Opinião | O público e os especialistas: quem tem razão?
Em meio a uma enxurrada de informações e fatos novos todos os dias, quem tem razão sobre os rumos que devemos tomar em relação à pandemia daqui para frente? O público em geral ou os especialistas em saúde? Bolsonaro ou Doria? A resposta pode não ser tão óbvia assim.
A preocupação com o novo coronavírus, além de problemas claros com relação a saúde pública, vem devastando a renda e emprego no Brasil, fato provocado por tomadas de decisões drásticas de nossos governantes.
Coincidentemente, ando lendo exatamente sobre este assunto: tomadas de decisões e percepção de risco na mente humana. Durante a leitura de um livro sobre o tema, chamado Rápido e Devagar, do vencedor do Prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman, me deparei com um trecho que me chamou muito a atenção.
Quando Kahneman fala sobre especialistas e público, cita dois respeitados estudiosos que divergem em relação a quem deve ter a palavra final em situações de risco à população.
O primeiro citado é Paul Slovic, presidente da ONG Decision Research, especializada em estudos sobre processos de tomada de decisão e julgamento. Slovic é professor da universidade de Oregon, nos EUA, e um dos maiores pesquisadores sobre percepção de risco, saúde e política no mundo, com mais de 40 anos de experiência na área.
Slovic defende que os especialistas (apesar de ele ser um) não devem ter a última palavra. Defende também que a opinião deles não deve ser aceita sem questionamento, principalmente quando entra em conflito com opiniões e desejos de outros cidadãos.
O professor de psicologia fala isso com base em centenas de estudos e experiências que ele e sua equipe promoveram ao longo dos anos. Slovic afirma que o cidadão comum erra com mais facilidade em suas decisões de risco cotidiano, orientado muito mais pela emoção do que pela razão, influenciado por detalhes que mudam rapidamente sua conclusão e também, segundo Kahneman descreve, pela incapacidade de pensar nas variadas probabilidades.
Os especialistas, de acordo com o professor, cometem esses mesmos erros em uma escala menor, justamente por serem treinados para isso. No entanto, o entendimento e preferência sobre o conceito de risco, muitas vezes opõe frontalmente o seu José e o Dr. Fulano. Quando há conflito de valores fundamentais, quem escutar? Trata-se simplesmente de uma outra perspectiva e não uma opinião inválida do chamado ‘povo popular’.
Para Slovic, os especialistas medem os riscos pelo número de vidas perdidas. São retos e diretos. Já parte do público, conforme relato do livro, traça distinções mais sutis e subjetivas. Por exemplo: toda morte precisa ter essa dimensão? A morte de um idoso de 90 anos deveria nos afetar a esse ponto? Milhões precisam sofrer ou até mesmo passar fome em troca de uma pequena parte (em números estatísticos) da população perecer? Será que algumas outras doenças também nos afetam com proporção parecida e nossa vida continuava caminhando?
Ironicamente, o especialista em risco avalia que justamente por conta desse tipo de questionamento, o público, que em tese não sabe tanto sobre o assunto em questão, acaba tendo uma concepção muito mais complexa dos riscos do que as próprias autoridades de saúde em um espectro mais amplo.
Por isso, para Slovic é essencial que o poder público também ouça a população para tomada de decisões em políticas públicas, que haja uma espécie de balanço, ao contrário do que o governador João Doria vem fazendo em relação a municípios do interior paulista, como Marília por exemplo.
Mas não vamos ficar somente com a opinião de Slovic. Para equilibrar, apresento outro lado.
Prosseguindo com o elogiado livro como referência, Daniel Kahneman aborda a questão de riscos também pela visão do jurista Cass Robert Sunstein, professor da Universidade de Harvard e respeitadíssimo estudioso, inclusive nas áreas da psicologia do julgamento e gestão de riscos.
Para Sunstein, o papel dos especialistas é como se fosse uma parede contra excessos populistas. Os especialistas servem basicamente para que a gente não caia em uma opinião burra. “O Estado regulador não é inimigo do povo. Salvaguardas inteligentes, projetadas por especialistas, salvam vidas”, diz em artigo recente publicado no New York Times.
Ele avalia que o risco na maioria das vezes é objetivo e pode ser medido de forma uniforme, ao contrário do que pensa Paul Slovic. A Covid-19 ceifa vidas e vida é o valor mais fundamental existente para os humanos. Por isso a objetividade da percepção.
O jurista também publicou recentemente, em um artigo de opinião no site da Bloomberg, que seria insensível recorrer a estatísticas nesse momento para tomar esse tipo de decisão (apesar de ele ser a favor do uso delas em outras situações). Especialmente seria imoral uma avaliação econômica do valor da vida, para que governos implantassem essa ou aquela medida.
Para Sunstein, a população em geral não tem a menor ideia de como pode se desencadear ações que coloquem fim ao isolamento neste momento. Até mesmo para os especialistas o cenário é obscuro. Como tomar decisões que põem milhares de vidas em risco? Seguindo essa linha de raciocínio, seria precoce tentar restabelecer uma vida razoavelmente normal quando na verdade tudo o que vivemos é completamente anormal.
Pois bem. O que eu, Gabriel Tedde, acho disso tudo? Primeiro preciso dizer que de certo modo compartilho da opinião de que os especialistas são sim fundamentais contra alguns absurdos populistas, representados neste momento principalmente pelo governo catastrófico do presidente Jair Bolsonaro.
Por outro lado, e talvez com maior inclinação para este momento específico que atravessamos, tendo a concordar com Slovic. Trata-se de uma questão subjetiva. É um debate inclusive filosófico sobre nossa sociedade. Até que ponto vão determinados valores quando se pensa em milhões de pessoas? É errado fazer uma avaliação disso? Quais caminhos a população quer seguir? Com que tipo de ética iremos enfrentar e passar pela pandemia?
Nossos governantes deveriam ser mais equilibrados. Enquanto Bolsonaro pende para o lado da completa ignorância, Doria não considera os apelos dos paulistas que o elegeram, principalmente os de fora da Capital.
Para mim é triste demais ver sonhos despedaçados, famílias passando necessidades, e pensar que a população de modo geral será infeliz por muitos e muitos anos. Tão triste quanto ver pessoas sofrendo e morrendo por conta da doença. Essa é a minha ética.
Estamos sem dúvida diante da maior tragédia de nossa geração. O momento mais turbulento em 75 anos. A pior situação desde a Segunda Guerra Mundial.
Como Kahneman diz no livro, medos disseminados devem ter atenção especial dos nossos políticos. “Racional ou não, medo é uma coisa dolorosa e debilitante, e os formuladores de políticas públicas devem se esforçar para proteger o público do medo, não apenas dos verdadeiros perigos”.
Será que é tão difícil ouvir o povo (ou parte dele), pelo menos um pouco governador? Entender que pessoas irão passar fome? É difícil ouvir os especialistas presidente? Entender que eles podem salvar vidas?
Um assunto não exclui o outro. Os dois caminham juntos. Não é saúde versus economia. Somente a união dos esforços entre setores e a união de opiniões pode nos dar o melhor traçado para vencer a crise. Há de se ter equilíbrio para a reerguida. Parem de agir feito crianças mimadas, esqueçam as próximas eleições, nós estamos sofrendo.