13 de maio não é dia de negro
Irmãos, irmãs, assumam sua raça, assumam sua cor. Essa beleza negra Olorum quem criou. Vem pro quilombo axé dançar o Nagô. Todos unidos num só pensamento levando a origem desse carnaval, desse toque colossal para denunciar o racismo. Contra o apartheid brasileiro, 13 de maio não é dia de negro. 13 de maio não é dia de negro. 13 de maio não é dia de negro!
Acima, a transcrição de uma estrofe da canção “Quilombo Axé”, do grupo Afoxé Oyá Alaxé de cultura afrobrasileira do Recife que, segundo consta em uma explicação institucional, originou-se em um grande terreiro de tradição Nagô, o Ilê Obá Aganjú Okoloyá, também conhecido como terreiro da mãe Amara, Ìyálorixá Amara Oba Meji. Axé!
Quer dizer, se a gente olhar um pouco mais de perto, além do conteúdo óbvio das datas, descobre-se rapidamente que parte enorme do movimento negro, da população dos quilombos, dos fiéis de religiosidade candomblecista ou umbandista, não comemoram o dia da Lei Áurea, último marco legal do Brasil que enfim, nos termos da lei, poria fim ao trabalho escravo no dia 13 de maio de 1888. E por que?
A Lei Áurea foi assinada pela branca e nobilíssima Princesa Isabel, a filha de Dom Pedro II, que no mais das vezes aparece por aí como que em uma fábula libertando a população negra do país, para uma nova condição de alforria e felicidade. Essa história assim dita, do fim da escravidão, é mal contada e, na verdade, serve a quem tenta escamotear um amplo processo de negação do racismo no Brasil independente que, aliás, tornou-se mais racista ainda a partir da abolição.
O Brasil foi o país no mundo que mais introjetou escravizados na sua população, ao longo de quase quatro séculos, bem como foi o último país ocidental a abolir a escravidão. Isto, evidentemente, deixou consequências sociais enormes.
Eu não sou negro, eu não sou preto. Escrever sobre o racismo a partir do lugar que eu ocupo no mundo, está inexoravelmente sujeito aos tropeços de quem fala sobre algo sem objetivamente vivê-lo. Porque branco não sofre racismo. Porque os brancos não foram sequestrados em um continente e vendidos em outro. Porque os brancos não foram tratados como seres desalmados. Porque dominantemente no Brasil, ainda hoje, as elites são brancas e as periferias são pretas.
Falar ou escrever de quaisquer coisas está para falar de dentro de um problema. O branco fala no máximo sobre o racismo, mas não consegue falar de. Falar de está reservado apenas àqueles que, infelizmente, sofrem as injúrias das mais variadas por causa de um preconceito vil, que atrela a cor da pele preta às noções pejorativas, preconceituosas. Por estas e por outras, me vali de Djamila Ribeiro e Renato Nogueira, que muito melhor do que eu, explicam as articulações e as consequências sociais graves entre preconceitos e racismo.
A professora Djamila é mestre, filósofa e escritora, autora de livros que venderam centenas de milhares de exemplares nos últimos anos, por onde defendeu a ideia que todo racismo é uma forma de preconceito, mas nem todo preconceito é uma forma de racismo. Preconceito, no nível sociocultural, é uma elaboração antecipada de juízo de valor negativo acerca de uma etnia. Racismo é um tipo de preconceito, porém mais profundo, que consegue estruturar as relações sociais diversas, em vários campos da vida social brasileira, negando cronicamente direitos para a população negra. Racismo no Brasil não é uma cor discriminando outra apenas, pois, além disso também, é estrutural. Racismo estrutural é a terminologia mais correta para entendermos nosso país e projetarmos alguma tentativa de equidade, de humanidade.
A maneira mais prática de verificar o quão estruturalmente racista é o Brasil é descortinando dados demográficos, porque a maioria da população brasileira se auto declara para o IBGE preta ou parda – muito embora o termo “pardo” seja, em si, problemático. O Brasil é o país mais negro do mundo depois da Nigéria. Esta mesma população é a que ocupa a maior parte das grandes periferias, a maior parcela da pobreza e da miséria, as estatísticas criminais, policiais e penais de maior violência, e a maior taxa de evasão escolar e trabalho infantil. Bem como a população autodeclarada preta é a mais afetada pela contaminação e óbitos por Covid-19 nos últimos dois anos, a que menos consome na economia de serviços e bens de consumo duráveis e não duráveis, e a que mais sofre com a volta do Brasil para o mapa da fome no atual governo – 19 milhões de pessoas comendo menos do que o corpo necessita, 110 milhões de pessoas alimentando-se mal do ponto de vista nutritivo.
Isto é, embora o Brasil seja mais preto do que branco, há no nosso jeito de fazer sociedade uma estrutura que põe de um lado só os direitos, fazendo-os muitas vezes privilégios brancos. Djamila ensina para nós, sobre esta dramática realidade, que não ser racista não basta, é necessário ser antiracista.
Como? Três coisas básicas. Primeira, reconhecer que a condição da branquitude é historicamente o antônimo da negritude. Branquitude é uma identidade racial socialmente construída a partir do usufruto dos direitos perpetuados e, infeliz e consequentemente, privilégios erroneamente naturalizados. Segunda coisa, inserir na instituição família, nas várias formas que ela pode assumir, uma educação que no nível moral deixe de criar quaisquer indisposições por causa da cor da pele e dos traços identitários e fisiológicos africanos. E, em terceiro, também institucionalmente, realizar no ambiente escolar a aplicação de referências negras em várias disciplinas, práticas de ensino e aprendizagem que se valem da ética básica de que todos nós devemos ser iguais em direitos na teoria e na prática, apoiada pela Lei Federal 10.639/2003.
Outra contribuição valiosíssima é do professor doutor Renato Nogueira, filósofo, escritor e docente da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ele explica que um grande ponto de inflexão, de mudança, seria dotar nossa visão do passado nacional com elementos que engrandecem a contribuição negra, preta, africana, mestiça, no fazer da nossa civilização. Celebrar não apenas as figuras conhecidas, como Luís Gama ou Castro Alves ou Zumbi, mas dar vazão às histórias propositalmente escondidas ao longo dos séculos.
Mais importante que celebrar o 13 de maio de 1988, por exemplo, seria se nós lembrássemos, colocássemos na memória coletiva do povo brasileiro, um outro histórico 13 de maio que ocorreu 55 anos antes da abolição, em 1833, que foi a Revolta de Carrancas em Minas Gerais. O movimento liderado por um africano escravizado, da região de Daomé, tomou uma fazenda inteira através de uma rebelião escancarando a união, a competência e a força do povo preto. E, por isto mesmo, a história foi sendo colocada no desuso pela elite pensante e racista do Brasil do século XIX, enquanto história deliberadamente evitada, sobretudo porque perceberam nesta data um símbolo poderosíssimo de organização popular antirracista.
De todos os 365 dias de um ano há, obviamente, a enorme desconfiança que a Lei Áurea foi assinada justamente no mesmo dia da rebelião de 1833, na tentativa de obliterar a representatividade enorme da Revolta de Carrancas. Mas, o mundo dá voltas, e daqui alguns poucos meses, no dia da Consciência Negra, dia 20 de novembro, todos os movimentos engajados na necessária transformação do Brasil em um país menos racista nos lembrarão: Zumbi foi assassinado por um bandeirante branco. Assassinos não são heróis. Zumbi era preto e Domingos Jorge Velho era branco. 13 de maio não é dia de negro.
Axé!