As fake news e o processo eleitoral democrático
A internet e as redes sociais representam importante avanço no âmbito das relações sociais, na medida em que permitem a interface entre pessoas ou grupos de pessoas, sem limitação geográfica, aumentando a velocidade na divulgação das informações. Cientes desse importante fenômeno, no âmbito eleitoral, atores políticos têm feito uso corriqueiro das redes sociais para externar manifestações políticas, expor plataforma ou projetos políticos, realizar interação com seus eleitores, divulgar suas pretensões e externar críticas a seus adversários.
As redes sociais, assim, transformaram-se em fortes aliadas da democracia, porém, nos últimos anos, surgiu, mundialmente, uma nova forma de influenciar o resultado do processo eleitoral democrático: a disseminação de fake news. A partir de 2014 o poder nefasto das fake news foi amplificado pela utilização de robôs – os social bots – os quais, agora, se utilizam de fake faces (rostos falsos) e deepfakes (vídeos alterados com sobreposição do rosto de alguém que se queira prejudicar).
A importância desta temática exsurge de três justificativas: (i) no cenário nacional, o uso de robôs para disseminar notícias falsas tem sido apurado por meio da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news, assim como é objeto de dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional; (ii) as eleições para Presidente da República em 2022 por certo irá causar maior atuação dos bots nas redes sociais; (iii) o isolamento social, causado pela decretação de situação de calamidade de saúde pública, por conta da pandemia da COVID-19, tem provocado o aumento de usuários ativos nas redes sociais, majorando, assim, o nível de interações, inclusive de bots. Por tais motivos, mostra-se imprescindível uma análise acerca da utilização de bots para disseminação de fake news em formas mais modernas.
Com o aperfeiçoamento da tecnologia e o surgimento das redes sociais, evoluiu-se de assistentes virtuais de simples interação para social bots altamente inteligentes capazes de, por si sós, aprender conteúdo on-line, estudar a linguagem digital dos indivíduos e copiar sua forma de interagir.
Tamanha é a preocupação com uso irregular desses softwares que um dos desafios modernos, decorrentes da velocidade dos avanços, é a criação de tecnologia capaz de identificar ou, ainda, controlar a sua propagação irregular. Atualmente, o software é capaz de se submeter a um processo de humanização para dificultar a percepção do usuário, de modo que não sabe ele se está a interagir com outro usuário ou com um robô.
Visando combater a atuação eletrônica de robôs na internet, foram implantados filtros on-line de bots, que exigem do usuário que clique na mensagem “não sou um robô” e, na sequência, escolha, dentre as figuras apresentadas, “todos os semáforos”, “todas as faixas de pedestre”, “todos os automóveis”. Esse procedimento tem por função desviar a atuação de um bot porque, embora esses programas sejam capazes de interagir e até preencher campos de forma automatizada, dificilmente são capazes de escolher imagens semelhantes. Trata-se da utilização da tecnologia machine learning, cujos exemplos são os conhecidos captchas destinados a frenar a utilização maliciosa de bots e, ao mesmo tempo, testar e melhorar formas de proteção.
A relevância das redes sociais para a manifestação de pensamento é indiscutível, por se tratar de um ambiente democrático, que propicia a divulgação de opiniões, porém a automatização de instrumentos necessários ao uso das redes sociais proporciona, por outro lado, a disseminação de perfis falsos, controlados por robôs, que se passam por seres humanos, pessoas comuns com o objetivo de dominar as discussões políticas ou de fatos de grande repercussão.
Com amparo em tais observações, constata-se que os bots são capazes, por meio de perfis automatizados, de promover o disparo massivo de informações falsas por qualquer meio de comunicação (sms, e-mail, postagens nas redes, hashtags, mensagens de voz, vídeos, mensagens em aplicativos de conversas), são capazes de aprender conteúdo on-line, aperfeiçoando sua capacidade comunicacional, possuem a aptidão de se auto-humanizar utilizando fake faces, ou seja, rostos/fotos falsos criadas por algoritmos e até de criar vídeos utilizando a tecnologia deepfake.
Com efeito, faz-se importante ressaltar que é no período eleitoral, durante as propagandas políticas, que o uso de bots pode colocar em xeque a higidez do processo democrático de escolha de candidatos políticos porque é nessa época que a massificação do uso de fake news adquire contornos de propaganda política pró ou contra candidatos, potencializando a influência no resultado da votação.
Por essa ótica, o uso de bots tem finalidade eleitoral, no intuito de privilegiar alguém em detrimento da reputação ou plataforma política de outrem, ao contrário do que simula, pois, ao se tornarem cada vez mais humanizados, sua manifestação tende a ser interpretada como opinião política de usuário real, no livre exercício de manifestação de pensamento ou liberdade de expressão, confundindo o eleitor e logrando êxito em localizar adeptos que compartilham de igual pensamento.
O uso dos bots como um tipo de tecnologia disruptiva para influenciar no processo eleitoral, alterando o meio de propaganda política, pode ser controverso no que se refere ao próprio conceito de tecnologia disruptiva, porém não se questiona a necessidade de sua regulação.
Enquanto o uso, a regulação e as consequências a longo prazo do uso de bots são incertos, sobretudo no campo eleitoral, é preciso engajamento de todos os atores envolvidos no processo político – cidadãos, candidatos, partidos políticos e Justiça Eleitoral – no enfrentamento dessa situação potencialmente lesiva à democracia, o que pode ser feito por meio de técnicas de biopolítica, exatamente na medida em que se reconhece que a vida pode utilizar de mecanismos de controle para suavizar ou anular os efeitos do biopoder – o uso de bots no processo político.
O uso de bots nas redes sociais para divulgar fake news, fake faces e deepfakes visando macular as eleições exige retaliação por parte da sociedade em geral, o que pode ser feito mediante o desenvolvimento de igual tecnologia que permita a identificação desses perfis automatizados e seus reais criadores para que sejam severamente punidos por ato atentatório à democracia, primado constitucional, o que exige, primeiro, regulamentação jurídica específica e, depois, uma ampla conscientização de candidatos e eleitores. Se teremos sucesso (ou não) só o tempo e as futuras eleições dirão.
P.S. 1) Divido a autoria deste artigo com a Dr. Heloisa Helou Doca, Professora da UNIMAR, e com Fabiano Fernando da Silva, Mestre em Direito pelo PPGD UNIMAR.
2) Uma versão ampliada deste artigo pode ser lida, em inglês, na Revista Pensar (https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/11840).