento feminino”. Essas palavras, de tão novas para mim, fizeram eu sentir o enorme peso da minha infinita ignorância, e depois recorrer ao […]

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Lembro com bastante clareza da primeira vez que eu ouvi uma mulher falar, numa situação de evento acadêmico na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, em Assis/SP, “eu estou pesquisando o empoderamento feminino”.

Essas palavras, de tão novas para mim, fizeram eu sentir o enorme peso da minha infinita ignorância, e depois recorrer ao exercício da humildade de perguntar o que exatamente era aquilo. Ela, estudante de psicologia, na maior paciência do mundo explicou que o Brasil estava começando finalmente a falar sobre feminismo, movimento político organizado por mulheres no ocidente desde a Revolução Francesa e que, no Brasil, se aparentemente demorou muito para compor o debate público, enfim havia ganhado corpo além de uma cultura de gueto. Não muito tempo depois, todo mundo minimamente antenado no país pôde perceber que as feministas vieram para ficar, organizam-se cada vez mais e diuturnamente empoderam-se.

Meu conhecimento sobre o feminismo beira o zero. Li poucos excertos de livros, poucos artigos e um texto da feminista e escritora estadunidense Rebecca Solnit, “Os homens explicam tudo para mim”, aliás, iniciado com um preâmbulo tragicômico, dela contanto a situação em que um homem indicou para ela o próprio livro, sem conseguir supor no auge da empáfia que estava diante da própria autora.

Por isso, por pura ignorância e desconhecimento técnico sobre o tema, convidei para ajudar nesta coluna o Movimento Delas, coletivo feminista de Marília que existe e atua desde o início de 2020, na assistência de mulheres da cidade em situações de vulnerabilidade e de pobreza. Elas, generosamente, felizmente, aceitaram o convite e ainda me presentearam com uma bela aula sobre o tema.

Primeiro. Para um leigo, o que é indispensável saber sobre o feminismo é que não é um movimento que possui tangência com quaisquer tentativas de revanche ou vingança. Ou seja, não se trata de tentar construir agora uma superioridade das mulheres sobre os homens, inverter a posição clássica de poderes e privilégios do patriarcado, mas, nas palavras da Isis Martins, membra, cofundadora do coletivo e minha amiga, se trata de reconhecer que mulher também é gente e também merece na teoria e na prática os mesmos direitos que os homens. O que elas põem em luta é tanto mais uma questão de promover o equilíbrio entre os gêneros, não a desigualdade que já é vigente.

A percepção de que durante a história relegaram para as mulheres o lugar social da subordinação é fácil de comprovar. Exemplos, a população brasileira é composta em sua maioria por mulheres, porém, desde 1889 que há presidencialismo neste país, apenas duas vezes uma mulher venceu as eleições para a presidência, tão logo solapada por um golpe, inclusive.

Outra, dos 11 ministros do STF, há apenas duas mulheres. Ou, nas cadeiras de maior prestígio acadêmico, intelectual, ensino universitário e pós-graduações do Brasil, a distribuição não é equânime entre os gêneros. Nos casos de violência doméstica, então, o Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) aponta que 90% das vítimas são mulheres e 90% dos agressores são homens, configurando feminicídio.

Portanto, se por a mais b fica óbvio que não há equilíbrio entre homens e mulheres, não há nenhuma suspeita sobre a validade da causa das feministas, e ideologicamente falando o feminismo está à esquerda. O Movimento Delas também.

As definições do que é esquerda e direita têm uma certa plasticidade ao longo da história do pensamento e hoje, grosso modo, é razoavelmente normal encontrar uma noção de que a esquerda quer maior uma presença do Estado, enquanto que a direita quer uma menor.

Outro caminho teórico, entretanto, para não dar essa impressão estereotipada de que na esquerda tem bolsistas preguiçosos e na direita a vanguarda dos empreendedores, encontra-se na longa história do pensamento político do século XX, que elege na direita o lado mais preocupado com a conservação das estruturas sociais, e na esquerda uma força alimentada pelo anseio de promover as mudanças, em detrimento da conservação. Isto é, são coisas opostas.

