‘Usei o scanner como ferramenta artística para criar’, conta Luciana Crepaldi

A mariliense Luciana Crepaldi cresceu em um lar imerso em referências visuais, do cinema com o pai até a pintura com a mãe. Esse contato precoce com as mais diversas artes fez com que tivesse um bom repertório. Sua formação a levou de Marília para Barcelona, na Espanha, onde se tornou referência.
A artista é pioneira na escanografia, uma técnica que transforma um scanner caseiro em ferramenta artística. Ela criou a ideia de promover a digitalização do próprio corpo e objetos, estabelecendo-se como referência internacional ao subverter o uso tradicional do aparelho.
O trabalho alcançou reconhecimento significativo, sendo adquirido por uma coleção em Madrid em 2006, citado em teses de doutorado e exposto em diversas universidades espanholas.
Além da escanografia, Luciana desenvolveu projetos marcantes, conectados com Marília. Destacam-se o ‘Impermanente’, com fotografias das primeiras casas de madeira da cidade, refletindo sobre a impermanência, frequentemente incluindo relatos afetivos e elementos multissensoriais como QR Codes com áudios.

Outro projeto de destaque foi o ‘Paisagens Sonoras’, combinando imagens do entorno de Marília com sons regionais, criando uma experiência imersiva. Esses trabalhos, selecionados em editais como a Lei Paulo Gustavo, reforçam sua ligação com a cidade e sua abordagem multissensorial. Luciana também compartilha seu conhecimento, ministrando cursos de fotografia autoral.
O atual reconhecimento em Marília é particularmente tocante para a artista, dada a delicada situação familiar. Sua história de vida, marcada por intensidade e resiliência, é inspiradora. Para saber mais sobre sua trajetória, o desenvolvimento de suas técnicas, os bastidores de seus projetos e valiosas dicas para novos artistas, o Marília Notícia conversou a artista.
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MN – Antes de trabalhar com artes, você chegou a cursar faculdade de Física?
Luciana Crepaldi: Sou daqui de Marília, mas aos 17 anos fui para Londrina fazer Física. Não deu certo e acabei fazendo artes. Fiz três anos de Física. Fiz seis meses de artes lá e meu pai me fez voltar para fazer artes em Marília, mas foi horrível. Na Universidade Estadual de Londrina (UEL), eu fui boa em tudo. Eu fui boa em pintura, desenho, flauta. Eu era muito boa em todas as áreas das artes.
MN – Não gostou de fazer artes aqui e que caminho tomou?
Luciana Crepaldi – Como eu não gostei, meu pai falou para eu fazer Arquitetura. Meu pai era construtor e a “tonta” caiu na história. Foram cinco anos de Arquitetura na PUC de Campinas. Fui lá fazer Arquitetura e foi muito legal. Me formei, mas não era a minha pegada. Minha pegada sempre era arte. No segundo ano da faculdade de Arquitetura tinha desenho, tinha expressão de linguagens artísticas diversas. Eu fui me interessando ali, mas depois na hora de encarar mesmo, lidar com obra não era a minha praia.

MN – Qual foi sua decisão quando percebeu isso?
Luciana Crepaldi – Eu acabei em 1998 indo morar em Brasília. Eu trabalhei como designer gráfica também durante um ano. Fiz várias logomarcas, identidade corporativa. Nessa época, eu senti a falta de fazer fotografia. Meu pai tem um vídeo no YouTube do casamento dele e da minha mãe, em 1955. Quando eles se casaram, eles se autofilmaram. A gente tem esses filmes deles correndo na grama, se beijando. Uma coisa extremamente poética e está no YouTube, só procurar pelo “casamento de Lino Martins e Lourdes Crepaldi”. Quando eu tinha três anos, meu pai projetava na parede esses filmes. A gente tinha um projetor. Meu pai tinha tudo isso. Eu já tinha noção de câmera e, aos 14 anos, meu pai me deu uma Polaroid no meu aniversário.
MN – Então você sempre conviveu com artes?
Luciana Crepaldi – Aos 12 anos, eu fiz o curso de desenho do Braz Alécio. Isso é importantíssimo saber porque foi meu início no mundo da arte. A irmã da minha mãe e a minha mãe pintavam quadros. Então, do lado do meu pai tinha o cinema, o filme, o vídeo. Pelo lado da minha mãe tinha a pintura e o desenho.
MN – Sempre você teve essas referências?
Luciana Crepaldi – Desde sempre. Minha casa sempre foi cheia de quadros ou meu pai passava filme. A gente sempre teve isso em casa, mas em 1998, eu pensei em comprar uma câmera fotográfica. Era a época do digital para o analógico na câmera fotográfica. A analógica era caríssima, pois você tinha que comprar filmes e revelar. E a digital também era cara, pois estava sendo lançada naquele momento. Eu lembro que era impossível você ter uma câmera que obtivesse imagens digitalmente. Aí que que aconteceu? Eu tive a grande ideia de comprar um scanner. Um scanner de mesa.

