Os leitores do tempo
Confesso que eu não existiria enquanto escritor se antes não fosse, e continuei sendo, leitor. A perguntar “Escritor é leitor?” feita em recente artigo veiculado na imprensa mariliense e assinado pelo autor, escritor, editor e revisor Luiz Carlos Amorim é muito oportuna e provocante.
Oportuna porque abre um diálogo sobre uma das habilidades que todos os escritores – brasileiros ou estrangeiros – precisam carregar: a da leitura.
Amorim observa em seu texto algo muito típico destes tempos de pós-modernidade: excesso de informações, muitas delas geradas por escritores digitais, mas uma baixíssima densidade de leitores. Principalmente no Brasil.
Noto que as pessoas, na maioria das vezes, dão preferências para vídeos compartilhados – muitos até com o verniz de jornalismo, mas puro fake news – ao invés de ler uma notícia gerada por órgãos de comunicação. Esta é a nossa nociva “cultura whatsappiana”, onde poucos conseguem reter conhecimento sólido e transformador antes de opinar.
Inegável considerar que o mundo virtual e a comunicação instantânea quebraram o isolamento cultural. Muitos autores só conseguiram ser lidos pelo advento dos meios digitais (Instagram, Facebook, blogs, sites, entre outros ambientes virtuais).
Assim, a Internet trouxe uma nova realidade para o mercado das letras e dos negócios culturais. Contudo, noto também – assim como Amorim – que uma parcela significativa dos novos autores da geração digital raramente se dedicam à leitura.
O pior: à leitura daquilo que andam escrevendo. Já dizia o grande poeta e escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), que só publicava para se ver livre da sua obra, pois a cada vez que lia e relia, acabava por ajustar aqui, cortar ali e acrescentar acolá.
Portanto, ao enviar o texto para o editor ele se eximia destes retoques e deixava o material para que pudesse ser lido por todos. Ou seja, a releitura daquilo que acabou de produzir, autocrítica e tudo que envolve este processo de deixar o texto apropriado são tarefas do escritor.
José Saramago (1922-2010) dizia que todos nós somos escritores, porém uns publicam e outros não. Concordo. Cada ser em si carrega uma narrativa e começar a escrever a partir dela é o primeiro passo da longa caminhada na jornada literária.
Guimarães Rosa (1908-1967), quando criança, adorava ouvir as histórias que os mineiros contavam ao chegar na venda do seu pai, que se chamava Florduardo Pinto Rosa (único Florduardo que já ouvi falar). Assim como estes mineiros das décadas de 1910 e 1920 não eram escritores convencionais, mas traziam suas narrativas – conheci muitos escritores que trabalhavam como operários, na construção civil ou no setor de serviços e nem se aventuraram a colocar no papel suas histórias. Mas tinham muita vivência e sempre compartilhavam suas impressões.
No começo da minha vida laboral (trabalho desde os 14 anos e lá se vão quase três décadas de cotidiano profissional), convivi no ambiente de trabalho com profissionais mais velhos que não tinham hábito de escrever e nem ler, mas compartilhavam suas vivências em narrativas próximas de contos e causos.
Me recordo de quando um destes narradores me contou que apreenderam uma jiboia numa caixa e, meses depois, ao abrirem, o réptil ainda estava vivo. “Estava bem fininha, da grossura do dedo mindinho. É por isso que o pessoal diz que a cobra se alimenta do próprio ódio. Ela permaneceu viva, só para se vingar de quem a colocou lá dentro”.
Outro colega narrou uma história e tanto. Relembrou, num momento do café no descanso do expediente, que quando trabalhava na usina de álcool, viram no meio do canavial o fantasma de uma boia-fria que tinha sido assassinada pelo marido.
“Era o turno da noite e cada caminhão carregado de cana que chegava para a moenda, o motorista descia assustado: ‘foi ali na curva do carreador!’. O outro: ‘topei com o fantasma lá perto da capela do esquecido’”. E assim, acreditem, a usina naquela noite parou de operar. Chamaram o encarregado. Ele passou a conversar com os motoristas e decidiu com o carro da firma refazer os trechos.
Pronto. O fantasma foi descoberto: era uma trabalhadora rural que se perdeu da sua turma e, como avançava a hora, começou a pedir carona na beira das vicinais. “A mulher apareceu chorando lá na usina: “meu Deus do céu, faz mais de quatro horas que tô perdida, pedindo ajuda! Ninguém parava, estava ficando tarde!”.