Entre os lados, o Movimento Delas optou pelas ações que promovem mudanças. No início de 2020, quando começaram, a Isis Martins e a Alyssa Pfeifer, que são amigas desde outros carnavais, se uniram nas redes sociais, primeiro no Twitter com a #exposedmarilia e depois no Instagram, e abriram um canal organizado de denúncias que deu enorme vazão a literalmente milhares de histórias sobre agressões, abusos, assédios e violências sexuais que mulheres sofreram em Marília.

Em 2021 entre os meses de agosto e setembro, o Movimento Delas organizou uma arrecadação de absorventes pela cidade em escolas, faculdades e farmácias para assistir as mulheres de Marília em situação de pobreza menstrual, isto é, mulheres que em função da pobreza que estão não conseguem comprar este item básico do bem-estar, da saúde e da higiene e feminina que são os absorventes. Elas arrecadaram 9.210 absorventes e com isso assistiram 200 meninas por três meses, 40 mulheres por cinco meses e 17 refugiadas venezuelanas! Ou seja, foi um sucesso retumbante.

Este ano, 2022, no mês de maio o Movimento Delas organizou a campanha “Adote uma mãe” para arrecadação de fraldas. Conseguiram com as doações ajudarem dezenas de mães que receberam gratuitamente os pacotes junto a um kit de higiene para os seus bebês – este projeto, aliás, faz com que eu tenha um particular carinho por elas, porque pude ajudar com um pouquinho e vi de perto todo o empenho que elas têm de querer só fazer o bem.

Há, também neste ano, um projeto novo sendo desenvolvido, para instigar nas escolas públicas da cidade a circulação de informações básicas acerca das relações políticas do cotidiano, não no sentido partidário, mas no prático das opressões que os adolescentes podem ser vítimas, como LBGTfobia, racismo, machismo e opressão de classe.

Ísis Martins é estudante de Direito e Ciências Sociais. Alyssa Pfeifer é estudante de Psicologia. Heloísa Monteiro é estudante de Medicina. As três têm 20 e poucos anos, o elã da juventude e uma vida boa. Chama atenção, por isso, que cada uma delas dedique do seu tempo para fazer o bem para tantas mulheres que, além de oprimidas por uma sociedade machista, são também vítimas da proliferação da pobreza em Marília.

Ao Movimento Delas, deixo meu muito obrigado e admiração. Vocês fazem de Marília uma cidade melhor.

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Cultura do estupro https://marilianoticia.com.br/lucas-taoni-cultura-do-estupro/ Tue, 09 Aug 2022 19:20:41 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=422957 Ser professor implica mais em aprender do que em ensinar. Não tem muito tempo, por exemplo, aprendi com estudantes mulheres, numa cidade no Pontal do Paranapanema, que elas sofrem com alguma espécie de assédio moral ou sexual todos os dias, sem folga, especialmente quando estão andando pela cidade. Todos os dias da vida, repito, são […]

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Ser professor implica mais em aprender do que em ensinar. Não tem muito tempo, por exemplo, aprendi com estudantes mulheres, numa cidade no Pontal do Paranapanema, que elas sofrem com alguma espécie de assédio moral ou sexual todos os dias, sem folga, especialmente quando estão andando pela cidade. Todos os dias da vida, repito, são muitos dias, e não dá pra achar normal.

A situação que fez este assunto vir à tona em sala de aula foi um flagrante que, sem que eu pudesse prever, aconteceu bem na minha cara. Estava na frente de uma escola particular durante um fim de tarde de verão quando vi, do outro lado da rua, três amigas caminhando com roupa de fazer exercício. Adiante, quando as três passaram na frente de um banco onde estavam três homens sentados, bebendo tereré, os três – sem exceção – disseram obscenidades para elas sem o menor constrangimento. As meninas apertaram os passos e foram embora mais do que depressa. E eu? Fiquei olhando meio estupefato e resolvi, no outro dia de manhã, que iria perguntar para as estudantes se elas já tinham passado por isso e, se sim, com qual frequência passavam.

