“Sei o quanto essa torcida aqui inflama e é apaixonada”, diz Cleber Gaúcho
Recém-contratado pelo Marília Atlético Clube (MAC) para a quinta tentativa consecutiva da agremiação de acesso à Série A2 no Campeonato Paulista em 2024, o técnico Cleber Gaúcho vive o melhor momento de sua carreira.
Nos últimos três anos, ele conquistou taças e acessos e ampliou seu acervo de fotos de premiações, além de tantas outras da carreira de 18 anos como atleta profissional que carrega em seu celular e exibe orgulhosamente.
A imagem da rotina diária, no entanto, é a mais recorrente no álbum privado da profissão. “A vida de técnico de futebol é muito solitária”, descreveu Cleber Gaúcho. “A gente se cobra muito, se isola”, explicou.
Nesta entrevista ao Marília Notícia, o treinador fala sobre a expectativa depositada pelo clube, pela torcida e pela imprensa esportiva em sua contratação e o motivo pelo qual escolheu treinar o MAC na A3 apesar de convites para trabalhar na elite de outros estaduais.
O treinador maqueano analisa as diferenças do futebol praticado quando ainda era atleta ao que orienta hoje do lado de fora das quatro linhas e critica a formação de base pela escassez de opções e baixa qualidade técnica de atletas profissionais no país do futebol.
Aos 49 anos, casado e pai, Cleber Nelson de Andrade Raphaelli, o Cleber Gaúcho, é ex-volante, meia e ídolo do Brasil de Pelotas, onde começou e terminou a carreira de atleta e iniciou a de treinador, em 2011.
Como jogador, atuou ainda no XV de Piracicaba (onde tem residência fixa desde 1995), Matonense, Paulista, Rio Branco (SP), União Barbarense, Caxias (RS), XV de Campo Bom (RS), Criciúma (SC), Santo André, Goiás e Rio Claro.
Em sua carreira atual de treinador, já dirigiu o EC Rio Verde (GO), União Barbarense, Sertãozinho, Trindade, Velo Clube, Grêmio Anápolis (GO), Brasil de Pelotas, Pouso Alegre (RS), Matonense, XV de Piracicaba e Uberlândia (MG).
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MN – Menos de um ano atrás o senhor estava neste mesmo estádio levantando uma taça de campeão pelo XV de Piracicaba. Agora, está no Marília. Como é lidar com essa vida nômade de treinador?
Cléber Gaúcho – Para mim é uma situação normal, desde minha época como atleta profissional. Não tem aquela questão de ser apaixonado como o torcedor, mas sou pela minha profissão. Eu me entrego ao máximo. É o nosso ganha pão.
MN – O MAC vai disputar pelo 5º ano seguido o Paulista da A3 que o senhor venceu e subiu com o Velo Clube, em 2020. Como trabalhar essa ansiedade pelo acesso no Marília?
Cleber Gaúcho – O atleta sabe da paixão da torcida. Sabe que ela está machucada por estar há anos sonhando com este acesso para a A2. Uma cidade apaixonada por futebol e que está angustiada para que, no mínimo, o MAC possa estar na segunda divisão dentro do cenário do futebol paulista para depois galgar outras situações maiores, como voltar ao cenário nacional. Tudo isso é projeto, mas os atletas se interessam muito.
MN – O futebol tem mudado em vários aspectos ao longo do tempo. Da sua carreira ainda como jogador, o que há de diferente em relação a hoje?
Cléber Gaúcho – Mudou muito em relação à forma de contratação, na relação entre diretor e atleta, por exemplo. Hoje, qualquer atleta, independentemente de sua condição, tem agente. Eu mesmo só fui ter um no final de minha carreira. O ‘agente’ era eu mesmo dentro de campo, tendo que fazer bons jogos para buscar melhores condições de contratos futuros. Só tinham empresários os jogadores ‘tops’.
MN – E dentro das quatro linhas, o que mudou?
Cléber Gaúcho – O futebol se tornou muito mais intenso. É notório. Antes se corria cinco, seis quilômetros. Hoje chega-se a nove, dez, ou mais. A busca pelo espaço está muito árdua. Fala-se muito que se perdeu a qualidade técnica. O que se fazia em campo há 15, 20 anos havia mais tempo para se pensar, cadenciar o jogo. O torcedor mais nostálgico sente muita falta disso. Quem vê a seleção de 1970 jogando com tanto espaço. Isso não existe mais no futebol de hoje.
MN – Ainda sobre os agentes, o senhor disse quando chegou ao Marília que teria de convencê-los a dispor seus atletas para o Paulista da A3 de 2024. Como é montar um novo elenco para esta divisão dependendo dos interesses de empresários?
