Veto a procedimento de aborto legal já afeta atendimentos a meninas estupradas
A resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proíbe médicos de realizarem um procedimento necessário para interromper gestações com mais de 22 semanas resultantes de estupro já causa entraves em hospitais brasileiros que fazem o aborto legal.
A norma veta a assistolia fetal, que consiste numa injeção de produtos químicos que provocam a morte do feto para, depois, ser retirado do útero da mulher. O procedimento é recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para casos de aborto legal acima de 20 semanas para evitar, entre outras coisas, que o feto seja expulso com sinais vitais antes da sua retirada do útero.
Desde a publicação da norma na quarta-feira (3), a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) já foi comunicada de pelo menos quatro casos de mulheres e crianças estupradas, com gestações avançadas, em que os médicos estão temerosos em interromper a gravidez devido ao veto imposto pelo CFM.
Um desses casos é de uma menina de 12 anos e que está grávida de 27 semanas. Há autorização judicial para o aborto mas, mesmo assim, a equipe médica teme sofrer represálias do CFM.
“Estamos recebendo várias queixas de médicos, do Amazonas ao Nordeste, de meninas que estão chegando com gestações mais avançadas para interrupção da gravidez e os médicos não estão sabendo o que fazer porque se sentem proibidos pelo CFM”, afirma o Rosires Pereira, presidente da comissão de violência sexual e interrupção da gestação prevista em lei da Febrasgo, federação que reúne ginecologistas e obstetras brasileiros.
Segundo ele, a comissão está sugerindo que os médicos desses serviços entrem em contato com as Defensorias Públicas e Ministérios Públicos das suas regiões para obter amparo judicial.
A comissão presidida por Pereira, que reúne 16 especialistas na área, elaborou uma nota se manifestando contra a resolução do CFM. O posicionamento deve ser divulgado nesta sexta-feira (5) e encaminhado aos médicos e a diversas instâncias jurídicas com o intuito de suspender a norma.
“Do ponto de vista do direito, não há limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Quem procura interromper a gravidez depois de 22 semanas? São sempre pessoas pobres. Mulheres jovens, meninas de 10, 11, 12 anos que foram violentadas em domicílio que, por uma série de razões, não conseguiram acesso rápido ao aborto legal.”
Do ponto de vista do direito, não há limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Quem procura interromper a gravidez depois de 22 semanas? São sempre pessoas pobres. Mulheres jovens, meninas de 10, 11, 12 anos que foram violentadas em domicílio que, por uma série de razões, não conseguiram acesso rápido ao aborto legal presidente da comissão de violência sexual e interrupção da gestação prevista em lei da Febrasgo.
Ele relata o caso de uma mulher de Curitiba (PR) que foi violentada e mantida prisioneira por um traficante. Com a prisão do homem, ela procurou o serviço de aborto legal com 24 semanas de gestação.
“Essa mulher tem direito de interromper a gravidez ou não tem? Onde estão os direitos humanos? A gente tem que proteger essas mulheres.”
Em artigo divulgado nesta quinta (4), o desembargador José Henrique Torres, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma que a resolução do CFM é “ilegal e inconstitucional”. “[É] fruto de ideologia patriarcal e nutrida por avaro moralismo, mas, sobretudo, é um acinte aos direitos das mulheres”, diz.
Torres defende a revogação da norma. “Por respeito aos médicos e médicas que atuam incansavelmente na defesa e garantia dos direitos das mulheres, por respeito à histórica luta das mulheres pela conquista de direitos e dignidade, essa resolução deve ser revogada.”
Em comunicado, a Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice/Brasil), vinculada a grupo internacional de médicos em mais de 25 países, classificou a norma do CFM como “ultrajante”.
“A resolução deixa claro que o CFM tem sido utilizado como ferramenta ideológica que, à revelia das evidências científicas, busca criminalizar tanto as meninas e mulheres que necessitam de um aborto induzido como os profissionais da medicina que cumprem seus deveres legais e profissionais ao assisti-las”, diz trecho do documento.
Como o Código Penal não impõe limite de tempo ao aborto legal, a rede médica entende que qualquer limitação que o CFM queira impor à realização do procedimento deva ser interpretada como ilegal.
Segundo a rede médica, crianças e mulheres mais jovens e vulneráveis são as que mais necessitam de cuidados em aborto depois de 20 semanas e que, agora, “serão impedidas de acessar esse direito de saúde pela resolução”.
Muitas vezes, diz o documento, as crianças e mulheres chegam aos serviços de saúde para um aborto legal após as 20 semanas de gravidez por enfrentarem “atrasos logísticos e recusas de cuidado antiéticas e propositais que visam postergar o procedimento”.
Em entrevista a jornalistas concedida pelo CFM nesta quinta, o ginecologista e obstetra Raphael Câmara Parente, relator da resolução, negou que a norma seja inconstitucional ou que vá prejudicar meninas e mulheres mais vulneráveis que não têm acesso ao aborto legal antes das 22 semanas. “Qualquer maternidade do Brasil pode fazer aborto de primeiro trimestre”, disse.
Questionado pela Folha de S.Paulo sobre a razão de o CFM proibir um procedimento recomendado pela OMS, Parente respondeu que tanto a organização quanto a Folha de S.Paulo têm conflitos de interesse em relação ao aborto.
“A OMS é assumidamente, assim como a Folha é, a favor da descriminalização do aborto em qualquer circunstância e em qualquer idade gestacional. A OMS tem lado nessa história, é a favor da liberação do aborto, de matar bebê em qualquer idade gestacional.”
Não é verdade que a Folha de S.Paulo defenda o direito ao aborto em qualquer idade gestacional.
No editorial Legalizar drogas leves, aborto e eutanásia, publicado em 23 de março, a Folha de S.Paulo afirma: “Seguir o que democracias avançadas preconizam seria proveitoso para o Brasil também no caso do aborto por opção. Fixar um período máximo, nas semanas iniciais da gravidez, em que o procedimento é permitido e pode ser realizado no sistema público de saúde equilibra o direito da mulher sobre o seu corpo com o do nascituro”.
A decisão do CFM ocorre pouco mais de um mês após o Ministério da Saúde suspender nota técnica que estabelecia que não deveria haver limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei – o Código Penal não estabelece limite de tempo. O recuo se deu após pressões de bolsonaristas.
O documento desautorizava um manual anterior publicado na gestão Jair Bolsonaro (2019 – 2022) que estabelecia que, a partir das 22 semanas, havia viabilidade fetal e, por isso, o recomendado não era realizar o aborto, mas, sim, a indução do parto e eventual encaminhamento do bebê para adoção.
Esse manual foi elaborado por Raphael Câmara Parente, então secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, agora relator da resolução aprovada pelo CFM.
Na entrevista desta quinta, Parente negou que a aprovação da resolução neste momento tenha relação com a nota técnica do ministério do mês passado.
“Eu entrei como relator dessa resolução há anos, não tem nenhuma relação com a nota técnica. Só que existe um trâmite, até por ser um tema polêmico, temos que ouvir o contraditório”, disse.
Para Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o recuo do ministério abriu brecha para atual resolução do CFM. “Agora temos uma restrição certa em relação ao aborto legal”, diz.
Segundo ele, as vítimas de estupro que tenham passado da idade gestacional de 22 semanas e queiram ter acesso à interrupção vão precisar procurar apoio judicial, por exemplo, um pedido de habeas corpus ou de alvará judicial.