O biopoder: do Estado para as Empresas
O poder, a partir das lições de Foucault, não tem uma fonte única e permeia todas as relações entre duas ou mais partes, situação que se repete no caso das relações de trabalho, que envolvem empresas e trabalhadores.
Esse poder, que outrora era exercido com extremo rigor e se caracterizava pelo poder de fazer morrer e deixar viver, gradativamente foi se convertendo em um biopoder, que passou a se utilizar de dispositivos de segurança para – primeiro – controlar o indivíduo e depois controlar uma pluralidade de indivíduos reunidos em comunidade. Esse poder passou a se caracterizar por um poder de fazer viver e deixar morrer. Nessa sua nova concepção, o biopoder tem sido muito utilizado pelo capitalismo, com o fim de gerar indivíduos dóceis e para deles extrair o máximo de utilidade, inclusive nas relações de trabalho.
O principal problema é que nas relações de trabalho as partes envolvidas, ou seja, empresa e trabalhador, nem sempre estão no mesmo patamar de forças, sendo comum que alguns trabalhadores se encontrem em posição de inferioridade em relação às empresas, especialmente em situações marcadas por altos índices de desemprego.
Nesse sentido, a Reforma Trabalhista, promovida com a aprovação da Lei 13.467/17, acabou por trazer nova possibilidade de agravamento desse desequilíbrio, em especial ao prever, na nova redação dada ao art. 611-A, da Consolidação das Leis do Trabalho, que em várias temáticas o acordado, individual ou coletivamente, prevalecerá em relação ao legislado. Tal regra atinge até mesmo questões relacionadas à saúde e segurança do trabalhador.
Essa situação acabou por representar uma intensa transferência de biopoder do Estado para as empresas, pois estas passaram a ter a legitimidade de, por meio de acordos celebrados individual ou coletivamente com os trabalhadores, impor regras que prevalecerão inclusive em face do determinado pela legislação.
Tivessem empresas e trabalhadores em equilíbrio não existiriam problemas, mas essa igualdade de armas nem sempre está presente, o que pode resultar em graves riscos para o trabalhador em seu meio ambiente do trabalho. Esses riscos existentes no meio de ambiente do trabalho, além disso, podem se estender para outros aspectos da vida do trabalhador, pois, os aspectos da vida laboral de uma pessoa normalmente acabam por atingir as suas relações familiares, com amigos e vizinhos, etc. Assim, nas relações de trabalho, o biopoder passou a estar nas mãos das empresas, em especial depois da Reforma Trabalhista.
Nesse sentido, mostra-se importante em diversos sentidos as alterações trazidas pela Reforma Trabalhista – em certa medida são necessárias, em especial diante das grandes mudanças experimentadas pela sociedade, com destaque para os avanços tecnológicos. Entretanto, considera-se que tais alterações, a despeito de poderem modificar as relações de trabalho, precisam estar direcionadas ao objetivo maior da legislação trabalhista: proteger a dignidade humana de todos, tanto de empresários quanto de trabalhadores.
Além disso, nos casos em que ficar evidente que o trabalhador se encontra em situação de inferioridade na relação de trabalho, essa preocupação com a dignidade humana precisa ser retomada, a fim de evitar que o pactuado, apesar de prevalecer ao legislado, não represente a violação de direitos fundamentais não apenas do trabalhador, mas de toda a coletividade.
Permitir que o meio ambiente do trabalho, no qual os indivíduos passam a maior parte de suas vidas e que emitem tantos reflexos aos aspectos pessoais de cada um se transforme em local que ofereça riscos à saúde e à vida dos trabalhadores em benefício de um sistema econômico, é andar na contramão daquilo que se pretende alcançar por meio do texto constitucional, principalmente porque em um Estado Democrático de Direito, em que a dignidade da pessoa humana é o bem maior a se buscar, a inovação deve sempre estar a seu serviço.
P.S. Tive a honra de escrever este artigo o Mestre Rafael Bueno da Silva e com a Profa. Walkiria Martinez Heinrich Ferrer, ambos do PPGD Unimar.
Uma versão ampliada pode ser lida em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/primafacie/article/view/56436.