Cléber Gaúcho – Importante esclarecer que o MAC vai contratar dentro de suas condições financeiras. Não vai fazer loucuras. Se comparar com outras equipes da A3, estaremos em igualdade ou vantagem. Muitas vezes a gente consegue seduzir o atleta, sem abordar nada sobre a questão financeira, e geralmente tem êxito. Os atletas falam entre si e têm a informação, por exemplo, que o MAC está honrando seus compromissos rigorosamente em dia. Quando a conversa chega no agente, muitas vezes acontece o empecilho da preferência do atleta, que é um produto, por uma vitrine ou divisão maiores. Não que esteja menosprezando o Marília, mas é assim que funciona. Muitas vezes é melhor jogando uma A3 disputando lá em cima do que a A2 para não cair. Este é o nosso argumento. Mas a divisão dificulta muito para ter jogadores mais qualificados.
MN – Ainda assim, as divisões de acesso do futebol paulista continuam a ter preferência a outros campeonatos estaduais de elite no país?
Cléber Gaúcho – Eu sou prova viva disso. Eu preferi estar aqui numa A3 de São Paulo. Tive propostas para sair para dois clubes do Rio Grande do Sul de série A do estadual, uma de Santa Catarina, duas do nordeste; aqui em São Paulo, três de A2, além da abordagem de dois clubes da A1. Poderia ter ficado no Uberlândia onde obtive o acesso e fui convidado para permanecer e fazer o planejamento para o próximo ano, na primeira divisão do campeonato mineiro. Ou seja, graças a isso apareceram várias opções pelo trabalho que temos realizado. Eu preferi ficar no Marília pelo desafio de subir à A2 de 2025. E vejo a vitrine, por mais que seja a A3, muito melhor que as primeiras divisões em outros estados. Inclusive em projeção de carreira, é muito mais vantajoso. A visibilidade é muito maior.
MN – Apesar de gaúcho, o senhor anda muito à vontade pelos palcos de premiações por clubes e gramados paulistas…
Cléber Gaúcho – Verdade (risos). Nos últimos três anos conseguimos várias conquistas na sequência pelos clubes por onde eu passei. Desde campeão com o Velo Clube [na A3 de 2020], na sequência com o Grêmio Anápolis no Campeonato Gaúcho, o título com o XV de Piracicaba na Copa Paulista e o acesso com o Uberlândia. Mas eu estou no estado desde 1995 quando eu vim para o XV de Piracicaba como atleta. Naquele ano fomos campeões da Série C do Brasileiro. É a maior conquista do clube até hoje. A partir dali me apaixonei pelo estado, resolvi ficar aqui. Tenho residência em Piracicaba desde aquela época e só volto ao Rio Grande do Sul para passear, ver a família, os amigos. Moradia fixa mesmo é aqui, em São Paulo.
MN – O senhor começou a carreira de treinador em 2011, tão logo encerrou a carreira de jogador, no Brasil de Pelotas (RS). É preciso confiar nas ‘pratas da casa’ não só para jogador como para treinador também, não?
Cléber Gaúcho – Quando encerrei a carreira já fui convidado para dar sequência como auxiliar-técnico. Mas está se perdendo a identidade em relação a isso. Antes existia paixão pelo clube. Quem conhece o futebol do Rio Grande do Sul sabe que o clássico do interior, o Bra-Pel é uma loucura. É como se fosse um Gre-Nal a tudo que cerca. Na minha época a gente brigava com os meninos do Pelotas na rua, no calçadão. Isso tudo te levava a dar continuidade na carreira. Mas vejo que se perdeu esse legado. Hoje o atleta é um produto. Raramente você verá algum que inicia na base, segue até o profissional, encerra carreira e até se torna treinador. Tem que haver preparação, estudo.
MN – Dos treinadores que teve ao longo de sua carreira, além daqueles que estão em projeção nacional e internacional, quais se inspira para o seu trabalho no dia a dia?
Cléber Gaúcho – Eu sou muito doméstico nesta análise. Poderia falar de [Josep] Guardiola, [Jürgen] Klopp, mas sou bem nacional. Nem gostaria de citar nomes porque posso esquecer alguém. Com todos que eu trabalhei, e já tinha isso desde o início de minha carreira, prestava atenção em tudo, fazendo a comparação do que funcionava ou não. Vi muita coisa que não servia pra nada que os técnicos aplicavam, mas também as que davam certo.
MN – Por exemplo?
