Problemas climáticos e dólar mais alto dificultam trégua da inflação dos alimentos
Uma combinação de fatores pode dificultar a trégua esperada para os preços dos alimentos na virada do primeiro para o segundo semestre no Brasil.
A inflação da comida já é pressionada pelas enchentes de maio no Rio Grande do Sul, e outro risco que surge no radar para os próximos meses é a chegada do fenômeno La Niña.
Dependendo da intensidade no segundo semestre, o evento pode prejudicar plantações e afetar os preços de itens como hortifrúti e grãos, dizem economistas.
Eles também veem ameaça na escalada do dólar em meio a incertezas fiscais no país. O movimento pode pressionar as cotações de commodities como soja e milho, insumos importantes na produção de carnes.
Não à toa, bancos, consultorias e outras instituições elevaram recentemente suas estimativas para a inflação dos alimentos no acumulado até dezembro.
“Chegar ao final do ano com uma inflação de 4% para os alimentos ainda é possível, mas está se tornando um desafio cada vez maior”, diz Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados.
“Já houve uma pressão forte. Vamos ter de acompanhar os efeitos do La Niña e do câmbio.”
A estimativa de Vale para a alta dos preços da alimentação no domicílio aumentou de 4,5% para 5,4% no acumulado de 2024. “A chance de termos inflação em torno de 5% ou acima disso aumentou bastante”, afirma.
A alimentação no domicílio integra o cálculo do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O IPCA é o índice oficial de inflação do país.
Após uma alta de 13,23% no acumulado de 2022, os alimentos registraram queda de 0,52% em 2023, a primeira deflação desde 2017 (-4,85%). Apoiadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comemoraram o resultado do primeiro ano do atual governo.
No início de 2024, porém, os consumidores sentiram nova pressão nos alimentos com o registro de problemas climáticos que reduziram a oferta de itens diversos. Conforme analistas, as dificuldades de cultivo foram intensificadas pelo fenômeno El Niño, que afeta a distribuição das chuvas.
A preocupação com os preços teve novo capítulo após as enchentes de maio no Rio Grande do Sul. O estado é o maior produtor de arroz do Brasil. Também tem importância no cultivo de grãos como soja e milho e na produção de carnes e leite.
De janeiro a maio deste ano, a alimentação no domicílio acumulou inflação de 5,1% no IPCA. Em 12 meses até maio, a alta foi de 3,27%.
“O efeito das chuvas no Rio Grande do Sul foi extremo. Isso diminui a condição do solo para novas safras. É algo que não se recupera no curtíssimo prazo”, diz o economista André Braz, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). “Uma oferta menor no Sul tem algum impacto no restante do Brasil.”
O pesquisador lembra que, de junho a setembro de 2023, a alimentação no domicílio engatou quatro meses consecutivos de queda no IPCA, algo considerado mais difícil em 2024. “A gente não deve ver isso neste ano.”
Braz passou a prever alta de 6% para a alimentação no domicílio no acumulado de 2024. Antes da tragédia no Sul, a estimativa era menor, de 3,5%.
O economista chama atenção para a possível pressão da taxa de câmbio, que ultrapassou a cotação de R$ 5,50 após ruídos sobre a política fiscal do governo Lula.
“O país é um grande produtor de grãos, mas não importa ter soja para dar e vender se a cotação subir porque a nossa moeda se desvalorizou”, diz Braz.
O pesquisador também destaca que o dólar alto incentiva exportações, o que pode reduzir a oferta interna de alimentos e impactar os preços finais.
A moeda americana em patamar mais alto, aponta Braz, ainda tende a encarecer a importação de insumos como trigo, usado na fabricação de pães, massas e biscoitos.
O economista Igor Cadilhac, do PicPay, afirma que, sem os impactos do clima, a inflação dos alimentos já poderia estar mais controlada, ao contrário do que foi visto recentemente.
No IPCA-15 (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15), a alta da alimentação no domicílio saltou de 0,22% em maio para 1,13% em junho. O IBGE destacou a carestia da batata-inglesa (24,18%), do leite longa vida (8,84%), do arroz (4,20%) e do tomate (6,32%).
O IPCA-15 é divulgado pelo instituto antes do IPCA, podendo sinalizar uma tendência para os preços no índice oficial. Os dados de junho do IPCA ainda não estão disponíveis.
“Se já não bastassem os efeitos do El Niño e a transição para o La Niña, teve também a questão do Rio Grande do Sul”, aponta Cadilhac. O PicPay aumentou sua estimativa para a inflação da alimentação no domicílio de 5% para 6% no acumulado deste ano.
“Na primeira parte do primeiro semestre, os alimentos foram muito pressionados pelo El Niño. Itens in natura subiram muito. Quando esses itens estavam voltando um pouco, ocorreu a tragédia no Rio Grande do Sul. A gente viu um rebote nos preços dos alimentos”, afirma o economista Adriano Valladão, do banco Santander.
De acordo com ele, apesar das ameaças existentes no radar, a perspectiva ainda é de trégua para a inflação ao longo do segundo semestre.
O cenário indica uma alta de 4,8% para os alimentos no acumulado do ano, de acordo com projeções preliminares do Santander, que são atualizadas com mais frequência, antes da divulgação da estimativa oficial do banco.
Valladão afirma que a chegada do La Niña é um risco para os próximos meses, mas, por ora, a previsão de um evento de intensidade fraca a moderada tende a diminuir a preocupação.
O fenômeno costuma ser associado a chuvas acima da média nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Enquanto isso, o Sul e parte do Centro-Oeste e do Sudeste têm precipitações de forma irregular, com mais riscos de seca ou estiagem.
De acordo com Valladão, a partir do final deste ano, o consumidor brasileiro também pode sentir o início de uma pressão sobre os preços das carnes. As mercadorias acumularam queda de 9,37% no IPCA em 2023 e baixa de 2,43% nos cinco primeiros meses de 2024.
A trégua veio com a oferta maior de proteína animal, mas uma reversão no ciclo da pecuária pode mudar o cenário de preços ao final deste ano, indica o economista.
A inflação da comida impacta sobretudo os consumidores mais pobres. Isso ocorre porque as famílias com renda menor costumam destinar uma fatia maior do orçamento, em termos proporcionais, para a compra de alimentos.
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POR LEONARDO VIECELI