‘Prevenção ao suicídio não se faz só em setembro’, diz psicóloga Lu Handa
Há sete anos, profissionais de saúde voluntários de Marília dedicam tempo e atenção àqueles que insinuam abreviar o próprio relógio da vida na cidade-sede da 2ª região administrativa com maior incidência de suicídios no Estado de São Paulo.
À frente desta corrida em grupo multiprofissional pela vida está a psicóloga Luciana Handa ou apenas Lu Handa, como é conhecida e reconhecida por colegas capacitados por suas formações e, principalmente, pelos pacientes que a procuram.
“Não estamos em um serviço de convencimento, mas de prevenção. Diante do conceito do suicídio como um vazio existencial, acho que cada um tem que fazer a sua parte de cuidar o melhor que possa, em todas as suas dimensões, de sua própria vida”, afirma Handa.
Em entrevista ao Marília Notícia, a psicóloga fala sobre como um suicídio a levou a se dedicar a formar um grupo de prevenção e questiona o sentido do Setembro Amarelo em uma cidade que enfilera doentes mentais com tratamento insuficiente na rede pública.
Além de psicóloga, Handa é formada em Direito. É casada, mãe de um casal e tem uma netinha de um ano. Especializada em suicidologia (pela qual é pós-graduanda), luto, sofrimento extremo e arte-terapia, ela cuida da própria saúde mental enquanto trata a do próximo tendo como hobby o prazer da leitura e a alegria de estar entre amigos.
Apesar de seu propósito informativo, este texto tem conteúdo sensível para pessoas que estejam suscetíveis a eventuais gatilhos provocados pelo tema. Caso precise de ajuda, ligue para o número (14) 9 8173-8246 [clique aqui].
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MN – O que a motivou a especializar-se em prevenção ao suicídio? O psicólogo apreende a lidar com esse fenômeno na faculdade?
LUCIANA HANDA – Nunca tive perda por suicídio em minha família, mas sim no terceiro ano de minha faculdade de Psicologia. Uma de nossas colegas se matou e não sabíamos o que fazer com esta notícia, com esse lugar vazio que ficou na classe. Temos um déficit em nossas grades curriculares de cursos de saúde, tanto na Enfermagem quanto na Medicina, na Psicologia, na Terapia Ocupacional e Fisioterapia. Não nos ensinam como cuidar e manejar o comportamento suicida. Ali no terceiro ano de Psicologia eu percebi que precisava me especializar nesse assunto. Quando as pessoas estão em sofrimento, elas são encaminhadas aos nossos consultórios. Infelizmente nossa classe não está capacitada para receber esse tipo de demanda.
MN – Como a senhora tem ‘compensado’ essa defasagem na oferta de capacitação aos profissionais da Saúde?
LUCIANA HANDA – Temos feito muitas capacitações para psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, para quando atenderem essa demanda em hospitais e postos de saúde. Neste mês de setembro, estamos fazendo a orientação para toda rede de saúde em Marília. É uma orientação técnica sobre como acolher as pessoas em sofrimento. Este trabalho me moveu a montar o grupo de prevenção aos sobreviventes enlutados. Começamos nosso atual grupo de prevenção pelas pessoas em luto a partir da procura pelo apoio a pessoas que tentavam o suicídio. Foi quando observamos esta necessidade em Marília. E é enorme.
MN – O que é o Grupo de Prevenção e Posvenção ao Suicídio de Marília?
LUCIANA HANDA – É um grupo que conta hoje com mais de 40 psicólogos voluntários treinados e capacitados para essa demanda de atendimento em prevenção e posvenção ao suicídio. A posvenção é toda atividade que fazemos para minimizar o impacto do suicídio quando ocorre em uma família, numa escola, numa empresa. Atualmente, o grupo oferece palestras, rodas de conversa em escola, trabalhos com crianças e adolescentes e ainda um atendimento psicológico social com valor reduzido para pessoas em sofrimento com fatores de risco para suicídio.
MN – Como é feito o atendimento?
LUCIANA HANDA – A triagem é feita, a princípio, pelo número de WhatsApp (14) 9 8173-8246, conforme consta nos folders que divulgamos nas escolas, em postos de saúde, nas redes sociais. Nós oferecemos este serviço para que as pessoas entrem em contato conosco. Agendamos de imediato a triagem e oferecemos as sessões e psicoterapia com valor reduzido. O atendimento não é gratuito, mas a população consegue ter acesso. Temos psiquiatras parceiros que também oferecem suas consultas com valor reduzido e abrem vagas em suas agendas. Nós encaminhamos os pacientes, atendidos nas clínicas dos voluntários.
