Combustível no dos outros é refresco
Todos os dias a maioria dos brasileiros e brasileiras suam a camisa na maior dignidade para conquistar o sustento, de modo que a gente está acostumado sempre com o mesmo caminho da roça diário. Pula cedo e é da casa para o trabalho, chega o fim do expediente, aí é do trabalho para a casa. As mesmas ruas, as mesmas pessoas, os mesmos trajetos, os mesmos horários. Mas, de uns meses pra cá, algo está diferente nas ruas de Marília, e do resto do país… Já reparou na quantidade de bicicletas que estão circulando por aí? Não estou falando dos ciclistas que pedalam por esporte estas bikes super caras e tecnológicas. Estou falando, e é bom frisar, do Seu João que é jardineiro da empresa, mora longe, e vai e volta de barra forte depois de cortar grama o dia todinho. Ou da Dona Cida, que é cozinheira e vai de monark enferrujada para o restaurante depois de cozinhar e lavar por horas a fio. E o Cleiton?, filho adolescente do João e da Cida, que arrumou a bicicleta para ir trabalhar de garçom freela em um restaurante que paga 50 reais por 8 horas de exploração sem choro, nem vela, nem fita amarela, nem direitos trabalhistas. Tem gente chamando esta gente de ¨bicicleteiros¨. Acho ¨brasileiros que não desistem¨ mais compatível.
Mas andar de bicicleta não é bom? Não! Não é. A não ser que você esteja andando porque quer, pois, do contrário, foi o preço absurdo dos combustíveis no Brasil que levou você a não conseguir encher um tanque por mais ou menos R$ 260,00 de etanol, ou por módicos R$ 340,00 de gasolina. A bicicleta é o jeito digno que os trabalhadores estão dando pra não ficar literalmente na canela e, com certeza absoluta, muitos incautos ainda dirão: “Calma aí, amigo! Não é pra tanto… Trezentão pra encher o tanque, se o carro for econômico, se o carro for bom, se a pessoa souber dirigir, se colocar na banguela, até que rende bastante… “. É muito ¨se¨, não é? Quando os ¨se¨ aparecem de mais, atenção, é porque estão mentindo para você na maior.
Para não cair na lorota romântica de que o pobre faz bem em pedalar por aí uma bicicleta mais velha que o século XXI, é necessário atentarmos, então, para outros dados. Primeiro: atualmente a maior parte da população brasileira está na faixa da PEA (População Economicamente Ativa), isto é, mais da metade dos 220 milhões de brasileiros do nosso Brasil varonil precisam trabalhar, pois estão na idade ideal para tanto. Segundo: como nem tudo são flores faz tempo, hoje a maior parte dos trabalhadores da PEA estão na condição do trabalho informal, ou seja, ganham muito mal e não têm quaisquer direitos. Terceiro: combustível é fonte de energia, e energia está entre as coisas mais básicas que compõem a ordem de consumo de alguém que vive numa civilização industrializada. Logo, se o preço do litro de um combustível qualquer escapa da possibilidade de muita gente consumir, está feito o tripé da desgraça.
Imagine um jovem motorista de aplicativo que dirige umas 8 horas por dia, 6 dias por semana, para no fim do mês ter um líquido médio de um salário mínimo. Nesta proporção sofrida, então, um tanque de etanol hoje é 22% do que ele ganha, enquanto que um tanque de gasolina dá mais ou menos 28%! E como que faz com o resto? E o aluguel? A feira? Mercado? Como faz para ter algum lazer? E se acontecer alguma eventualidade? O óbvio ululante, atingimos no primeiro trimestre de 2022 o inexequível cenário de um país que produz 3 milhões de barris de petróleo por dia – 1 barril tem quase 160 litros – e, ao mesmo tempo, pratica preços de combustíveis que o trabalhador sofre para consumir. Sem falar nos milhares de hectares de cana-de-açúcar em SP que faz todo mundo pensar porque nem o etanol vale a pena. Eu, que já ouvi a maldade e a ignorância falarem mais alto várias vezes na vida, te convido a ponderar junto comigo e com calma: de quem será a culpa disto? Quem são estes que fazem a gente pastar? E porque fazem?
