Armas e ‘homeschooling’ afastam evangélicos em SP do bolsonarismo, aponta Datafolha
Não é sempre que valores bolsonaristas arrebatam os evangélicos paulistanos. Armas e ‘homeschooling’ são temas que afastam as igrejas de Jair Bolsonaro (PL) e aliados, mostra pesquisa Datafolha.
Outros tópicos, como educação sexual e igualdade de gênero na sociedade, bandeiras que poderiam muito bem tremular em raias progressistas, também têm simpatia nos templos da capital paulista.
O descompasso diminui quando se fala de aborto e casamento homoafetivo. Nesses pontos há um alinhamento maior entre fiéis e falanges conservadoras, embora a rigidez ideológica amoleça a depender de como o debate se coloca – prender mulheres que abortam, por exemplo, não é uma causa popular.
Para entender como pensa o evangélico típico da maior cidade do país, o Datafolha entrevistou entre 24 e 28 de junho 613 paulistanos que declaram essa fé. A margem de erro é de quatro pontos percentuais.
A polarização não dá todas as cartas aqui. Quando você pergunta se o aborto deve deixar de ser crime, 68% desses religiosos vão dizer que não. O jogo vira se a questão é sobre processar e encarcerar a mulher que interrompe uma gravidez. Aí só três em cada dez evangélicos concordam que sim.
Preservar o atual status legal do aborto agrada a 48% do grupo – que o procedimento valha, portanto, para casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto anencéfalo.
A parcela que aceita ampliar o escopo para mais situações é de 17%, e os que defendem liberar a suspensão da gravidez em todos os casos encolhe ainda mais: 4%. Proibir o aborto em qualquer contexto tem aderência de 25% da amostra.
A perspectiva de aprisionar quem aborta voltou à berlinda após a Câmara dos Deputados pôr em regime de urgência um projeto de lei que equipara quem aborta com mais de 22 semanas a um homicida. Caso aprovado, a legislação brasileira seria tão dura quanto a de países como Afeganistão.
A premissa de que pessoas do mesmo sexo têm direito à união civil tem a bênção de 26% dos evangélicos. Os contrários são 57%, enquanto o restante se divide entre indiferentes ao assunto ou quem não sabe responder. A possibilidade de um casal gay adotar filhos recebe acolhida maior: 43% acham ok, 42% são avessos.
Pode parecer um contrassenso que uma ampla maioria evangélica (86%) subscreva a ideia de que igrejas devam se abrir a homossexuais e trans, já que tantos não toleram que essas mesmas pessoas se casem ou adotem crianças.
A postura, contudo, está em sintonia com discurso recorrente no cristianismo, de que Deus ama o pecador e repudia o pecado – como a identidade LGBTQIA+ em geral é vista nesses círculos.
A pauta das armas, cara ao bolsonarismo, não empolga os crentes de São Paulo. Apenas 28% aprovam a prerrogativa de que o cidadão possa ter uma arma para se defender. Essa agenda nunca foi pop nos púlpitos, mas a aliança entre pastores e Bolsonaro, e também entre as ditas bancadas da Bíblia (evangélica) e da bala (segurança pública), levou líderes a abandonar críticas mais diretas.
Se em 2015 o pastor Silas Malafaia afirmava que rever o Estatuto do Desarmamento era “um verdadeiro absurdo”, em 2022 passou a dizer que, ainda que pessoalmente não seja afeito a armas, cabe ao povo, “soberano”, decidir se as pessoas têm direito a andar armadas.
Enquanto presidente, Bolsonaro encampou a causa da educação domiciliar, o homeschooling, uma demanda de famílias que temem a intervenção do Estado na formação dos filhos e uma suposta doutrinação da esquerda nos colégios.
O modelo não encontra eco na base evangélica. Só 19% apreciam a sugestão de que pais possam substituir a escola por aulas em casa. Sobretudo para quem está na periferia, o sistema de ensino é uma importante rede de apoio e até fonte de alimentação via merenda, o que explica em parte a rejeição ao homeschooling.
A cada quatro fiéis, três acham que a escola deve abordar educação sexual. A fatia é expressiva, considerando que ultraconservadores propalam há anos o falso pressuposto de que a esquerda usa salas de aula para promover uma iniciação sexual precoce e inclinada a plataformas LGBTQIA+.
Claro que a compreensão sobre o que é educação sexual vai variar de interlocutor para interlocutor. A senadora Damares Alves, enquanto servia ao governo Bolsonaro como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chegou a defender que a abstinência sexual fosse ensinada como método contraceptivo.
A pesquisa mostra ainda uma gangorra, no segmento, entre princípios associados a esquerda e direita.
Da leva mais progressista: 89% concordam que homens e mulheres devem ter papel igual na sociedade, e 81% defendem o equilíbrio entre gêneros dentro da família, a despeito de pastores que pregam a submissão feminina usando a passagem bíblica que diz: “O marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja”.
Pelo viés mais conservador, 79% ratificam justamente a sentença “a Bíblia deve ser levada ao pé da letra em todos os aspectos”. Já 81% apoiam que a mulher deve ter modéstia ao se vestir.
Para a socióloga Christina Vital, que coordena o Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião da UFF, a sondagem revela rachaduras entre o que espera a base e o que apregoa a liderança evangélica.
A questão armamentista é um exemplo. “É sabido pelos moradores de favelas e periferias que as armas vulnerabilizam suas condições de vida cotidianas. Os números são do Atlas da Violência: 104 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram assassinados entre 2012 e 2022, 81,5 % deles por armas de fogo.”
Posições sobre o aborto também chamam a atenção de Vital. Ainda que a maioria não acate a descriminalização do recurso, só 29% são a favor da prisão para mulheres que a ele recorram. “Mais um ponto que leva à reflexão sobre as nuances entre a percepção do que é certo do ponto de vista legal, moral e religioso e o modo como evangélicos lidam com as questões no cotidiano.”