MN – Qual é a demanda atual de sua clínica?
LUCIANA HANDA – Atualmente, tenho 15 vagas para valor social, além de minhas demandas particulares.
MN – O apoio às pessoas enlutadas pelo suicídio continua?
LUCIANA HANDA – Sim. Também é uma forma de se trabalhar a prevenção ao suicídio. Famílias que têm suicídio são mais propensas a pensar em desistir. Por isso, prevenimos também quando cuidamos daqueles que ficam. Um luto tão difícil e demorado, cheios de ‘ses’ e de ‘porquês’.
MN – Quais sinais devem ser percebidos por quem vive próximo a um potencial suicida para orientá-lo ao tratamento?
LUCIANA HANDA – Existem sim alguns sinais de alertas que podemos ficar de olho como isolamento, falas de despedida como ‘estou cansado de viver’, ‘gostaria de dormir e não acordar mais’, ‘vocês não vão mais sofrer e ter preocupações comigo’ e também a doação de pertences pessoais, distribuição de herança antes do tempo. Adolescentes que se autolesionam podem estar muito propensos a querer tirar a própria vida. Mas, devemos sempre mencionar que nem sempre eles ocorrem. Há pessoas que não falam absolutamente nada.
MN – O que leva uma pessoa a tentar contra a própria vida?
LUCIANA HANDA – O suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. Nós não temos uma causa única para explicar porque acontece. São vários fatores biológicos, psicológicos, culturais, sociais, pessoais e políticos que provocam um adoecimento existencial na vida do ser humano. Isso precisa ser acolhido e tratado. A pessoa, quando pensa em tirar a própria vida, ela quer tirar uma dor, um sofrimento extremo que tem levado ao desamparo, à desesperança. Na verdade, ela [pessoa] pensa em se livrar disso, e não da própria vida.
MN – O quanto o fator psiquiátrico está relacionado ao suicídio?
LUCIANA HANDA – É importante não atrelar o suicídio a pessoas com transtornos psiquiátricos. Isso não é uma verdade. Os estudos mais recentes já mostram que o distúrbio psiquiátrico é apenas um dos fatores de risco ao suicídio.
MN – Quais são os perfis mais comuns às pessoas que tentam contra a própria vida?
LUCIANA HANDA – Precisamos tomar cuidado com isso. Não existem perfis de pessoas que se matam, mas fatores de risco e gatilhos que podem fazer com que a pessoa leve a um adoecimento profundo e extremo e, não conseguindo encarar isso, em algum momento, pense em desistir e a tirar a própria vida.
MN – Como a solidão impacta neste adoecimento?
LUCIANA HANDA – Primeiramente, é preciso saber que tipo de vida que vale a pena ser vivida. É preciso saber entender como temos encarado os obstáculos que a vida nos promove e o que temos feito em relação a isso. Temos estudos em Marília que mostram o peso das relações interpessoais em família e na sociedade no desejo das pessoas de continuarem a viver. Hoje as pessoas vivem mais sozinhas, sem amparo, sem convívio. Inclusive, estudantes em uma cidade universitária como a nossa. O abuso de álcool e drogas facilitam o adoecimento extremo.
MN – Dados oficiais recentes apontam crescimento no número de suicídios em Marília. O que a cidade tem a ver com esse fenômeno?
LUCIANA HANDA – Nós precisamos tomar bastante cuidado quando escutamos algumas notícias de que a cidade de Marília é a ‘capital do suicídio’. Isso é uma inverdade. A região administrativa de Marília, que é composta de vários municípios, é considerada hoje a segunda do Estado de São Paulo onde mais suicídios acontecem. Não é uma questão única da cidade. A exemplo de tantas outras do Estado e do país, nós temos muita dificuldade a acesso à saúde mental. O atendimento psicológico e psiquiátrico ainda falta em nossa cidade. No entanto, como definimos o suicídio como um fenômeno multifatorial, nós não podemos atribuir somente o alto número de suicídios pela falta deste atendimento. Não pode limitar à parte médica, mas também de esportes, lazer, cultura.
MN – O quanto o preconceito ainda afeta pessoas vitimadas direta e indiretamente pelo suicídio?
