Do cinema para a literatura: o novo traçado da lida do Quentin
Sempre tive por hábito ir ao cinema. Lembro de forma muito nítida quando houve a estreia no Cine Teatro “Lucila Nascimento”, em Paraguaçu Paulista, do fantástico “E.T. – O extraterrestre”, de Steven Spielberg, no ano de 1983.
Recordo até dos trailers que passaram antes de começar a trama, que até hoje me emociona e empolga. Voltaria inúmeras vezes ao “Lucila Nascimento” e sempre para uma atividade que me dava frio na barriga de alegria. Ali conheci a história do menino que se recusava a crescer, voava com a Wendy e seus irmãos para a Terra-do-nunca, desafiando piratas e driblando o Capitão Gancho. Sofri com o cientista isolado no Ártico no longa “Os lobos nunca choram” e jamais esqueci a cena em que o biólogo é obrigado a se alimentar da única fonte de proteína disponível: os roedores. Vi ao filme brasileiro “Ele, o boto”, que traz a lenda da floresta amazônica, que o boto-cor-de-rosa ganha forma de homem em dias de festas, saindo d’água e encantando donzelas.
Num sábado de 1995, caminhei de casa até o “Lucila Nascimento” para assistir ao filme que estava em cartaz. Não tinha memorizado o nome quando o carro de som passou anunciando o longa, mas me lembro que era com o John Travolta. O filme começa e de pronto sou tomado de algo que só a tela imensa, com sonoplastia e falas, numa sala escura pode proporcionar: a viagem para uma realidade paralela. Um mundo possível de emoções, encantos e magia.
Conheço ali a forma não linear de uma narrativa cinematográfica e me dou conta de que já tinha ouvido falar daquele cineasta: Quentin Tarantino. Lembrei de “Cães de aluguel”. Quando Bruce Willis surge em cena, numa conversa cavernosa com o chefão Marsellus Wallace, entendo que o filme é dos ótimos.
“Pulp Fiction” foi paixão à primeira vista. Decido imprimir um ritmo parecido nos contos e histórias ficcionais que passaria a escrever desde então. Tempos depois, numa dessas madrugadas de “Corujão” da Globo revejo outro filme empolgante – aliás, um dos meus preferidos da “Sessão da Tarde” – “The Warriors – Os selvagens da noite”.
Identifico nos letreiros originais que se trata de um filme inspirado em livro. A obra homônima foi escrita por Sol Yurick (1925-2013), romancista nascido em Manhattan e falecido no Brooklyn, em Nova York. Consigo o livro e faço a seguinte análise após a leitura: o filme foi melhor que o livro, algo raro.
Recentemente, tive acesso ao livro “Era uma vez em Hollywood”, escrito por Tarantino e que originou o longa de mesmo nome. Os dois produtos são excelentes, cada um na sua modalidade. Tarantino sempre deixou transparecer que é um escritor que filma e um voraz leitor. Agora o cineasta faz um caminho pouco comum: o do cinema para a literatura. Ou seja, está decidido a filmar só mais um longa e depois se dedicar à escrita literária.
Ao ler “Era uma vez em Hollywood”, de Tarantino, notei o quanto ele é bom roteirista, pois cada cena descrita no livro é rica de detalhes que nos remete aos enquadramentos de cena. Esta inquietação criativa de Tarantino é muito típica de grandes talentos da sétima arte – a exemplo do nosso mariliense Rodrigo Grota, um poeta cronista que filma, na minha opinião – e coincide com algo descrito por Fernando Pessoa através de seu heterônimo Álvaro de Campos, em “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”: “O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade/É agora uma coisa onde estou fechado/Que só posso conduzir se nele estiver fechado/Que só domino se me incluir nele, se nele me incluir a mim”.
Se Tarantino se sentia fechado no cine, agora se encontra em outra embarcação: a literária.