Se já te ocorreu algo como ¨a culpa é daquele russo ufano que invadiu a Ucrânia covardemente e gerou 100% de aumento do preço do barril em dólares¨, calma! De fato, Vladimir Putin de santo não tem nada. De fato, a guerra na Ucrânia é um ingrediente infeliz para a precificação dos combustíveis no mundo. Porém, em 2021, ano passado, no Brasil os combustíveis aumentaram na média quase 90%. Em lugares onde comumente custa mais caro, pelas dificuldades de produção e oferta, passamos de 100% de reajuste. Em doze meses apenas a gasolina, o diesel, o querosene de avião e o etanol dobraram ou quase! Isto é desconcertantemente ruim.
Para chegarmos em uma explicação mais razoável, te convido para uma viagem no tempo de mais ou menos uns 25 anos. Mas é rapidinho, só os melhores momentos… Bora!? Em 1997 a Petrobras virou uma empresa mista, ou seja, metade do Estado (51%), e a outra metade da iniciativa privada (49%), composta por um rol não muito numeroso de poderosos acionistas invisíveis. Fernando Henrique Cardoso, motivado por um programa de reestruturação econômica do país, saiu privatizando geral, símbolo maior do PND (Programa Nacional de Desestatização) foi a venda a preço de banana da antiga Cia. Vale do Rio Doce. A Petrobras resistiu, porém, 49% dela foi comido por ações privadas, e quem compra ação quer lucrar e só – mercado financeiro não é lugar de gente boazinha, Madre Thereza de Calcutá não compraria ações, por exemplo..
Já um pouco mais tarde, durante os três governos e meio do PT, houve coisas surpreendentemente curiosas. Primeiro, com a descoberta das jazidas do Pré-Sal no Oceano Atlântico, ainda no governo Lula, o Brasil foi parar entre os 15 maiores produtores de petróleo do planeta. Imagina, do nada, a gente figurar em um ranking com Canadá, Rússia, Arábia Saudita, Venezuela, Irã e Iraque. Pois é, foi o que houve. Mas, há a segunda curiosidade que quase estraga a primeira, porque a política energética do PT, fora a descoberta do Pré-Sal, foi horrível. Continuamos a depender quase que 100% de hidroelétricas e termoelétricas, enquanto as refinarias brasileiras que já não são muitas não acompanharam o desenvolvimento tecnológico necessário para transformar o nosso petróleo em gasolina, diesel e querosene mais acessíveis. Dilma Rousseff foi, aliás, a ministra da pasta e comandou o Ministério de Minas e Energia até 2010. E porque a gente não sentiu o baque naqueles anos? Porque o desemprego era baixíssimo, o acesso ao crédito alto e o câmbio (relação do real com o dólar americano) era tão bom que, apesar do ressentimento do Paulo Guedes, muita gente humilde conseguiu ir para Disney. Logo, dava para importar gasolina e diesel em dólar, e vender nossa matéria prima por aí, que não doía tanto. Na verdade, a gente não percebeu que a questão dos combustíveis no Brasil ali já era uma bomba de pavio curto, só faltava acender.
Relembrar é viver. A equação de qualidade de vida crescente que nós experimentamos até 2010, grosso modo, era muito delicada e foi ela toda chacoalhada pelo MPF (Ministério Público Federal) na gigantesca Operação Lava Jato, iniciada em 2014. Na primeira ação, em março, a investigação apontou para a atuação de quatro doleiros que comandavam quatro núcleos de informações e práticas ilícitas entre si. Entre os 28 presos estavam Nelma Kodama, Raul Srour, Alberto Youssef e Carlos Habib Chater. Daí pra frente a Petrobras despencou do oitavo andar. Perdeu valor, reconhecimento, prestígio, imagem, o diabo que a gente possa imaginar ela perdeu, como dizia meu saudoso avô Nestor: ¨ficou mais dura que a carne do apá¨. O MPF fez o que precisava fazer, contudo, no meio daquele incêndio todo das prisões e denúncias e delações, uma faísca escapoliu e acendeu a bomba da crise que desdobraria nas veias abertas do Brasil.
