‘Cada criança com deficiência traz uma família fragilizada que também precisa ser cuidada’

Fundada em Marília em 11 de maio de 1968, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) nasceu da necessidade da inclusão de crianças especiais no ensino regular de ensino. À época, principalmente as com síndrome de Down.
Ainda hoje, a entidade é associada ao atendimento a esse público. A própria Apae utiliza a imagem de crianças do Down como “garotos propaganda” de suas publicações oficiais, seja no site ou nas redes sociais.
Mas os tempos e os perfis de atendimento mudaram. “As pessoas com Down são o público que a gente tem em menor quantidade na atualidade. A Apae atende a uma gama de síndromes”, afirmou a diretora pedagógica, Renata Sândalo.
Em entrevista ao Marília Notícia, a profissional fala sobre as transformações da Apae de Marília desde sua chegada, há 25 anos, desde a mudança do público-alvo, a meio pelo qual os alunos chegam à entidade. “Não somos porta de entrada”, frisou.
A diretora-pedagógica revela ainda como o episódio envolvendo a Apae de Bauru afetou a entidade em Marília e sobre a dificuldade do acompanhamento das famílias dos alunos atendidos nas atividades em contraturno.
Renata Sândalo é servidora pública municipal – uma das três únicas cedidas pela Prefeitura à Apae. É formada em Pedagogia com habilitação em Administração Escolar, especialização em Educação Especial na área de deficiência intelectual e pós-graduada ainda em Atendimento Educacional Especializado. Ela é casada e tem três filhos.
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MN – Como era a Apae quando a senhora começou a trabalhar na entidade?
Renata Sândalo – Eu entrei na Apae há 25 anos. A estrutura era um pouquinho menor e a gente tinha uma equipe mais reduzida de funcionários. Hoje a organização consegue dividir bem as áreas entre Saúde, Educação e Assistência Social. Houve um investimento muito grande também na capacitação em currículo funcional natural, que era uma proposta de ensino que visa a melhoria da qualidade de vida das pessoas com deficiência.
MN – Qual era o público-alvo à época?
Renata Sândalo – Não é mais o mesmo. A Apae atende pessoas com deficiência intelectual múltipla e transtorno de espectro autista associado à deficiência intelectual. O nosso público são os alunos que não se beneficiam no sistema regular de ensino. Por isso, a Apae não é porta de entrada. Pela lei brasileira de inclusão, o aluno tem direito de estar primeiro na rede regular de ensino. Se ele não se beneficiar, ele é encaminhado para instituições como a Apae.
MN – Quantos alunos são atendidos atualmente pela Apae?
Renata Sândalo – Atendemos cerca de 200 alunos. Na área da Assistência Social, é acima de 30 anos. Pela Educação Especial é de três a 34 anos de idade e de três a 30 para alunos que têm maior comprometimento. Até os 34 anos, nós temos Educação Especial para o Trabalho. Depois dos 30 anos os alunos vão para um programa que é da Assistência Social que se chama Centro Sócio Ocupacional. Aqui o enfoque já não são atividades pedagógicas, mas atividades sócio ocupacionais. São serviços com dias reduzidos, com equipe que vem segunda e quarta, outra terça e quinta. Neste caso, eles ficam até o envelhecimento. Já pela Saúde nós temos parceria com a secretaria municipal com média de 50 pessoas atendidas. Não necessariamente que tenham deficiência intelectual, às vezes o atraso. Às vezes é necessário apoio de fisioterapia, de atendimento terapêutico. Neste caso, não são alunos da Apae, mas crianças que estão na rede regular de ensino, de zero a seis anos de idade, e vêm fazer só atendimento terapêutico.

