Aquisição de startups no Brasil chega a 100 transações
Nunca se comprou tanta startup no Brasil quanto em 2020: segundo dados da empresa de inovação Distrito, revelados com exclusividade ao Estadão, 100 operações de fusão e aquisição aconteceram no País entre janeiro e setembro. Mesmo sem acabar, é de longe o ano mais ativo do mercado, superando as temporadas de 2018 (27 transações) e 2019 (63). O movimento tem se intensificado especialmente neste segundo semestre: foram 54 aquisições entre julho e setembro – e 21 só neste mês que se encerra hoje.
“O mercado já estava bastante aquecido e a quarentena acabou gerando inúmeras oportunidades, em uma corrente que se fortalece porque uma empresa não quer ficar atrás das concorrentes”, diz Gustavo Gierun, cofundador da Distrito. “E há uma mudança importante: hoje, o concorrente de uma empresa não necessariamente está no mesmo setor.” É o caso, por exemplo, de uma startup de alimentação que tem carteiras digitais competindo com um banco, o que pode levar a uma aquisição aparentemente inesperada.
Para o especialista, é difícil identificar um único setor responsável pela movimentação. Segundo ele, porém, a onda é puxada por duas grandes tendências. De um lado, a intensificação da digitalização durante a pandemia levou grandes empresas a buscarem inovação. Do outro, startups de porte (e com cofres cheios) indo às compras de olho em mão de obra qualificada e na abertura de novas frentes de negócios. É um apetite, na visão de Gierun, que está longe de acabar: “É difícil prever, mas eu não me surpreenderia se a gente encerrasse o ano com mais de 120 aquisições”, diz.
Longo prazo
Enxergar a alta na aquisição de startups apenas como uma tendência, porém, pode esconder uma série de fatores com raízes mais profundas. Um deles é a contínua aproximação entre grandes empresas e as novatas, seja em programas de aceleração, hackathons, investimentos e até mesmo happy hours entre executivos e empreendedores.
Outro é a necessidade crescente por tecnologia e o reconhecimento do modelo das startups como uma alternativa viável. “Com a pandemia, as corporações entenderam que digitalização não era processo, era algo central”, diz Gierun. “E muitas empresas têm áreas de tecnologia já sobrecarregadas, de maneira que o executivo não vê outra solução para inovar senão ir ao mercado”.
É um processo que pode tanto buscar uma melhoria incremental – como uma startup de recursos humanos para quem precisa contratar bastante – quanto destravar uma nova frente de negócios, como fez a Magazine Luiza ao comprar o delivery de comida AiQFome. “A maior parte dos processos acaba sendo incremental, mas antes disso já existe outro desafio para as corporações: entender qual é o gargalo que uma startup pode ajudar”, afirma Rafael Assunção, sócio da Questum, consultoria especializada em fusões e aquisições.
Ele tem experiência no assunto: era um dos fundadores da Decora, startup catarinense vendida por US$ 100 milhões ao grupo americano Creative Drive, em 2018. Ao Estadão, ele cita ainda um efeito macroeconômico importante para as aquisições: a mínima histórica da taxa de juros, que impulsiona o mercado de capitais graças ao excesso de liquidez.
Evoluiu
Esses fatores, porém, não superam um elemento essencial: a evolução dos próprios empreendedores. “Há dez anos, não havia tantas startups boas, mas hoje você encontra cinco empresas de qualidade fazendo (a atividade) que você quiser no mercado”, diz Marcos Sterenkrantz, sócio e líder de inovação da XP Ventures, braço da XP Investimentos. A corretora foi uma das empresas mais ativas do ano, comprando três startups em setores como seguros (DM10), investimentos (Fliper) e antecipação de recebíveis (Antecipa).
Na visão do executivo, adquirir empresas – em vez de apenas investir em troca de uma participação minoritária – é uma forma de acelerar os negócios. “Quando pensamos em um negócio, podemos construir um time internamente ou contratar uma startup, mas quebraríamos a cabeça para fazer isso”, diz Sterenkrantz. “E o timing é importante. Logo, comprar é uma forma de chegar mais rápido para entregar valor para os clientes.”
Para a XP, no entanto, não basta apenas que a startup tenha uma boa solução de tecnologia e um time competente para assinar o contrato. É preciso que as empresas tenham alinhamento de cultura. “O grande desafio não é investir, é saber trabalhar com as startups”, afirma. “É uma integração. Até por isso, a gente nem gosta da palavra aquisição, a gente prefere entender que viramos sócios desses empreendedores.”
Pé na tábua
Para as startups, adquirir empresas também é uma forma de pisar no acelerador. “A gente gosta de criar coisas dentro de casa, mas tem habilidades que a gente prefere crescer de forma inorgânica, juntando forças com outros”, explica Mate Pencz, cofundador da Loft, que anunciou na semana passada a compra da startup InvestMais, especializada em financiamento imobiliário. A aquisição foi a terceira do ano da empresa de imóveis – antes vieram a Spry, de pesquisa de mercado e a Uotel, que faz locação de imóveis por períodos curtos. “Nós nos beneficiamos de uma onda de empresas muito boas surgindo no Brasil.”
Além de criar novas frentes de negócios, as aquisições podem ser uma forma de contratar novos talentos, como fez o Nubank no início do ano com a consultoria Plataformatec. É o chamado acqui-hiring (aquisição por contratação, no jargão do setor). Na visão de Assunção, da Questum, é algo que pode se intensificar nos próximos anos. “O maior gargalo que a gente tem no ecossistema do Brasil é mão de obra – e com a transformação tecnológica de negócios tradicionais, essa pressão vai aumentar mais”, diz.
O problema pode aumentar justamente por conta das aquisições, que providenciam a muitos empreendedores as chamadas “saídas” – isto é, o retorno para o investimento. “Toda vez que você faz uma startup, você busca um negócio que pode crescer muito e ter retorno para si e para os investidores. Isso acontece de dois jeitos: abrindo capital ou vendendo a empresa – e esse segundo é bem mais provável”, diz Assunção.
É um processo importante para o mercado, que prova que as startups “deram certo” – e permite o surgimento de uma nova onda de empresas. Isso porque, depois que o retorno acontece, muitos empreendedores decidem devolver o que receberam para o ecossistema – seja começando mais uma vez ou então investindo em empresas novatas, que podem aumentar a concorrência por talentos. Além disso, as aquisições também se tornam casos de sucesso e inspiram novos empreendedores a começar sua jornada. “Essa onda terá efeitos muito positivos no futuro”, aposta Gierun.