Plano golpista com Bolsonaro tinha frentes diversas e descoordenadas
O golpe de Estado pretendido por Jair Bolsonaro (PL), seus auxiliares e militares da ativa e da reserva descrito na investigação conduzida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal não era uma ação única e coordenada, mas algumas tentativas sem conexão aparente.
Embora a reunião de 5 de julho de 2022 – uma prima-irmã da também assombrosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020 – tenha sido um ensaio com diretrizes para uma ruptura institucional, os indícios ou provas para tentar operacionalizar um golpe surgem somente em novembro.
Conversas entre o tenente-coronel Mauro Cid e o major Rafael Martins de Oliveira, preso na operação da última quinta-feira (8) revelam articulações para financiar manifestações em Brasília contra o resultado eleitoral.
Segundo a PF, Cid “confirma que os alvos seriam o Congresso Nacional e o STF (Supremo Tribunal Federal) e sinaliza que as tropas garantiriam a segurança dos manifestantes”. Na decisão do ministro Alexandre de Moraes, não fica clara a data dessas manifestações nem há provas adicionais a corroborar as ameaças de Cid.
Em 12 de novembro, ocorre uma reunião em Brasília com a presença de Cid, Oliveira e outros militares das Forças Especiais do Exército para, conforme a investigação, “tratar de assuntos relacionados à estratégia golpista”. Dois dias depois, o major Rafael Oliveira pede dinheiro a Cid para bancar a viagem de manifestantes vindos do Rio. Acertam que Cid lhe repassaria R$ 100 mil.
Outro oficial da ativa contra quem foi decretada a prisão preventiva por envolvimento nas articulações golpistas é o coronel Bernardo Romão Corrêa Neto, cujos diálogos com Cid são os elementos mais contundentes de preparação de uma ruptura e de tentativa de persuadir militares relevantes a aderir. O coronel está nos Estados Unidos e deve vir escoltado para o Brasil nos próximos dias.
À época lotado no Comando Militar do Sul, Corrêa Neto organizou com Cid uma segunda reunião envolvendo militares das Forças Especiais do Exército em 28 de novembro.
Na interpretação dos investigadores, o convite a apenas integrantes das Forças Especiais, uma força de elite do Exército, demonstraria um “planejamento minucioso para utilizar, contra o próprio Estado brasileiro, as técnicas militares para consumação do Golpe de Estado”.
Na noite do mesmo dia, Corrêa Neto enviou a Cid uma minuta intitulada “Carta ao comandante do Exército de oficiais superiores da ativa do Exército brasileiro”, e, no entender da PF, “documento provavelmente discutido” na reunião e “utilizado como instrumento de pressão ao então comandante do Exército, general Freire Gomes”.
Até ali, estavam em ação os núcleos de “desinformação e ataques ao sistema eleitoral” e “responsável por incitar militares a aderirem ao golpe de Estado” (as denominações são dos investigadores). Então entra em cena o “núcleo jurídico”, cujas peças centrais são Filipe Martins, que foi assessor especial de Bolsonaro, e o advogado Amauri Feres Saad.
São eles que, segundo a PF, apresentam ao então presidente uma minuta de decreto “detalhando supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e [que] ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e por fim determinava a realização de novas eleições”.
Bolsonaro teria solicitado alterações no texto do decreto, mantendo a prisão de Moraes e a realização de novas eleições.
No parecer em que se manifesta favoravelmente à prisão preventiva de Martins, a Procuradoria-Geral da República afirma: “A Polícia Federal ressalta que, uma vez atendida a solicitação e apresentada a nova versão da minuta, o ex-presidente teria concordado com os termos ajustados e convocado os generais e comandantes das Forças Armadas, Almirante Garnier, general Freire Gomes e brigadeiro Baptista Júnior, para que comparecessem ao Palácio da Alvorada, no mesmo dia [7 de dezembro], a fim de apresentar-lhes a minuta e pressioná-los a aderir ao golpe”.
O general Estevam Theophilo, que na época comandava o Coter (Comando de Operações Terrestres) e integrava, portanto, o Alto Comando do Exército – é o militar de quatro estrelas mais implicado na nova operação da PF. Theophilo, que passou à reserva em 1º de dezembro passado, foi alvo de busca e apreensão, assim como outros oficiais-generais de seu nível.