Cléber Gaúcho – Muitos técnicos com os quais eu joguei optavam por um trabalho de campo que não servia para nada, porque na hora do jogo não era aquilo que a gente iria fazer. Então se preparava para que? Outros eram muito bons na parte tática e faziam a diferença. Porém, éramos nós que resolvíamos lá dentro, na maior parte do tempo. A gente se reunia e via que não estava dando certo assim e fazia de outro jeito. Peguei vários treinadores que só davam coletivo e nem orientavam direito. Um absurdo. E, olha, gente tida como ‘bam bam bam’. Hoje o futebol é muito mais estudado. Há alguns treinadores que até atrapalham o andar do jogo porque acabam engessando o atleta. É lógico que precisa dar as orientações, o atleta tem que cumprir função, mas tem que deixar o cara livre para criar, improvisar. Isso é o futebol brasileiro.
MN – Mas nem todo bom jogador pode vir a se tornar técnico, não?
Cléber Gaúcho – Então, há outra situação para entender o que dá certo ou não. Há situações que dependem dos atletas que você tem à sua disposição. Vai desde o nível cognitivo, em relação ao pensar o jogo e executá-lo de forma rápida, qualidade técnica. Por isso que não é qualquer atleta de futebol que pode ser técnico. A diferença de funções é muito grande.
MN – O fato de ter jogado como meia e volante fez diferença para tua forma de ver o futebol como treinador?
Cléber Gaúcho – Sim. Jogar nestas funções me ajudou muito neste processo todo. Desde pequeno fui um líder nato. No meu bairro era eu quem escalava os times, organizava as competições. Isso também me facilitou quando parti para o futebol profissional. Houve uma grande alavancagem na facilidade de comunicação, de entendimento do futebol. Isso tudo me impulsionou no começo de minha carreira como treinador. Nunca facilitei para ninguém, mesmo como jogador, em relação a entregar tudo que podia. Tive muita dificuldade para lidar com derrotas e precisei trabalhar isso comigo. Elas acontecem, fazem parte, mas não gosto até hoje. A competitividade é tão grande que a derrota machuca muito ainda.
MN – Apesar de tão imprevisível no que se refere à longevidade de contratos, como um técnico de futebol planeja seu futuro?
Cleber Gaúcho – No início da minha carreira pensava mais a longo prazo. Hoje penso no presente. Lógico que tendo sucesso haverá uma condição melhor de carreira no futuro. Todo mundo que trabalha nesta profissão se projeta em equipes de ponta. Se te falar que penso isso neste momento estarei mentindo. Até acho que tenha condições de chegar lá, mas não estou focado nisso. Meu interesse é que as coisas aconteçam agora, aqui. Deixo na mão dos resultados que a gente possa construir bem.
MN – Mas resultados costumam ter ‘prazo de validade’ no futebol, não?
Cleber Gaúcho – Na realidade, estamos lidando com uma cultura. Fui campeão na Copa Paulista pelo XV de Piracicaba ano passo e no Paulista da A2 deste ano só perdemos para os dois times que subiram. Foi uma boa campanha dentro daquilo que tínhamos em investimento menor do que na Copa Paulista. Aí vem a série D do Brasileiro e o elenco perdeu ainda mais força em relação ao Paulista. Perdemos sete atletas depois da Copa Paulista e mais oito na A2 e não conseguimos repor com a mesma qualidade. Ou seja, a equipe foi enfraquecendo. E aí os resultados não vêm. No momento que deixo o XV havia saído pela primeira vez do ‘G4’. Mas, alguém com o poder na caneta resolveu mudar. É assim.
MN – Além do ambiente profissional do futebol, o que o senhor faz nas horas vagas para relaxar da pressão do cotidiano?
Cleber Gaúcho – Quando não estou em casa, minha família vai até onde estou. Procuro aproveitar ao máximo. A gente sai, apresento a cidade onde estou para minha filha e minha esposa. A vida de técnico de futebol é muito solitária. Principalmente quando acontecem os resultados negativos. A gente se cobra muito, fica isolado, entristecido, não quer falar com ninguém. Ultimamente tenho tido mais momentos bons do que difíceis. Fora isso, gosto de assistir a seriados, filmes e de jogar tênis. Vi que há várias quadras de saibro, apesar de que goste mais da de cimento mesmo. Não estou dizendo que sei jogar (risos), mas consigo trocar as bolas na quadra. Já faz bem para a saúde e pra mente também.
MN – Cobra-se muito que os treinadores se capacitem melhor, mas o que tem a dizer quanto aos dirigentes de clubes com os quais tem convivido?
