O dia em que Muhammad Ali visitou o maior clube negro de São Paulo
Exatamente às 8h15 do dia 16 de setembro de 1971, aterrissou no aeroporto de Congonhas um avião da Varig proveniente de Nova York. Entre os passageiros, vinha um homem negro, de pernas compridas, que era aguardado por um grande número de pessoas, principalmente muçulmanos, no saguão de desembarque: o pugilista Cassius Clay, um dos ícones do movimento pelos direitos civis dos negros, que havia aderido ao islamismo e adotado o nome de Muhammad Ali.
Entre os compromissos do ex-campeão mundial dos pesos pesados na capital paulista estavam uma luta “no contest”, ou seja, não oficial, no ginásio do Ibirapuera, além de uma visita a uma mesquita na avenida do Estado, na região central. A agenda mais importante para a militância ativista de Ali, entretanto, foi marcada de última hora: ele foi conhecer a sede social do Aristocrata, maior clube frequentado por negros em São Paulo, à época com 4.000 sócios.
A visita ao Aristocrata foi o ponto máximo da agenda paralela de Ali, que costumava se valer da fama como esportista para propagar seus ideais de defesa dos direitos dos negros. Numa entrevista coletiva à imprensa, por exemplo, o pugilista explicou o porquê de sua mudança de nome.
“Os senhores brancos, na escravatura, nos davam nomes de brancos. Seria muito engraçado chineses com nomes russos, indianos com nomes brasileiros, russos com nomes ingleses e assim por diante. Um homem de origem africana tem que ter um nome que se adapte a essa origem [referindo-se à África muçulmana]. Hoje que eu conheço a verdade, a minha história, que sei quem sou, quero um nome que não seja de escravo.”
No Aristocrata, Ali foi recebido por Paulo Roberto dos Santos, uma espécie de embaixador do clube, também conhecido por Paulo Inglês, porque tinha afinidade com o idioma. Ficou impressionado em saber o número de sócios e que a instituição competia em importância com os clubes da elite branca paulistana.
Os diretores do Aristocrata contaram a Ali que foi justamente para se contrapor aos clubes da elite branca – que normalmente discriminavam os negros – que o Ari, como era chamado, havia sido fundado, em 1961. Naquela década e na seguinte, foram muitos os episódios de discriminação aos afrodescendentes nas sociedades esportivas paulistanas. O ápice dessa escalada aconteceria em 1978, quando quatro jovens atletas negros da equipe de vôlei do Clube de Regatas Tietê foram expulsos para evitar que frequentassem as dependências sociais, como as piscinas.
Quando fundaram o Aristocrata, seus idealizadores pretendiam exatamente dar uma resposta à escalada de racismo que tomava conta dessas instituições. E o nome foi escolhido a dedo para mostrar que a aristocracia não estava restrita aos brancos. Havia em São Paulo uma aristocracia negra. Ali vibrou com aquilo. “Os negros sempre foram ensinados a respeitar o poder branco”, disse aos repórteres. “Tudo que é branco é bom, tudo que é negro é ruim. Até Tarzan, o rei da selva africana, eles fizeram branco.”
A ideia de mostrar que o negro podia fazer tudo que o branco fazia estava na gênese do Aristocrata Clube. Suas festas marcaram época na São Paulo dos anos 1960 e 1970. Principalmente os bailes de debutantes, que eram acompanhados por orquestra e frequentados por pessoas em trajes dos mais elegantes. Acontecia a tradicional troca de roupa das debutantes, numa referência à passagem da infância para a vida adulta. As mulheres vestiam longos, com luvas. Os homens, smoking com gravata borboleta.
A aposentada Martha Braga, 71, conta que a primeira vez que foi ao Ari, aos 17 anos, ficou impressionada com a elegância das pessoas. “Foi muito impactante ver tantos negros reunidos, muito bem vestidos, naquele ambiente. Aquilo me deu um sentido de pertencimento àquela comunidade, como não tinha em outros lugares.”
O impacto na jovem afrodescendente foi tamanho que Martha nunca mais deixou o Aristocrata. Mesmo no período mais difícil. Durante os anos 1990, o clube foi perdendo seus sócios, já que as novas gerações não tinham interesse em sua continuidade.
Com dificuldades financeiras para manter suas atividades, fechou as portas de sua sede social, no centro da cidade. A sede de campo, no Grajaú, zona sul, acabou abandonada e invadida por um grupo de sem-teto. Em 2011, a área foi desapropriada pela prefeitura para a instalação de um parque, que seria inaugurado somente em 2023.
Com o dinheiro da indenização pela desapropriação, os poucos sócios que restaram do Aristocrata resolveram construir uma nova sede, no Planalto Paulista, e retomar suas atividades, numa proposta mais modesta. A jovem que se deslumbrou com os bailes do clube aos 17 anos é a atual presidente da instituição, que agora conta com 80 sócios.
“Lutamos para que esse clube continue funcionando como uma espécie de quilombo urbano, um bastião contra o racismo estrutural nesta cidade gigante que é São Paulo”, diz Martha Braga. “E o nosso desejo é que os jovens se interessem novamente, para levar para frente essa nossa causa.”
***
POR FERNANDO GRANATO