Paris-2024 é mais uma edição olímpica questionada por ‘faxina social’
Em um site de reservas, o Hotel d’Olivet é o sexto melhor (nota 3 em uma escala até 5) dos sete da pequena Olivet, cidade de 22 mil habitantes na periferia de Orléans, 120 km ao sul de Paris. “Pior não existe”, diz o comentário de um internauta. “Meu antebraço e minha cintura foram atacados por percevejos”, escreve outro.
A discussão está ligada aos Jogos Olímpicos deste ano, uma questão recorrente em grandes eventos esportivos: a acusação do que é chamado de “faxina social”.
Uma campanha que reúne 86 ONGs e associações de apoio a pessoas em situação vulnerável denunciou que autoridades francesas estão retirando de Paris sem-teto e migrantes e pressionando trabalhadores do sexo e usuários de drogas a deixar a capital.
O nome da campanha, “Le Revers de la Médaille” (“O Reverso da Medalha”), é uma referência explícita aos Jogos. Entre as entidades que aderiram estão algumas das mais respeitadas na França, como a Emmaüs, e no exterior, como a Médicos do Mundo e o Observatório Internacional das Prisões.
“A relação com os Jogos Olímpicos é imediata, porque em algumas expulsões estão ocorrendo ao lado das sedes de competição, como em Saint-Denis, e o poder público não dá explicações”, disse à reportagem Antoine de Clerck, um dos líderes da campanha e diretor da Refugee Food, ONG que capacita refugiados políticos para trabalhar em restaurantes.
As denúncias de “La Revers de la Médaille” vinham tendo pouca repercussão até o início desta semana, quando o prefeito de Orléans, Serge Grouard, convocou a imprensa para fazer uma denúncia: desde maio do ano passado mais de 500 pessoas foram despachadas pelo governo para sua cidade, de 115 mil habitantes, e alojadas no hotel da vizinha Olivet.
Segundo ele, a cada 20 dias um ônibus chega de Paris lotado de sem-teto e migrantes. Em três semanas, são redirecionados por assistentes sociais e substituídos por novos “hóspedes”. Outras nove cidades francesas também estariam recebendo os sem-teto.
“É tudo feito às escondidas, é particularmente chocante”, diz Grouard, do partido Republicanos, de direita. “Orléans não tem vocação para abrigar a colina do crack”, acrescenta, referindo-se à cracolândia de Paris, que fica em Porte de la Chapelle, bairro do norte da capital francesa.
O prefeito pediu explicações ao ministro do Interior da França, Gérald Darmanin (partido Renascimento, considerado de centro), cuja pasta cuida de temas como a política de migração e a segurança dos Jogos Olímpicos.
O ministério nega a existência de qualquer operação sistemática. O máximo que admite é a criação, desde o ano passado, de novos centros de acolhimento temporário de migrantes, espalhados pelo país e sem relação com os Jogos.
O Comitê Organizador de Paris-2024 disse à Folha de S.Paulo, em nota, estar “muito atento a eventuais impactos” de suas operações “sobre a ajuda às pessoas em situação de exclusão e precariedade”, que faz “todo o possível para que soluções concretas sejam levadas às pessoas cuja situação, já muito difícil, for impactada nos locais onde o evento ocorrerá”.
A organização acrescentou que desde setembro passado o governo da região parisiense, a polícia, a prefeitura de Paris, os serviços de saúde e associações “trabalham juntos para garantir o acompanhamento social dos sem abrigo suscetíveis de ser impactados pelas instalações temporárias dos Jogos”.
Lamia El Araaje, porta-voz da prefeitura de Paris, afirma que a prefeita Anne Hidalgo (Partido Socialista) “denuncia há muito tempo” as expulsões de sem-teto.
“Há seis meses nós lutamos, mas não houve nenhuma mudança. Ao contrário: tem havido uma aceleração das expulsões e das intimidações”, acusa Antoine de Clerck. Um exemplo, segundo ele, é o recrudescimento do que no Brasil é conhecido como “rapa”, tendo como alvo camelôs que atuam em torno da Torre Eiffel, em “operações esconde-miséria que não adiantam nada, porque você tira um, e na mesma hora outro toma o lugar”.
Para lançar a campanha, os responsáveis estudaram o histórico de outros megaeventos esportivos, como os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. “Aconteceram coisas catastróficas no Rio”, diz De Clerck, referindo-se à remoção de moradores da Vila Autódromo, comunidade vizinha ao parque olímpico carioca. “Guardadas as devidas proporções, há 15 dias uma bidonville [favela] de 200 pessoas, que existia desde 2017, foi evacuada em Antony, ao sul de Paris.”
O caso histórico mais emblemático, segundo ele, foi o dos Jogos de Inverno de Vancouver, no Canadá, em 2010. Os organizadores assinaram um compromisso de luta contra a exclusão que tinha 27 itens; apenas três teriam sido cumpridos.
Acusações de algum tipo de “faxina social” ocorreram em virtualmente todas as Olimpíadas recentes. Em Sydney-2000, mendigos foram retirados do centro turístico. Em Pequim-2008, as “hutong”, ruelas repletas de barracos que são comuns na capital chinesa, ficavam escondidas atrás de tapumes, e os táxis as evitavam nos trajetos com estrangeiros. A construção do parque olímpico de Londres-2012 provocou a gentrificação de uma região desfavorecida da capital britânica.
Um recenseamento feito no mês passado por uma ONG parisiense contou 3.492 pessoas dormindo nas ruas de Paris, uma alta de 16% em relação a um ano antes. Em uma caminhada pelo centro da capital francesa, é comum encontrar pessoas em situação de rua, tentando se proteger do inverno, dormindo sob as pontes do rio Sena, nos túneis do metrô ou em cima de grades de aeração, por causa do ar quente. Também é frequente vê-las sendo abordadas por policiais.