Cleber Gaúcho – Comentamos muito sobre isso nos cursos que tenho feito na CBF [Confederação Brasileira de Futebol]. Quem deveria fazer também são os diretores, presidentes de clubes para que eles tenham melhor noção das coisas. Esse imediatismo que a gente fala não acontece da noite para o dia. Tem que saber se o trabalho é bom ou não. Eu voltei duas vezes ao Grêmio Anápolis. É um clube gerido por portugueses. Os caras são chatos pra caramba, mas estão nos treinos todos os dias. É o tipo de coisa que eu gosto. Porque eles acompanham todo o trabalho, para entender o processo de formação de um time. Todos os clubes que eu trabalho e a pessoa que tem o poder acompanha o dia a dia vê que o trabalho é bom.
MN – De técnico para técnico, qual tua opinião sobre Fernando Diniz na seleção brasileira?
Cleber Gaúcho – É um cara sensacional, boa praça. Joguei com ele no Gama [DF]. Antes de encerrar a carreira de jogador no Brasil passei por lá. Também enfrentei o Diniz várias vezes aqui no estado na época do Audax. Já trocamos ideias muitas vezes. É um cara que tenho contato até hoje. É um cara que enxerga o futebol de um jeito que ele entende desde aquela época do Votoraty e continua nesta batida, independentemente de estar na seleção brasileira ou não. A gente sabe que isso demanda um certo tempo. Os jogadores que atuam na Europa praticam um futebol mais posicional. Não é aquela rotatividade toda que o Diniz prega. Eu acho difícil. Não é ruim a maneira que faz, mas não vai ter o tempo necessário para implementar, porque não vai ficar tanto com eles quanto fica no clube. O atleta não é uma máquina que você liga aqui e desliga ali. Para ter êxito no futebol é preciso introduzir conceitos, mas leva tempo até que o jogador assimile, entenda e execute dentro de campo sem pensar.
MN – O futebol brasileiro tem vivido uma fase de escassez de opções e de qualidade técnica. Como é ter que ser técnico profissional tendo que desempenhar a função de professor de escolinha ao mesmo tempo?
Cleber Gaúcho – Tu vais me envolver numa grande polêmica porque eu estou detestando alguns profissionais que trabalham na base. Uma grande maioria está preocupada com esquema tático e não se trabalha mais fundamento. Ou seja, o atleta chega no profissional totalmente carente de tudo. Em vez de trabalhar só as questões táticas tem que fazer aprimoramento, ensinar o cara a fazer um domínio orientado, a saber cruzar a bola na área, a ter bom tempo de impulsão para atingir a bola. Ou seja, gasta-se tempo fazendo algo que o jogador já deveria ter aprendido na base.
MN – No seu entendimento, a que se deve essa carência no processo de formação dos atletas profissionais de futebol?
Cleber Gaúcho – Mesmo o Brasil ainda sendo um celeiro enorme estamos tendo cada vez mais dificuldade. Há uma questão social relacionada a isso. Hoje não há tantos campinhos de várzea. Aqueles que você tinha para brincar, cheios de buracos, ou na rua de paralelepípedos ou asfalto mesmo, em que a bola quicava e você tinha que ter o movimento fino. Isso tudo você já absorvia na infância, ao natural. Seja pelo crescimento das cidades ou por questões de segurança, as crianças não brincam nos campos. Quando criança, com meus cinco, seis anos, saía para jogar bola e só voltava à noite. A cada dez meninos que nasciam, nove queriam ser jogadores de futebol. Hoje, não. Isso impacta no futebol profissional.
MN – Agora do lado de cá, chegou o momento de equilibrar a estatística de confrontos contra o MAC, favoráveis ao senhor, seja como jogador ou treinador?
Cleber Gaúcho – Agora estou no MAC (risos). Que a gente consiga, diante dos adversários, ter esta mesma projeção em relação a resultados para que consiga dar alegria ao torcedor e alcançar os objetivos. Que ao final de abril [de 2024] possa estar todo mundo feliz e comemorando esse acesso que é tão importante.
MN – Mantido o trabalho, do início ao fim do Paulista da A3 de 2024, dá para acreditar em um possível acesso?
Cleber Gaúcho – Com certeza. Vamos trabalhar muito. Vamos nos entregar de corpo e alma. Aproveito para pedir o apoio do torcedor. Todas as vezes que vim aqui, seja como atleta ou técnico, já presenciei, vivenciei e sei o quanto essa torcida aqui inflama e é apaixonada e busca incentivar sua equipe. Eu conto com isso para que seja um elo forte para que a gente consiga os resultados em casa.