Crônica sobre um revolucionário de 1932
A rua se chamava Presidente Vargas e, naquela época, eu a achava meio escondida das outras. Sabia que duas ou três casas à frente da casa que precisava ir ficava uma vídeo-locadora de um japonês. O estabelecimento tinha filmes antigos dos bons. Mal poderia imaginar que, num futuro não muito distante daquela visita, a Presidente Vargas viria a ser a rua da minha casa.
O portão era verde e não me recordava o nome do entrevistado. Ele já era um senhor com idade avançada. Passava tranquilamente dos 80 e me atendeu de roupão depois que bati palma. O repórter-fotográfico e um outro repórter me acompanhavam. A gente tinha saído para uma via-cruz de reportagens e a entrevista com o revolucionário constava na pauta daquela manhã, que era véspera do único feriado estadual do calendário paulista.
Sentamos na sala da casa de madeira. Usando óculos e preservando lucidez e elegância o combatente de 1932 cruzou as pernas. Iniciamos a conversa. Me recordava dele no ano anterior sendo condecorado no quartel da Polícia Militar com uma medalha de honra.
Depois minha imaginação colocava nos meus olhos aquele senhor caminhando pela Coronel Galdino, usando um colete de pescador, que facilmente poderia ser utilizado por um caçador ou por um repórter-fotográfico. “Eu combati junto com o Nelson Spielmann, a gente serviu na serra da Bocaina. Me mandavam atirar a metralhadora antiaérea. Eu sentava num banquinho e atirava sem parar”.
Nelson Spielmann, que morreu em 32, batizava a rua em que morava naquele ano. O combatente arrumou o roupão, ajeitou o cabelo. O repórter-fotográfico pediu para que ele batesse continência. Com a mão rígida, num gesto brusco repetiu a devoção que décadas atrás fez em frente à bandeira de São Paulo.
A foto foi tirada e o revolucionário voltou a nos contar as desgraças que vivenciou. “Era perto da hora do almoço, uma menina e seu pai foram juntos buscar comida num posto da revolução. Ela segurava uma panelinha e seu pai segurava outra. Nisso, um rapaz acidentalmente acionou a metralhadora giratória e foi tiro para todo lado…”.
O revolucionário parou.
Retirou os óculos e como uma criança de oito anos passou a chorar. Chorava copiosamente e entre soluços repetia a agonia que presenciou. Assustada, a menina sem mão chorava vendo o sangue jorrar na terra batida. “Ela… ela…, parece que morreu depois”.
O repórter que me acompanhava ficou pasmado: “Como que aquela lembrança de 70 anos parecia viva, como se tivesse acontecendo na nossa frente!”. O combatente limpou os olhos, enquanto nos revelava que nunca gostou de ver filme de guerra. “Tudo é uma desgraceira só. Aqueles aviões, as trincheiras, os tiros só dão medo e pavor”.
Não tive coragem de perguntar se ele havia matado alguém, mas antes de formular a pergunta o revolucionário me afirmou categoricamente: “Na guerra, meu filho, ou você mata ou você morre”.