Brilha uma estrela
A vantagem de ser o mais novo do trabalho, da família, dos amigos ou da redação de um jornal é que quase sempre estou na posição de quem tem muito mais a aprender do que a ensinar. Professor aprendiz e aprendiz profissional resumiriam um sociólogo e historiador controverso de Três Lagoas/MS.
Aprendi no trabalho que a política da sala de aula exigirá sem trégua dos professores um equilíbrio delicado de forças, entre – de um lado – a necessidade de não se fazer omisso, pois há regras institucionais, prazos e etc., e – de outro – a obrigação de se manter sensível para entender que os jovens do nosso país estão bastante aflitos, não só com a própria situação psíquica, bem como com a imprevisibilidade de futuro que se desenha, especialmente pela política e pela economia.
Eles ouvem uma coisa na rádio, outra dentro de casa, outra do STF, outra do professor e um milhão de outras nas redes sociais, de sociabilidade ditada por algoritmos que formam sinistros guetos de preferências ideológicas. Neste amálgama todos terão a provável noção de que não dá para acreditar piamente em alguém ou algum grupo, se ninguém fala de um lugar sem intenções outras.
Para um jovem secundarista, não está tão explícito a irrevogabilidade das urnas eletrônicas ou o golpismo atabalhoado de civis sem civismo democrático algum. Isso tudo bagunçado pela esperança remota de ser testemunha ocular, pela primeira vez na vida, da seleção erguendo a taça, pois um hexa nos seria no mínimo alvissareiro.
Aprendi no ambiente da família, por exemplo, com o meu avô Benedito Taoni, que um estadista de grande eleitorado comumente provocará uma oposição à sua altura ou maior. Ele já me contou a mesma história várias vezes, e todas as vezes que conta ainda sinto um prazer afetivo em ouvi-la, com alguns detalhes que vão oscilando ao sabor do estado de espírito do momento, de quando outrora moço, no inverno paulistano de 1954, atravessava a Praça da Sé aos tropeços e ameaças ostensivas da polícia, esgueirado numa amorfa multidão que ora comemorava e ora chorava o suicídio de Getúlio Vargas. Uns enlutados com a impressão de que perderam um pai, o pai dos pobres, e outros bradando contrários impropérios contra um oligárquico gaúcho, na melhor das versões um caudilho.
Então, se todo mundo morre, meu avô me ensinou que uns morrem menos. Quando o Bolsonaro morrer, bem como quando o Lula morrer, sobreviverão as memórias e as narrativas de ambos, e elas passarão a povoar o inconsciente coletivo das conversas dos jantares de família, das festas comemorativas, dos feriados nacionais, das crises políticas e econômicas e da ojeriza indestrutível que parte da nação alimenta por um – e a outra metade por outro.
Por isso, se daqui há 50 anos não dá para termos nem a mais leve noção de onde o Brasil estará, embora me pareça este fantasma de um Brasil meio venezuelano mais falso do que uma nota de três pesos, provavelmente, o dicotômico ódio petismo/bolsonarismo será ainda uma ferida. Contudo, com outras personagens residuais preenchendo uma polarização que aparentemente veio para ficar na história da República, como já houve em outros lugares do ocidente democrático, vide os EUA.
Aprendi, com um pequeno rol de amigos que trago desde a adolescência, que as diferenças ideológicas mais oceânicas entre duas pessoas, parecerão uma gotinha d’água se elas verdadeiramente se amarem. Há uns três meses atrás, um grande amigo meu que não tem absolutamente nada a ver comigo, pois, é mais bonito, mais forte, mais rico, mais bem sucedido e menos articulado, menos politizado, menos acadêmico e menos letrado, me lembrou bem empertigado que, lá no colégio, a gente já sabia um pouquinho o que era esquerda e direita e quem inclinava mais para cada lado, e mesmo assim nos gostávamos numa sintonia tal que cinco dias por semana juntos não eram o bastante.
Hoje este grupo recalcitrante de amigos sabe, uns mais, outros um pouco menos, quais são os espectros básicos da vida política do país e do mundo. Contudo, sabido tudo isso, as coisas que mais perfazem a nossa prosa não são do tipo o liberalismo do Guedes versus o keynesianismo do Haddad, mas mais um ímpeto de molecagem saudosista temperado com a impressão típica de que nós brasileiros parecíamos nos detestar menos, nos compreender mais, nos amarmos melhor. Dá verdadeiramente um pouco de saudade, de quando ninguém olhava desconfiado para o outro que soube concordar com a apuração do segundo turno de um país redemocratizado não há tanto tempo, tendo seu candidato ganhado ou perdido, em nome do respeito da vontade da maioria.
Aprendi, no exercício de escrever regularmente para um veículo de comunicação, a concordar com o que o nem sempre bem-humorado Edu Lobo pressagiou: um bom trabalho é produto de uma boa ideia com pouco tempo. Ratificando, é que prefiro produzir na véspera, na maioria das vezes a noite, sob o insuspeito álibi que surgirá alguma luz intempestiva para compor um texto virulento ou mais engajador.
À procura desta luz, foi curioso no céu desta noite clara olhar da janela do quarto o nosso Cruzeiro do Sul. Nosso, porque é apenas no Sul da Terra que é possível contemplá-lo, o guia astronômico fácil de achar para os pecados do lado debaixo do Equador. A estrela está lá, todos os dias, em cima de ameaças armadas, dos bloqueios rodoviários eivados com reivindicações estapafúrdias, dos acampamentos em frente aos quartéis, da tentativa de monopolização da bandeira nacional. Está lá, brilhando, e tomara que aos poucos clareie a perversa tônica do medo, como o afeto político mais poderoso dos nossos tempos.
Brilham as estrelas.