No início do ensino médio as adolescentes tem entre 14 e 15 anos. No final, elas têm quase 18. Outras, que fazem curso pré-vestibular, são quase sempre maiores de idade. Porém, todas elas, independentemente da idade ou da aparência que têm, afirmaram em uníssono que é muito raro quando há um dia de paz onde nenhum desinfeliz fala algum impropério, quase sempre de conotação sexual, assediando-as. Em suma, o que elas me ensinaram é que para sofrer este tipo de violência basta ser uma mulher.

No dia 20 de maio de 2016, em uma comunidade do Rio de Janeiro, um caso de uma adolescente de 16 anos que foi vítima de um estupro coletivo ganhou a imprensa e a mídia do país e, dali para frente, grande parte dos movimentos feministas passaram a se referir ao estupro não como um caso isolado, mas como uma cultura do estupro que vige no Brasil, e por aí afora também, perfazendo as relações entre homens e mulheres, em um mundo tradicionalmente dominado por homens, ou patriarcal.

A priori, a ideia de que há uma “cultura do estupro” sofreu rejeição ora implícita, se grande parte das pessoas não puderam entender de primeira a profundidade do conceito ou tampouco procurou aprendê-lo, ora explícita, quando muita gente através dessa grande caixa de pandora – que são as redes sociais – referiu-se à ideia como um exagero militante da esquerda lacradora.

Para ambos os casos, deveria ser indicado por decreto ou providência divina a leitura do artigo “Cultura do estupro: considerações sobre violência sexual, feminismo e Análise do Comportamento” das psicólogas e mestres em psicologia Júlia Castro de Carvalho Freitas (Universidade Federal de São Carlos) e Amanda Oliveira de Morais (Universidade Estadual de Londrina), publicado em 2019 pela Revista Latina de Análise de Comportamento, da Universidade Veracruzana do México, pois, oferecem boas dicas, cientificamente comprovadas, de que sim, há uma cultura do estupro a ser considerada para que, enfim, seja possível entendê-los para além da percepção antiga de que são simples eventualidades.

Elas começam situando a noção de que atualmente no Código Penal brasileiro, o estupro é definido no artigo 213 como “constranger alguém, mediante violência e grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Brasil, 2009). Estupro, portanto, é uma forma das mais hediondas de violência sexual.

No Brasil, a Lei Maria da Penha (Brasil, 2006) caracteriza a violência sexual como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que  force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos” (art. 7o, inciso III).

Do ponto de vista teórico produzido pelo feminismo, assim, o estupro não é uma ocorrência isolada ou simplesmente tributário de defeitos psicológicos que levam a este tipo de violência. Na verdade, diz respeito a um contexto socialmente maior que corrobora para o vínculo entre a violência e o exercício de uma sexualidade perversa.

Emilie Buchwald, citada pelas psicólogas brasileiras, disse no início dos anos 1990, se valendo dessa ideia de cultura do estupro que existe na literatura desde a década de 1970, que na verdade se trata de um conjunto complexo de crenças que encorajam agressões sexuais masculinas e sustentam a violência contra a mulher, numa sociedade em que a violência é vista como sensual e a sexualidade como violenta.

Desde 2011, o Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) mostra estatisticamente que os casos de violência sexual incorrem em um padrão recorrente de homem violentando mulheres. Dos 12.087 casos registrados pelo Sinan, em todas as faixas etárias, as principais vítimas eram mulheres, 81% no caso de crianças, 93% no caso de adolescentes e 97% no caso de adultos. Em todos os casos, os homens compõem pelo menos 90% dos agressores. Ou seja, violência sexual é na realidade uma violência de gênero.