MN – Ou seja, é um atendimento que envolve três áreas diferentes…
Renata Sândalo – Sim. Dentro da Apae nós temos a Escola de Educação Especial, que é jurisdicionada à Diretoria Regional de Ensino. Funcionamos como uma escola. Os alunos têm RA, fazem parte do Censo. E nós temos as outras duas áreas, que são o suporte à educação, que são a Saúde e a Assistência social.
MN – Para que não haja dúvidas, qual é o público elegível para ser atendido pela Apae?
Renata Sândalo – É importante que as pessoas tenham clareza quanto a isso. Cada instituição da cidade tem um público característico que recebe o financiamento para atender. Nós recebemos pessoas com deficiência intelectual múltipla e transtorno de espectro autista associado à deficiência intelectual, que não se beneficiaram do sistema regular de ensino. Nós temos financiamento para Educação Infantil e Ensino Fundamental apenas do ciclo 1, que corresponde do primeiro ao quinto anos. Alunos que estão acima desta etapa não são público elegível para o atendimento na Apae.
MN – Como a senhora avalia as políticas públicas de inclusão das pessoas com necessidades especiais?
Renata Sândalo – Vejo com alegria, entusiasmo e muito otimismo. Ao longo dos anos houve um avanço significativo nas políticas em defesa da pessoa com deficiência que atendam melhor essa clientela quando está no sistema regular de ensino. Se vocês fizeram um estudo hoje, for na Secretaria da Educação e pegar os registros dos últimos 10 anos, vão notar que aumentou significativamente a quantidade de pessoas com deficiência que estão na rede regular de ensino. A criança tem que estar na rede regular de ensino e só vai para uma escola especializada quando precisa. Nós somos totalmente a favor da inclusão.
MN – Isso inclui a pré-escola?
Renata Sândalo – Nós não temos criança com três anos de idade na Apae. Oferecemos e não temos. Acreditamos que a criança, quando está no ápice do aprendizado, precisa de beneficiar com modelos positivos, com aquele que fala muito perto dela, que vai ter comportamentos adequados. Se eu colocar uma criança que está no período de aquisição da linguagem, aquisições motoras, perto de uma sala que só tem alunos cadeirantes que não oralizam, que modelo seguirá? A gente tem visto que existe a falta de cuidadores, mas é preciso conviver com crianças no ensino regular. Há casos em que a gente devolve a matrícula para o município, porque às vezes o aluno não é elegível. A Apae, neste ponto, não é segregadora, mas inclusiva.

MN – Na sua opinião, que profissionais poderia apoiar as crianças com necessidades especiais nas próprias escolas?
Renata Sândalo – Eu acho que seria fundamental uma assistente social e uma psicóloga em cada escola. A gente sabe que já existe um grande investimento em psicólogos em escolas particulares. A assistência social é muito importante porque muitas vezes a criança apresenta alterações significativas de comportamento, evasão escolar e, às vezes, o problema está dentro da família. Alguma coisa está acontecendo dentro daquele núcleo que precisa de um apoio. Pode ser problema de medicação, seja falta, ausência ou administração inadequada. Eu sei que isso é uma realidade um pouco distante para nós, mas é muito importante.
MN – Na Apae, quais profissionais fazem este acompanhamento?
Renata Sândalo – Nós temos um psiquiatra e uma neurologista infantil porque nós trabalhamos muito perto com a Educação. Há alunos que têm alterações significativas de comportamento, e que precisam de novas adequações medicamentos. As nossas professoras fazem relatórios, encaminham para a psiquiatra da instituição, com os comportamentos que estão sendo apresentados, e a psiquiatra faz os ajustes e escuta a família. A gente consegue acompanhar bem de perto. A pessoa com deficiência ela necessita de uma equipe multidisciplinar. Ou seja, de uma escola especial, com ensino adequado, independente do lugar, se é na rede regular de ensino ou não. A pessoa precisa desse acompanhamento do serviço de assistência, do terapêutico.
MN – Que apoio a Apae oferece hoje às famílias de seus alunos?
Renata Sândalo – Quando a família chega até a gente, verificamos qual é a realidade e fazemos encaminhamentos para os serviços públicos e fornecemos orientações jurídicas. Também fazemos um acompanhamento sistemático dessa família, porque aquelas que têm um filho com deficiência está com uma fragilidade emocional muito grande e precisa de todo esse aparato. Por isso, nosso acompanhamento com visitas domiciliares.
MN – Como tem sido esta parceria da Apae com as famílias dos alunos?
Renata Sândalo – A maior dificuldade que a gente tem é de famílias que não aderem ao atendimento terapêutico que só pode ser oferecido no contraturno do horário escolar. A família realmente tem que se mobilizar, buscar estratégias para trazer esse aluno. A pessoa com deficiência vem para uma instituição especializada porque realmente necessita de um atendimento multidisciplinar. Ela consegue ficar bem na sala de aula se passar por um psicólogo, e só vai conseguir desenvolver a fala se tiver atendimento como fonoaudiólogo. A falta de adesão dessas famílias aos atendimentos terapêuticos acaba nos entristecendo muito, porque nós temos uma equipe que está à disposição para fazer a diferença.

