Copa do Mundo: histórias, afetos e brasilidades
A existência dos jogos de bola remontam a tempos praticamente imemoriais. Há grandes chances de eles serem tão antigos que, talvez, toquem até em um pedaço da pré-história e das civilizações autóctones. E se não é exatamente de hoje que sociedades, sobretudo ocidentais, acham um bom negócio instigar uma disputa em torno da bola, é evidente também que este sem número de pessoas no planeta torcendo por um lado, ao mesmo tempo que defenestram todos os outros, é qualquer coisa que toca na essência profunda da gente, na emoção incontida de uma vitória suada, no diletantismo prazeroso da jogada bonita do craque ou na fibra moral de quem perde e mesmo assim não vira a casaca.
Assistir aos jogos da bola e viver suas dinâmicas é algo que, especialmente durante a Copa do Mundo, mexe com afetos de bilhões de pessoas nos quatro cantos da Terra.
O curioso é que no passado as formas proto futebolísticas eram, na maioria dos casos, refregas violentas e absolutamente sem regras, que desde a Grécia e Roma clássicas, traduziam-se mais em um tipo de corpo a corpo sanguinário, às vezes mortal, tampouco dotado de limites espacialmente predispostos em algum tipo de superfície.
O jogo com a bola estava antes entremeado de tal maneira com práticas de força e violência, no afã de levá-la com êxito até algum ponto, que esses atuais teatros insólitos de um jogador de 20 e poucos anos, com cabelo de calopsita e gingado da vila, seriam possivelmente ovacionados às gargalheiras do teatro dos bobos. Porque o futebol, desde a antiguidade, é coisa muito séria.
Os ingleses foram os primeiros a perceber a seriedade do futebol, bem como foram os primeiros a formalizar os limites primordiais do esporte. O irrefutável porquê, que explica eles saindo na frente das outras nações na matéria deste jogo é, sem nenhuma dúvida, o porquê político. Como é razoável admitir que há na Inglaterra, desde muitos séculos, um imaginário popular funcionando pelas regras do parlamentarismo, isto por si pressupõe já as bases fortes da possibilidade de formalização do jogo da bola.
Imaginemos, por exemplo, que no Parlamento haverá sempre dois lados em disputas constantes, ao passo que no jogo de futebol também são dois times em disputa. Também há de se considerar, dentro do parlamentarismo, que as regras são estabelecidas a priori por uma monarquia, que determina o que pode e o que não pode na disputa, vigiando-a, exatamente como no futebol, onde há um juiz que vigia tudo o que pode, e não obstante paga com as honras da própria mãe o que negligencia.
Outra coisa evidente é que, nas sessões do Parlamento inglês, ainda hoje há quem ganha e há quem perde, e só às vezes existem empates, bem como no futebol, que são acirradamente disputados por inúmeros jogos, sem a expectativa que as disputas deixarão de existir um dia, reiterando constantemente a necessidade da vitória hoje e sempre, em um movimento revigorador de prestígio na disputa de campeonatos que não têm vitalícios, se no ato em que uma disputa acaba já anunciam-se todas as próximas, em rodadas, em temporadas, e globalmente em quadrienais Copas do Mundo.
Por essa invenção extraordinária, um viva para os bretões, especialmente se eles continuassem para sempre apenas com uma modesta taça, a de 1966, numa posição que os legaria, se não fosse pela criação das primeiras regras do jogo, aos coadjuvantes – futebolisticamente falando.
Das polêmicas, lembrar de Nelson Rodrigues e a “síndrome de vira-lata” é matéria obrigatória na história da bola, se ainda hoje infelizmente muita gente resvala nessa mania tosca e crônica de achar que o Brasil é ruim e que os brasileiros não prestam.
A sensação da superação do viralatismo nasceu justamente quando, na nossa primeira vitória numa Copa em 1958, Nelson inseminou através da imprensa que, enfim, vez o Brasil tinha deixado de ser e sentir-se um vira-lata das nações, e o brasileiro um vira-lata entre os povos. Este sentimento passou a compor o futebol junto à identidade nacional, transfigurando-o em um dos símbolos brasileiros mais intensos, se através das quatro linhas a gente conseguiu demonstrar superioridade diante de todas as nações, com graça e com poesia, com Pelé e Garrincha – lembrou um amigo é historiador corintiano, de Assis, Antônio Vicenzotto.
