Professor trans aciona a Justiça para ter nome social reconhecido
Como você prefere ser chamado? Uma pergunta como essa evitaria uma série de transtornos ao professor Cin Falchi, 35 anos, servidor público da Prefeitura de Marília que ingressou com uma ação na Justiça para reivindicar do município o tratamento pelo nome social.
Ele cobra o cumprimento de um direito, já reconhecido em outras esferas de governo. O nome social nada mais é que o prenome – primeiro nome – adotado pelo transexual, ou seja, que corresponde à forma pela qual a pessoa se reconhece e se identifica na sociedade.
Paulistano que escolheu Marília para estudar e viver, Cin é graduado em pedagogia e em filosofia, tem mestrado e doutorado em educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) local. Em junho de 2018, tomou posse no cargo público como professor.
Ele é ativista da causa LGBTQ+, mas espera que sua formação e suas demais atuações na sociedade sejam reconhecidas – como seus estudos na França ou ser um professor apaixonado por seu alunos – independente da bandeira que levanta.
A abreviatura do nome de registro virou apelido na época da faculdade (Unesp – Marília) e o agradou. Hoje, ele considera as três letras expressão de sua identidade. Ou seja, seu nome social e a maneira como deseja ser chamado. Como você chama? Cin!
O constrangimento, relatou ao Marília Notícia, não é pelo nome em si, mas pela reação das pessoas, que parecem exigir explicações e acabam por tirar o foco das ações rotineiras de Cin, para se atentar à sua sexualidade.
“Não é legal, toda vez que você vai registrar a digital no ponto eletrônico, ver e ter exposto o nome com o qual não se identifica. Pegar uma lista de presença de reunião, com um nome que você não reconhece. Ser chamado no microfone na frente de centenas de pessoas, exposto a constrangimento”, disse.
Cin conta que a luta para reconhecimento do nome social começou quando solicitou a troca do nome no cartão alimentação, junto à empresa contratada pela administração municipal. “Informaram que somente o empregador pode fazer o pedido, no caso, a Prefeitura”, conta.
A situação contrasta, por exemplo, com o plano de saúde, que respeitou prontamente a solicitação e alterou o cartão do convênio.
Para tentar resolver o problema, o professor procurou o setor de Recursos Humanos da Prefeitura e, após consulta dos funcionários, foi informado que não existe uma lei ou outra forma de regulamentação no município, para determinar o uso do nome social dos servidores, ao invés do nome de registro.
Passabilidade
Cin é reservado, mas não se importa com perguntas. Aliás, prefere ser questionado do que ser rotulado. Nisso, as crianças dão aula.
“Nunca tive problemas com os alunos. Eles sempre me trataram, espontaneamente, como professor Cin, tio. Criança tem uma vantagem muito grande: eles não têm medo de perguntar e sempre fazem isso na inocência”, disse.
Ele diz também que, nas duas escolas onde trabalhou na rede municipal, sempre encontrou amizade e respeito. Inclusive, a maior preocupação – antes de ingressar no cargo – eram os pais dos alunos, porém foi surpreendido positivamente.
Por outro lado, não vê o mesmo respeito nos balcões da burocracia da Prefeitura e Secretaria Municipal da Educação, onde sempre é alegada a falta de regulamentação do tema para tratar Cin, como Cin.
“Em uma reunião, por exemplo, tenho que falar com duas ou três pessoas, para pedir, por favor, que me apresentem como Cin. É constrangedor e desnecessário”, considera.
Segunda puberdade
O educador conta que há cerca de um ano começou a terapia hormonal. Se orgulha da barba que começa a surgir e da voz que mudou radicalmente. Ele comemora cada avanço no tratamento que faz na rede privada de saúde e brinca com as mudanças no corpo.
“Estou na segunda puberdade, mas minha cabeça é de adulto, que fez cada coisa a seu tempo, por isso só estou fazendo a passibilidade (alteração física com o uso de hormônios) agora, mais maduro. Nunca imaginei na vida que faria isso”, revela.
Sobre possível alteração no registro de nascimento Cin prefere não antecipar. “Uma coisa por vez e não quer pensar nisso agora. Fato é que, independente de passabilidade, de mudança de registro, o que eu não quero é deixar de ser tratado como uma especificidade. Eu sou uma pessoa, que tem uma história e tem um nome. Só isso. É pedir demais?”, questiona.
Direito
O advogado Luís André Lisque Noro de Freitas, que assina a petição inicial do processo movido por Cin contra a Prefeitura de Marília, explica que o nome social já é usado no Sistema Único de Saúde (SUS) há anos e também foi objeto de decreto presidencial, em 2016, assegurando o direito aos servidores federais.
Em 2018, o então Ministério da Educação e da Cultura (MEC) também regulamentou o tema por meio de resolução, garantindo o uso do nome social.
No Estado de São Paulo, conforme dados da própria Secretaria da Educação, somente em 2018 foram mais de 500 matrículas que incluíram o nome social nos registros dos alunos. Quando menores, esclareceu a Secretaria, a inclusão foi feita após manifestação dos pais.
“Entendemos que existe uma violação de direito, sobretudo porque essa insistência em ignorar o nome social fere a dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição. O amparo legal, que a Prefeitura alega não ter, não justifica impor o sofrimento ao servidor público, uma vez que ele já formalizou vários requerimentos”, disse o advogado.
A Justiça não acolheu pedido de liminar e o caso segue na Vara da Fazenda Pública. O advogado diz entender o fato de não ter havido antecipação de tutela.
“Acredito que a Justiça também não esteja preparada para algo que podemos considerar novo, mas é fundamental que faça uma leitura ampla da situação”, disse Luiz André.
Em sua defesa apresentada à Justiça, a Prefeitura de Marília alegou que o tema ainda não está regulamentado no âmbito do município.
Prefeitura
Após questionamento da reportagem, a Prefeitura de Marília informou que “estão sendo feitas as adequações no sistema”.