Em sua decisão, Moraes reproduz relatório da PF segundo o qual Theophilo, após uma reunião com Bolsonaro em 9 de dezembro, “teria consentido com a adesão ao golpe de Estado desde o que presidente assinasse a medida”.
Mas, pelo menos no material até aqui conhecido, não há elementos que sustentem tal assertiva – baseada num diálogo entre Mauro Cid e Bernardo Corrêa Neto. Em outro diálogo, Cid sinaliza para o comandante Freire Gomes que Bolsonaro “estava redigindo e ajustando o decreto e já buscando o respaldo” de Teophilo.
Moraes também reproduz trecho do relatório da PF afirmando que “elementos indiciários já reunidos apontam que caberiam às Forças Especiais do Exército (os chamados Kids Pretos) a missão de efetuar a prisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes assim que o decreto presidencial fosse assinado”.
Segundo a investigação, a prisão do ministro caberia ao 1º Batalhão de Ações de Comandos, unidade para a qual Cid foi nomeado para chefiar, decisão depois revertida. A decisão de Moraes não traz provas disso.
A participação de um coronel assistente de Teophilo no Coter, Cleverson Ney Magalhães, numa das reuniões de articulação do golpe é apontada como um desses elementos indiciários.
Há, nesse trecho do relatório, um erro factual: a PF diz que a adesão do Coter seria fundamental ao golpe, por tratar-se da “unidade militar que tem, sob sua administração, o maior contingente de tropas do Exército”. Na verdade, o Coter não comanda tropas nem tem poder para acioná-las, mas sim exerce o controle operacional (orienta e coordena o seu preparo e emprego).
Há só um diálogo de Theophilo registrado no material. Em 2 de janeiro de 2023, Cid lhe encaminha uma notícia de que poderia ser preso, ao que o general responde: ”Fique tranquilo Cid. Vou conversar com o Arruda hoje. Nada lhe acontecerá”. Cid foi preso.
Os outros oficiais-generais de quatro estrelas alvos de busca e apreensão na operação foram o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha) e os generais Augusto Heleno (ex-ministro do GSI), Walter Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil e da Defesa) e Paulo Sérgio Nogueira (ex-comandante do Exército e ex-ministro da Defesa).
Como já era conhecido, Garnier, segundo Cid, teria colocado tropas à disposição de Bolsonaro em caso de golpe.
Heleno declarou, na reunião de 5 de julho de 2022, que conversou com o diretor-adjunto da Abin “para infiltrar agentes nas campanhas eleitorais” e incentivou um golpe antes das eleições. “Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições. (…) E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas.”
Em mensagens reproduzidas na decisão de Moraes, Braga Netto xinga Freire Gomes de “cagão” por estar resistindo em aderir ao golpe.
E Paulo Sérgio, na mesma reunião de 5 de julho, diz que a Comissão de Transparência Eleitoral criada pelo Tribunal Superior Eleitoral seria “para inglês ver” e um “ataque à democracia” e encarava o TSE como inimigo.
“Por fim”, relata a PF, “o então ministro da Defesa admite que a atuação das Forças Armadas para garantir transparência, segurança, condições de auditoria – nas eleições tinha a finalidade de reeleger o então presidente Jair Bolsonaro”.
Os generais que foram alvo da PF não têm se manifestado sobre a operação e as acusações de golpismo. Bolsonaro, após a ação policial, voltou a afirmar que sofre “uma perseguição implacável”, sem entrar em detalhes das suspeitas levantadas. A defesa do ex-assessor Filipe Martins tem dito que a prisão dele é ilegal e “desprovida dos requisitos básicos”.
Vários outros militares aparecem nas tramas golpistas, segundo a PF, com destaque para o coronel da reserva do Exército Marcelo Câmara (espécie de araponga particular de Bolsonaro e informante de Cid sobre os passos de Moraes), o capitão expulso do Exército Aílton Barros, os tenentes-coronéis da ativa Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros e Hélio Ferreira Lima e o general da reserva Laércio Virgílio.
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POR FABIO VICTOR