MN – O objetivo do scanner era digitalizar as fotos?
Luciana Crepaldi – Eu comprei o scanner, mas tive a ideia de digitalizar objetos. Coisas em cima do scanner. Eu não achava nada significativo, mas de repente, coloquei a minha mão. Quando eu vi o resultado, dava para ver as digitais e coloquei a outra mão. Depois digitalizei uma imagem dos pés e então desinstalei o scanner da mesa e coloquei ele no chão. Comecei a escanear meu rosto e partes do meu corpo. Nesse dia foram 60 imagens. Desde esse dia, nesse exato dia, eu sabia que eu tinha feito algo significativo na minha vida. E que era o projeto da minha vida. Eu usei o scanner como ferramenta artística para criar imagens, não fotografias. Porque fotografia é quem cria é a câmera fotográfica, certo? Aqui a gente tá criando imagens, que se assemelham à fotografia.
MN – O que fez quando viu todas essas imagens?
Luciana Crepaldi – Foi uma catarse total. A artista Luciana se encontrou. Eu imprimi e levei lá no Correio Braziliense, onde eu trabalhava, para mostrar para o Chico Amaral e ele me disse que aquilo era arte. Ele me explicou que eu inverti o uso do scanner. Eu tinha feito uma releitura a partir da minha percepção do uso dele. Eu estava ali e era a minha própria musa. Era o meu autorretrato, mostrando a minha dor, minha alegria, meus sentimentos. Eu acabei fazendo o prólogo, monólogo e epílogo das Nove Musas. São três obras de 2m por 2,20m. Fiz várias releituras de obras usando o scanner como instrumento da minha arte.
MN – Como as pessoas receberam esses trabalhos?
Luciana Crepaldi – Eu já vendi uma obra minha na exposição Arco de Madrid. É um uma feira de arte que é super famosa. Eu levei essa das Nove Musas frontal, que eu chamo frontal às vezes, mas é a Prólogo. Fui expondo em vários lugares e essas obras foram adquiridas por uma coleção em 2006.
MN – Você morou um tempo fora do Brasil?
Luciana Crepaldi – Entre 1999 e 2000 eu me mudei para Barcelona. Eu fui para lá porque, na verdade, eu fui com um grupo de fotógrafos e cineastas de Brasília. Fui com uma galera para mostrar fotografias de filmes sobre Brasília, em Barcelona. Eu caí no melhor museu de arte contemporânea possível de Barcelona, que foi onde a gente foi expor, que é o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. É um centro maravilhoso. A gente acabou expondo lá os painéis e lá é o paraíso. É a melhor cidade europeia para se viver e eu decidi ficar por lá.

MN – Gostou muito de lá?
Luciana Crepaldi – Quando eu venho para Marília, eu me deprimo para te falar a verdade, porque eu sou movida pela arte e aqui tem pouco. As artes que têm são as minhas exposições. Eu inaugurei a Galeria das Artes de Marília, com exposição do ‘Escaneando-me’, que eu expus em três universidades na Espanha. Escanografia é o termo para o trabalho de scanner, que não é fotografia. Eu sou uma referência hoje na arte da escanografia.
MN – Porque foi um pioneirismo de sua parte.
Luciana Crepaldi – Total. Depois eu descobri que em Cuenca, no Museu de Cuenca, existem artistas que trabalham com xerox. E eu inclusive soube de um brasileiro também que se “xerocou”, mas assim, nada excepcional o trabalho dele, desculpa, mas não chega nem aos pés do meu.
MN – Além da arte, o que mais fez na Espanha?
Luciana Crepaldi – Eu fui trabalhar em um jornal em Barcelona. Fiquei durante um ano lá com eles. Eu comprei uma câmera fotográfica nessa época, que eu trabalhava nesse jornal, porque eles me convidaram para ir fotografar. O primeiro lugar que eles me mandaram foi justo no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Eu amo ele de paixão e eu vou direto lá. Eu trabalhava também editando as fotografias que eles escolhiam de banco de dados.

MN – Você passou a ministrar cursos também?
Luciana Crepaldi – Eu tenho, hoje em dia, acho que uns 12 ou 13 cursos planejados por mim, desde retrato, paisagem, arquitetura abstrata, relato humano, fotografia de rua, ensaio autoral. Eu vim com a pegada de fotografia autoral. Eu ensino a galera a produzir, para gerar algo diferente.
MN – Você já fez alguns trabalhos fotográficos em Marília?
Luciana Crepaldi: Tem projeto ‘Impermanente’ e o projeto ‘Paisagens Sonoras’. O ‘Impermanente’ é sobre a cidade de Marília, as casinhas de madeirinha, as primeiras casas de madeira que foram feitas aqui em Marília. No começo da história de Marília. Eu comecei a fotografar, como arquiteta, como designer, como fotógrafa, como artista, já tendo câmera, passeando pela cidade. Comecei a ver elas e comecei a fotografar essas casinhas. É sobre a impermanência das casas também, de tudo.
MN – Como você se sentiu recebendo um reconhecimento em premiação aqui em Marília?
Luciana Crepaldi – Eu fiquei muito feliz quando a Taís Monteiro me ligou. Ela me ligou pessoalmente é foi muito legal. Foi uma delicadeza da parte dela. Fiquei muito feliz. Foi um reconhecimento como artista, como professora, como educadora. Minha mãe também foi artista pela cidade. Esse reconhecimento também vai para ela, sabe? Estou muito feliz.
MN – Hoje você está aqui em Marília, mas está com residência fixa onde?
Luciana Crepaldi: Agora estou aqui. O ano passado eu estava em Barcelona. Minha mãe teve um problema e vim para ficar com ela.
MN – Para quem gosta de arte e quer trilhar um caminho como esse seu, qual dica você deixa?
Luciana Crepaldi – Repertório. Adquirir repertório, adquirir cultura artística. Ver teatro, assistir filmes, fotografar, desenhar, criar, ler. Procurar ter ideias. Observar o mundo da arte, entrar em sites relacionados à arte, ver vídeoarte, criar vídeoarte. Hoje em dia é possível tanta coisa com a Inteligência Artificial, mas é preciso ter repertório. Repertório significa ter cultura visual. Cultura que você possa ler, que você possa aprender coisas.