MN – A Apae nasceu em 1954 para atender as crianças do síndrome de Down. Ainda hoje pé o principal público?
Renata Sândalo – Não, as pessoas com Down são o público que a gente tem em menor quantidade. A Apae atende uma gama de síndromes. E as crianças com síndrome de Down, até pela própria deficiência, têm uma capacidade muito maior, têm um cognitivo mais preservado.
MN – Como esta variedade de síndromes atendidas, como a Apae poderia servir de estudo para os universitários das áreas de Saúde em Marília?
Renata Sândalo – Antigamente, a gente tinha muitos alunos que faziam visitas, que vinham ver de perto esses alunos. É uma realidade que está aí. Esses alunos fazem parte da nossa cidade, da nossa região, essas pessoas existem. E depois vão estar nos consultórios, nos consultórios odontológicos, vão ocupar os espaços de Saúde. Temos síndromes raríssimas na Apae de Marília. Um leque de deficiências que, muitas vezes, o estudante vai estar vendo nos livros, mas ele tem a possibilidade de estar vendo na prática. Fica o convite para que essas pessoas venham até aqui. Estamos de portas abertas. Nós queremos colaborar com as faculdades e universidades. Às vezes, os profissionais de Saúde encontram dificuldades por falta de conhecimento na prática.
MN – A Apae conta com quantos funcionários hoje para dar conta de seu atendimento?
Renata Sândalo – Quando eu entrei aqui na Apae, 99% eram funcionários cedidos pela Prefeitura. A instituição só pagava os do administrativo. Depois, com os termos de colaboração, a Prefeitura passou a nos enviar um recurso para que a própria instituição contrate esses funcionários. Temos hoje 100 funcionários. Nós tínhamos uma média de 90 que eram cedidos pela Prefeitura. Hoje são apenas três.
MN – Com quais fontes de recursos a entidade se mantém hoje?
Renata Sândalo – A Apae precisa muito de apoio financeiro. Nós recebemos recursos do governo federal, estadual e do municipal. A Prefeitura de Marília, aliás, é a nossa maior parceira. O município nos ajuda tanto com a parte de pagamento de funcionários, como também no transporte. Temos oito ônibus adaptados, além de vans. Nosso prédio é muito grande e temos um gasto muito grande na manutenção da instituição. Importante dizer que os recursos vêm carimbados. Ou seja, com destinação específica. Por isso, a gente promove festas como a Feira da Bondade. Temos um serviço de telemarketing que até mudou o formato de recebimento de doações. Muitas pessoas preferem fazer o Pix em vez de receber mensageiro até a residência. Há ainda o programas Empresa Amiga da Apae. Precisamos sempre de novos recursos para investir na capacitação dos funcionários para manter a qualidade de nosso atendimento.

MN – Como o episódio envolvendo a Apae de Bauru refletiu na instituição em Marília?
Renata Sândalo – Nós ficamos bem assustados. É muito triste quando se trata de pessoas com deficiência, de famílias tão carentes em que os recursos têm que chegar para eles. Elas são a nossa prioridade. Aqui nós trabalhamos com muita transparência porque todas as áreas recebem recursos. Nós nunca tivemos problemas nesse sentido. A Apae é uma marca muito forte e quando acontece uma situação como essa gera desconforto e desconfiança da população. Houve uma queda nas doações porque as pessoas acabam comparando. Na nossa Apae de Marília todos os recursos são realmente utilizados em prol dos nossos alunos e das nossas famílias atendidas. É importante esclarecer.
MN – Como tem sido a experiência da Apae no encaminhamento de seus alunos ao mercado de trabalho?
Renata Sândalo – Ao longo do tempo, nós temos experiências de encaminhar tanto pessoas com síndrome de Down quando aqueles que têm a deficiência intelectual. Temos muitos alunos que estão há mais de 10 anos no Tauste Supermercados e também no Confiança, Atacadão, Coca-Cola, Atacadão. Para nós é uma alegria quando um aluno sai da instituição e consegue ser incluído na sociedade. Ninguém estuda a vida toda e nós não queremos que os nossos alunos permaneçam a vida toda dentro da instituição. Nós precisamos prepará-los para que esteja incluído na sociedade. Infelizmente, muitas vezes, ele não consegue ser incluído nem dentro da própria família.
MN – Há uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que questiona o financiamento das Apaes no Paraná. Se a instituição perdesse seus recursos conseguiria sobreviver?
Renata Sândalo – Seria um impacto negativo muito grande porque nós temos a responsabilidade de receber os alunos dentro da instituição e de encaminhar somente os casos que não se beneficiaram do sistema regular de ensino. Eles têm o direito de estar no sistema. Não é questão apenas educacional, mas de saúde, são de grande fragilidade. São alunos que não têm como estar na rede regular de ensino pela gravidade das suas deficiências. Por isso necessitam de um ambiente especializado, com uma quantidade muito reduzida de alunos por sala, com acompanhamento sistemático, com enfermeira dentro da instituição. Aqueles que têm potencial não estão na instituição. Nossos alunos estão aqui dentro da instituição porque realmente necessitam. Por isso, a Apae é tão essencial na vida de cada atendido.