Ali, na nossa primeira vitória, foi capturada para sempre o poder de uma Copa pela autoestima de um país inteiro, que quando ganha a taça passa a se enxergar melhor, a comungar de um otimismo que põe, inclusive, assuntos econômicos para andar mais rápido.
1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. E, no anseio de erguer a taça de novo, neste exato segundo o futebol une mais as pessoas no Brasil do que quaisquer outras amenidades ou coisas sérias, sobretudo porque não vemos a hora de gritar um retumbante “é hexa!” para, quem sabe, tamponar diferenças abissais que foram forjadas nos últimos anos entre nós, fazendo nosso povo rivalizar tanto e tão pouco tempo.
O amigo e cientista político Carlos Roberto de Almeida Jr, de Marília, defende com unhas e dentes o futebol como fenômeno social multifacetado, que fica entre uma diversão diletante e uma complexa sociologia da conexão de todo um povo. Aquela ideia de que estamos todos juntos rumo a um mesmo ideal fica consolidada numa Copa que nos serve, também, como uma experiência de celebração da brasilidade e emblematiza a possibilidade de nos mostrarmos valiosos para o mundo, mostrarmos nossas cores, nossos gostos, nossa inteligência, nossa criatividade, nossos sonhos, nossa força, nosso jeito único de ser e viver. A Copa do Mundo é uma possibilidade catártica de mostrarmos para o mundo inteiro o quão incrível é o Brasil.
O célebre anfitrião e físico Leonardo José Jacobino, de Presidente Prudente, tria da magnitude da Copa a chance que ela nos oferece para viver pedaços da história do tempo presente, viver momentos históricos sabendo que estamos vivendo-os, em uma comunhão fina que pode acontecer na casa de um mais chegado, no bar, na rua ou em qualquer outro lugar onde a experiência coletiva suprima o individualismo, tanto através da energia forte deste evento bem como pela imprevisibilidade de lances que tão logo entram para os livros com o crivo de testemunhas oculares de uma grande massa torcedora.
Como não lembrar, só para citar os exemplos mais óbvios, da Seleção Canarinho, de Romário e Bebeto, do sufoco de 1998, da beleza de 2002, do fenômeno voando depois de cirurgias no joelho ou do infame 7×1? Tudo bem ou mal, virará história e passará a preencher a memória coletiva de um povo que se lembra orgulhosamente do Penta e, como numa piada interna que tem que ser brasileiro pra entender, grita em qualquer espécie de comemoração “é Tetra!”.
Meu pai, economista e advogado Luiz Carlos Taoni Neto, de Valinhos, lembra que a Copa é algo fascinante porque ela que tem o poder de mexer com a autoestima da molecada, onde improvisadamente nas peladas de rua, com bola feita de restos, traves imaginárias entre chinelos de dedo no asfalto quente, cada menino performa como pode para ser o craque da vez. Há poesia e dramaturgia neste processo de tentar encarnar o melhor jogador, e é bonito de ver.
Como disse um poeta, se todo menino é um rei, eu também já fui rei, porque se há este anseio de ser o melhor, inspirar-se no melhor, estar no melhor time, dar o seu melhor, erguer a taça mais bonita do mundo, haverá outrossim o poder de fazer uma criança vibrar positivamente, fazendo-a sentir a força desejante de ser tão bom quanto um craque da bola. Ser bom consigo, bom com os outros ou ser bom em algo é vontade que pode mudar a trajetória de uma vida inteira.
Daqui há dois dias o Brasil terá o seu primeiro jogo contra a Sérvia, parte da antiga Iugoslávia e, se Deus nos ajudar, eles ficarão tão inertes quanto aqueles duros Balcãs do leste europeu, diante da nossa jovem e criativa Seleção Brasileira.
A Copa do Mundo é nossa.