Depois do estupro que cometeu o ex-médico Giovanni Quintella Bezerra, instantes após o parto de uma mulher sob os efeitos de várias anestesias, o tema violência sexual tomou de assalto novamente o debate público no Brasil, de onde surgiu esta síntese largamente republicada “nem todo homem, mas sempre um homem.”

É irrefutável que são sempre homens e, entre homens que não o fazem, há um pesar constrangedor em reconhecer que temos que nos desconstruir todos os dias para não condicionar as mulheres a situações de abuso. Nada comparado, é claro, ao perigo que é ser mulher num país machista.

Talvez, um bom caminho para cada homem começar sua transformação pessoal é não incorrer na imoral repercussão de quaisquer tentativas de culpabilização das vítimas. Mulher nenhuma é estuprada por causa da roupa que vestiu ou do horário que saiu de casa ou do jeito que olhou ou do lugar que foi.

Violência contra as mulheres acontece, quase 100% das vezes, porque são os homens que admitem um exercício de poder nocivo sobre elas, sobretudo quando não se dão conta do quão privilegiada é a condição masculina.

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Europa pega fogo de Leste a Oeste https://marilianoticia.com.br/lucas-taoni-europa-pega-fogo-de-leste-a-oeste/ Tue, 26 Jul 2022 20:44:13 +0000 https://marilianoticia.com.br/?p=420007 Já foi o tempo em que morar na Europa é necessariamente uma experiência de vida tranquila ou de prosperidade estimulada por um estado de bem-estar social, que também não existe no seu formato clássico há uns 50 anos. Da última década para cá, então, são cada vez mais comuns as notícias tristes no velho continente. […]

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Já foi o tempo em que morar na Europa é necessariamente uma experiência de vida tranquila ou de prosperidade estimulada por um estado de bem-estar social, que também não existe no seu formato clássico há uns 50 anos.

Da última década para cá, então, são cada vez mais comuns as notícias tristes no velho continente. Parece que em vários países a vida literalmente piorou, ou por causa da crise dos refugiados numa situação que opõe etnias ou devido a algumas economias pasmadas e em conflito com a União Europeia ou animosidades na geopolítica e redefinição das lideranças pós-Brexit ou mais recentemente com a acachapante guerra na Ucrânia ou, mais recentemente ainda, com essas ondas de calor que agonizam pessoas e matam outras da Escócia à Grécia.

Quer dizer, cair na fábula de que a vida do europeu está tão mais doce que a vida de um americano, o que poderia ser útil para pagar um caminhão de dinheiro em troca de cinco dias e quatro noites em Paris, é ou diletantismo de gente muito rica ou muita ingenuidade de gente que, como eu, pertence à indefinida classe média.

Mas, apesar dos pesares desta maré ruim que vive parte da Europa, vira e mexe aparecem entre as notícias tristes um elemento histórico básico de vários países europeus que são os protestos, quase sempre de jovens e hoje organizados especialmente pela pauta da crise climática global.

Muito embora seja um tema amplo social e tecnicamente falando, o resumo da ópera é não protelar a necessidade premente de tornar mais ecológico o estilo de produção industrial, pois, se foi na Europa que as indústrias começaram, é então razoável afirmar que desde os meados do século XVIII que elas alteram a composição básica da atmosfera com remessas brutais de enxofre, nitrogênio e sobretudo carbono, modificando a temperatura e a umidade do ar numa intensidade tal que hoje mata na escala de milhares de pessoas por ano.

A pergunta óbvia que fica no ar é se é possível compatibilizar nossa atual demanda por consumo de produtos duráveis e não duráveis com indústrias que, de alguma maneira, deixam de poluir na intensidade que se acostumaram há séculos. Questão esta que, para quem protesta, quase nada importa. Porque os protestos são, bem como a juventude que os organiza, tipicamente irreverentes.

