Um relato que nos chega do tempo da escravidão
“Chegamos em Pernambuco, América do Sul, de manhã cedo. E o navio ficou zanzando durante o dia sem lançar âncora. Ficamos sem comida e sem bebida dia inteiro e nos foi dado a entender que deveríamos permanecer em silêncio absoluto, sem clamor algum, se não nossas vidas estariam em perigo”.
As palavras reproduzidas na abertura desta crônica foram publicadas em 1854 por um homem retirado de sua família, de sua casa e seu país, vendido como escravo nove anos antes de publicar “Uma narrativa interessante. A Biografia de Mahommad G. Baquaqua”.
Assim como Solomon Northup descreve sua dolorosa experiência em “Doze Anos de Escravidão”, adaptado para o cinema em 2013, Baquaqua conseguiu colocar no papel seu sofrimento e suas agonias na vida em cativeiro.
Na escravidão, os senhores e os fazendeiros tinham naquelas pessoas martirizadas nas senzalas e nos trabalhos forçados – seja na lavoura ou nos comércios de então – meramente uma extensão das suas vontades. Por isso, os abusos e a crueldade imperavam de modo absoluto, e por todo momento.
Escravos não tinham direitos, não recebiam salários e muito menos horas-extras, nem benefícios e nada de bonificação por metas batidas ou produtividade superada. Eram “coisas” e como se reconheciam na condição “coisificada” – sem conhecer a terra, o idioma ou o que lhe esperava pela frente – se alimentavam de micros esperanças e minúsculos alívios.
Baquaqua, por exemplo, ao descer em Pernambuco descreve que o único pensamento que lhe veio à mente foi agradecer à Providência por estar fora do navio negreiro e respirar ar puro novamente. Isso o fez esquecer sua sentença de escravo por alguns minutos e lhe deu esperanças para seguir.
Uma forma que Baquaqua encontrou para prosseguir foi a de não trabalhar tão bem assim, numa espécie de “modo tartaruga”. Contudo, antes das “demissões” – quando, enfim, o senhor se convencia de que aquele escravo não servia para a função – o escritor apanhava muito e sofria castigos físicos severos.
“Quando qualquer um de nós se tornava desobediente, sua carne era cortada com uma faca. E então, pimenta ou vinagre eram esfregados na ferida, porque ele era muito cruel”, relatou.
De Pernambuco, Baquaqua foi vendido para um capitão de navio que o levou para Rio de Janeiro e antes de partir para Nova York, esteve no Rio Grande do Sul. Nos Estados Unidos, Baquaqua conseguiu fugir. Passa, então, uma temporada no Haiti. Entre 1850 e 1853 cursa o Ensino Superior no New York Central College (a Faculdade Central de Nova York) e em 1854, publica, em inglês, “An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua” (traduzido para o português, o livro recebeu o nome de “A biografia de Mahommad Gardo Baquaqua”, editado pela Uirapuru e lançado em 2017, portanto 163 anos após sua publicação nos Estados Unidos).
O livro “Moby Dick”, por exemplo, que completou 170 anos, circulou tanto por aqui que faz parte do imaginário da nossa Literatura por influenciar escritores e poetas, enquanto que o relato de um homem que viveu escravizado por estas terras permaneceu por mais de um século e meio esquecido e delegado ao limbo.
Antes de desaparecer da história – não se sabe qual o desfecho de seu enredo, pois os últimos relados sobre ele datam de 1857, em Liverpool – Baquaqua chegou a morar no Canadá, de onde partiu para a Inglaterra.
“O que faz a história são pessoas comuns. E estas pessoas comuns têm vidas extraordinárias. E essas vidas extraordinárias formam a história”, declarou o professor Paulo Alexandre, da rede estadual de ensino de Pernambuco, ao sintetizar a experiência que teve quando trabalhou o único relato de um escravo brasileiro com seus estudantes na sala de aula.
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