Varejo nacional acusa Shopee, Shein e AliExpress de colocarem saúde do consumidor em risco
Álcool 92,8º (uso restrito em ambiente hospitalar), formol puro 37% (cuja venda ao público é proibida desde 2009), kit para escova progressiva com formol (considerado uma infração sanitária), clareadores dentais (que dependem de receita médica para serem vendidos). Todos esses produtos de comercialização restrita ou proibida no Brasil estão livremente disponíveis em diversos marketplaces no país, em especial nos estrangeiros Shopee, Shein e AliExpress.
Nas plataformas de origem asiática também é possível encontrar oferta de produtos cuja eficácia não foi comprovada e não foram regulamentados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). São exemplos a garrafada para engravidar, o remédio anti-alcoolismo, o spray para parar de fumar, o remédio para câncer de bexiga, a pomada anticâncer de mama, o creme de reparação de vitiligo, o gel contraceptivo, a garrafada para inflamações nas trompas, ovários e na vesícula e o anel regulador de açúcar no sangue.
Os dados fazem parte perícia técnica encomendada pelo IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo) ao IBP/IBPTech (Instituto Brasileiro de Peritos) nas plataformas Shopee, Shein e AliExpress, à qual a reportagem teve acesso com exclusividade.
O objetivo é averiguar o quanto as asiáticas estão oferecendo produtos em conformidade com a legislação brasileira, respeitando as normas da Anvisa, do Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial) e da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).
Vale lembrar que varejistas brasileiros estão em pé de guerra com os asiáticos a quem acusam de concorrência desleal, por não pagarem os mesmos impostos. A situação se agravou desde o ano passado com a adoção do Remessa Conforme, programa do governo federal que isenta de imposto de importação compras internacionais de até US$ 50 (R$ 256) e prevê liberação mais rápida no despacho aduaneiro. A cobrança de ICMS sobre essas mercadorias é de 17%.
De acordo com a perícia promovida pelo IDV, as plataformas têm permitido o cadastro de revendedores (“sellers”) de modo nada criterioso, dando origem a um verdadeiro “camelódromo virtual”, com a venda de produtos que “prejudicam a vida, a saúde, a segurança e o patrimônio dos consumidores”, além de veicularem propagandas abusivas, enganosas e de oferecerem produtos falsificados.
Procuradas pela reportagem, as asiáticas responderam em nota que procuram orientar os sellers sobre a venda de produtos legalizados e, sempre que encontram algum desvio ou recebem uma denúncia, alertam o revendedor, podendo até retirá-lo da plataforma. Confira as respostas de cada uma ao final deste texto.
As denúncias foram encaminhadas no final de abril à PGR (Procuradoria Geral da República), com quem o IDV aguarda uma audiência. O instituto tomou a iniciativa de levar o problema até Brasília depois de acionar o MP-SP (Ministério Público de São Paulo) no final de 2023, para que o órgão encaminhasse a perícia às agências reguladoras e ao Inmetro. Como não houve retorno, recorreram à PGR.
“Quando foi implantado o Remessa Conforme, no ano passado, a gente esperava que a Receita Federal tivesse um maior controle sobre a entrada dessas mercadorias, que já apresentavam uma série de irregularidades -produtos pirateados, sem certificação, em remessas fracionadas, para burlar imposto”, diz Jorge Gonçalves, presidente do IDV. “Mas nada disso aconteceu e decidimos documentar o descumprimento das leis brasileiras.”
O IBP/IBPTech realizou diversas compras nas três plataformas, tirou fotos dos anúncios e dos produtos, verificou o quanto estavam em desacordo com a legislação e registrou tudo em cartório.
Sergio Zimerman, conselheiro do IDV e presidente da Petz, diz que as empresas brasileiras já sabiam que a cobrança de impostos continuava sendo burlada pelas asiáticas com o Remessa Conforme. “Mas agora produzimos provas robustas que apontam algo ainda mais grave”, afirma. “Se a minha empresa vende algo que coloca em risco a vida do consumidor, sou responsabilizado juridicamente. E essas plataformas? Simplesmente jogam a culpa para o ‘seller’? As autoridades brasileiras vão esperar que alguém morra para puni-las?”, questiona.
A perícia apontou ainda a venda de produtos piratas, como óculos Ray-Ban por R$ 41 e tênis Nike por R$ 56, ambos muito abaixo do preço dos itens originais. Adereços com suástica, distintivos da Polícia Federal e da Polícia Civil também são oferecidos, o que é proibido por lei.
Procurada, a Shopee informou em nota que exige dos revendedores o cumprimento dos “regulamentos locais” e da sua política de “produtos proibidos e restritos, que expressa claramente a posição da empresa sobre a venda de produtos irregulares e falsificados”. O marketplace diz tomar “medidas severas contra os lojistas que não as cumprem.”
Já a Shein também informou, por meio de nota, que “leva a sério todas as alegações de infração e averigua todos os casos de denúncia”, tomando “as medidas necessárias” caso uma violação se confirme. A empresa afirma estar em “constante desenvolvimento do processo de revisão de produtos.”
Depois da publicação dessa reportagem, o AliExpress respondeu que “mantém um diálogo aberto e transparente com as autoridades reguladoras e trabalha em conformidade com as leis dos países onde atua, exigindo o mesmo de seus vendedores, conforme estabelecido nas regras do marketplace.”
MERCADO LIVRE E MAGALU TAMBÉM VENDEM PRODUTOS PROIBIDOS
A reportagem constatou, porém, que não são só as plataformas asiáticas que vendem produtos proibidos por lei. Também o argentino Mercado Livre, líder do comércio eletrônico no Brasil, oferece diversos produtos em desconformidade com a legislação, como álcool 92,8º, formol 27 e tênis falsificados. O mesmo acontece com o brasileiro Magalu, do Magazine Luiza -a varejista, inclusive, é filiada ao IDV.
Procurado, o Mercado Livre diz que, assim que identifica anúncios em desacordo com a legislação, o vendedor é notificado e pode ser banido da plataforma. A empresa diz trabalhar “de forma incansável para combater o mau uso da sua plataforma, a partir da adoção de tecnologia e de equipes que também realizam buscas manuais”.
O Magalu, por sua vez, informa que retira do ar os anúncios denunciados por inconformidade após checagem. “A companhia tem liderado, junto a diferentes organismos e entidades de classe, um forte movimento de combate à venda de produtos de origem irregular e/ou ilegal – sejam estes contrafeitos, contrabandeados, pirateados e/ou informais. Tais práticas são inegociáveis na relação com os parceiros de seu marketplace”, afirma a varejista, que diz ainda exigir dos parceiros a obrigatoriedade da emissão de nota fiscal em 100% das transações.
Questionado sobre o porquê de o Mercado Livre, também estrangeiro, não ter sido considerado na perícia, o IDV afirmou que se trata de um site já nacionalizado, com sede e representantes oficiais no Brasil. Quanto à associada Magalu, o instituto afirmou que todos devem cumprir as leis, sejam empresas brasileiras ou estrangeiras.
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POR DANIELE MADUREIRA