No fim de junho um grupo de ativistas bloquearam a entrada do prédio do FMI em Paris colando suas mãos em uma porta de vidro, por onde reivindicaram a anulação das dívidas dos países pobres do hemisfério Sul para que eles possam enfrentar com mais recursos a crise o clima, de onde também era possível ler “anulem a dívida para um planeta vivo”.

No começo de julho, dia 4, dois membros do grupo de ambientalista Just Stop Oil colaram suas mãos na moldura de um quadro de aproximadamente 200 anos na National Gallery de Londres, isto depois de cobrirem a pintura de John Constable “The Hay Wain” com imagens alterando o aspecto original da paisagem preservada por outra contemporânea e poluída.

Um dia depoism, em 5 de julho, o mesmo grupo protestou na Royal Academy of Arts, colando as mãos na moldura de uma cópia do quadro “A Última Ceia” de Leonardo Da Vinci, além de escreverem na parede “no new oil” – sem óleo novo.

Nos dois casos, o grupo manifestou contra os novos licenciamentos para produção e uso de gás e petróleo no Reino Unido, sob o pretexto que isso deixará o mundo inóspito para centenas de milhões de pessoas no intervalo de poucas décadas. Eben Lazarus, um dos ativistas, disse “a pintura é parte importante da nossa herança, mas não é mais importante que 3,5 bilhões de homens, mulheres e crianças já em perigo por causa da crise climática.”

Climaticamente falando, a Europa é uma área pequena, porém complexa. Os países do Sul, especialmente Portugal, Espanha, Itália e Grécia são mais quentes e têm os verões mais secos, porque sua posição mediterrânea os coloca numa área de influência de massas de ar provenientes do Saara. Os países mais centrais, como Inglaterra, Escócia, Países Baixos, Alemanha, Polônia e França têm temperaturas mais amenas e invernos mais rigorosos e úmidos. Os países do Norte – destaque para os nórdicos, Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia e Dinamarca – têm um clima subpolar ou polar, ou seja, estão habituados a temperaturas negativas que ocupam as médias durante pelo menos quatro meses do ano.

Em geral, portanto, na Europa não há muito preparo para o calor, quase ninguém tem ar-condicionado e as condições prediais domésticas estão equipadas para o frio que é mais convencional, com paredes grossas, portas duplas, pisos do carpete e sistemas de calefação. No entanto, só nas últimas semanas centenas de recordes de temperaturas máximas foram registrados com marcas entre 40 e 50 graus célsius!

Em Portugal, Espanha, França, Inglaterra, País de Gales, Irlanda, Itália, Suíça, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca e Alemanha, por exemplo, o calor atípico é acompanhado também de períodos de seca que levam os países mais populosos a uma situação de estresse hídrico ou, para ser mais preciso, a um risco de que não haja água o suficiente para abastecer as cidades e os campos.

Físicos, geógrafos, climatologistas e meteorologistas, costumam explicar essas anomalias de temperaturas altíssimas combinadas com estiagens, a partir de um fenômeno no oceano Pacífico que ocorre não se sabe bem o porquê, chamado de La Niña, uma reorganização da circulação geral atmosférica do mundo com ventos equatoriais mais intensos que empurram as águas quentes do oceano para o Leste asiático.

Contudo, todas as outras pessoas que não olham para as dinâmicas de natureza do planeta enquanto uma profissão – isto é, literalmente quase todo mundo – não creem que seja normal um calor em Londres que derrete a pista do aeroporto ou um ar tão quente que provoca nas plantações de trigo da península ibérica incêndios bizarros.

Por isso, alguns até conseguem achar que essa juventude que protesta por aí em museus ou quaisquer outros eventos públicos têm sua razão em fazê-lo, afinal, para um futuro próximo de oito bilhões de habitantes, nossos filhos, nossos netos e nossos bisnetos, talvez seja melhor que o mundo não seja um grande deserto ou mesmo que a água não seja tão logo um artigo de luxo.

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