LUCIANA HANDA – O suicídio, infelizmente, ainda é um tabu em nossa sociedade. Por não falarmos sobre suicídio e morte, fica difícil para as pessoas compartilharem isso com as outras. Principalmente quando estão em sofrimento, seja com uma dor, um problema. Elas se fecham em virtude deste preconceito porque não conseguem, muitas vezes, serem acolhidas de forma empática e sem uma escuta sem julgamentos, sem dar conselhos, colocando-se disponível para ajudar.
MN – Setembro é amarelo, mas em todos os meses a vida tem desbotado da existência em Marília. Como manter um calendário preventivo o ano todo?
LUCIANA HANDA – Prevenção ao suicídio não se faz apenas no setembro amarelo, com bexigas amarelas, com festividades e plantando girassóis. Isso não é efetivo. Trata-se de uma campanha de conscientização, de algo muito sério. Deve ser uma promoção de vida, saúde, cultural, esportiva, para adolescentes, cujo grupo é um dos mais vulneráveis atualmente. Está muito longe do propagar ‘busque ajuda’, ‘valorize a vida’. Ok, nós podemos ter essa bandeira, mas que tipo de vida queremos que o paciente em sofrimento tenha? Será que ele tem a possibilidade de levar sua vida adiante? Será que essa vida é tão boa que ele precise valorizar?
MN – Como orientar pessoas a buscar ajuda se o sistema público não as atende?
LUCIANA HANDA – A pessoa não está desvalorizando a vida com a ideação suicida. Pelo contrário: tanto valoriza que não quer a vida que tem hoje, em estado de adoecimento. Isso nos faz pensar e tomar muito cuidado na hora que promove ações como o Setembro Amarelo. Por entender que estejamos prevenindo, podemos estar oferecendo um desserviço. Principalmente quando manda a pessoa buscar ajuda, mas temos condições para isso em nosso sistema público de saúde? Hoje nós temos filas de dois, três anos para a psicologia, a psiquiatria. Isso tudo é muito difícil para as pessoas em sofrimento. A prevenção, durante o ano todo, passa por políticas públicas preventivas. Temos muitos locais perigosos que facilitam o suicídio em Marília. As contenções nas estradas, por exemplo, ajudam nisso.
MN – A senhora falou em grupos vulneráveis. Além dos adolescentes que já citou, quais seriam os demais?
LUCIANA HANDA – Temos em primeiro lugar o grupo de idosos com mais de 70 anos. É o que mais se mata no mundo. Qual qualidade de vida estamos proporcionando em nossas cidades para os idosos? Ainda sobre os adolescentes, temos a população de 10 a 19 anos como prioritário de vulnerabilidade. Temos ainda a população negra, a LGBTQIAPN+, os indígenas e profissionais da saúde por terem muito acesso a meios letais. E ainda, pessoa que abusam de álcool e drogas. Todas as ações que fazemos em favor delas são preventivas ao suicídio.
MN – O suicídio assistido é proibido no Brasil. Até que ponto a manutenção da vida, a seu ver, viola a dignidade da pessoa humana?
LUCIANA HANDA – Essa questão é bem complexa. É muito fácil falar que a pessoa precisa viver a qualquer custo. Eu costumo dizer na minha clínica que eu não convenço ninguém a ficar vivo, mas posso pensar junto sobre a possibilidade de melhorar a existência. Porque quando a pessoa quer desistir de viver, de enfrentar os sofrimentos extremos, não tem quem a convença do contrário. Não estamos em um serviço de convencimento, mas de prevenção. Diante do conceito do suicídio como um vazio existencial, acho que cada um tem que fazer a sua parte de cuidar o melhor que possa, em todas as suas dimensões, de sua própria vida. Às vezes, não autorizar a questão do suicídio assistido pode ser sim violar a dignidade humana. Porque aquela vida que a pessoa está vivendo, daquela forma, não se suporta mais. É preciso muito mais debates sobre isso e a conscientização do que estamos fazendo com a própria vida e a das outras pessoas que nos rodeiam nas nossas cidades, no país, no mundo, haja vista todas as dificuldades que temos enfrentado. A fome, a miséria, as mudanças climáticas envolvem o desespero, o desamparo e desesperança, que compõem os comportamentos suicidas. O que temos promovido para que as pessoas queiram viver? Pensemos nisso.
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