E, mesmo assim, Dilma democraticamente venceu as eleições de 2014 com o voto da maioria e, doa a quem doer, esta eleição foi auditada e Aécio Neves colocou a viola do segundo turno no saco. No entanto, devido ao início da recessão econômica do Brasil, mescladas às oscilações de mercado, além do dólar não tão barato quanto a gente estava acostumado, somados à evidente incapacidade da presidenta de tourear toda a situação, os combustíveis começaram a subir de valor. E a subir… E a subir… E foi ladeira acima sem preguiça. Quando o litro da gasolina atingiu R$ 3,50 alguém da oposição inescrupulosa fez um adesivo da ex-presidenta, com as pernas abertas bem no lugar onde se introjeta o cano de onde sai o combustível. Hoje, a gasolina custa quase R$7,00 o litro nos lugares mais baratos e eu ainda não vi adesivos do Bolsonaro sendo estuprado. Ainda bem, aliás, não dá pra justificar uma atrocidade pela outra.
Falando nele.. Bolsonaro venceu as eleições de 2018 com aproximadamente 60 milhões de votos legítimos. E ele avisou a nós todos ̈eu não sei de economia, esses assuntos podem tratar com o Paulo Guedes¨. Interessante alguém se eleger democraticamente, em um país que àquela altura ainda estava entre as dez maiores economias do mundo, com a frase ¨eu não sei economia¨. Mas, o mundo gira. Nos últimos semestres o governo decidiu não intervir muito nos assuntos da Petrobras, que ainda permanece em sua maioria sob a tutela do Estado. Então, o que diabo se fez e faz lá nos gabinetes que decidem para onde vai o Petróleo? É assim, olha só a tramoia: pegam o nosso petróleo e vendem para fora, exportam, porque hoje 1 dólar se transforma em aproximadamente 6 reais. No entanto, para nós que não somos nem do governo, nem acionistas, nem doleiros, nem nada além de gente que dá a maior raça para viver, vem o combustível de fora, importado, que quando transformado em reais, dá nesta tragédia que a gente vê em quaisquer postos de combustível. E por que fazem assim? Porque há uma ganância infinita de algumas centenas de poderosos invisíveis que lucraram com a Petrobras R$ 106,6 bilhões no ano passado, um aumento de 1.400% em relação aos R$ 7,11 bilhões em 2020. Isto tudo, é claro, às expensas dos brasileiros que sangram para abastecer seus carros e suas motos que, sabe-se lá até quando, nos levam para trabalhar todo santo dia, todo dia de santo.
E o Putin? O Putin é só mais uma parte triste que resvalou na nossa história. Em briga de elefantes quem sofre é a grama, está na bíblia. Os 18% que marcam o último aumento nas bombas de combustível do país, seriam menos doloridos no nosso bolso apenas se já não estivéssemos degringolado desde, pelo menos, 2014. Ser brasileiro não é para os iniciantes, porque ainda por cima subirão todos os produtos que dependem do óleo diesel para saírem das fábricas e chegarem até os comércio. Isto é, no caso de um país cheio de rodovias como o nosso, subirá o preço de praticamente tudo. Ou, no economês, sofreremos com a inflação – que é a sensação de que o nosso dinheiro não vale nada na fila do pão. Mas, tenhamos fé, Seu João, Dona Cida e Cleiton, porque outubro chegando a gente tem condições de tentar algo diferente. Até lá, leitores, acreditem, andar de bicicleta ainda será a realidade de muita gente que só queria ir para o trabalho com um pouquinho mais de conforto.
***
Professor Taoni é Geógrafo e mestre em História. Leciona na rede de escolas particulares de Marília e região.
Foto que ilustra o artigo: David Richard / @davidrichardfoto