‘O comércio precisa criar experiências diferentes para o cliente sair de casa’, diz Guto
Figura mais longeva, conhecida e em atividade ininterrupta na Associação Comercial e de Inovação de Marília (Acim), o superintendente José Augusto Gomes é, oficialmente, presidente por mérito da principal entidade empresarial da região.
Com a autoridade de 45 anos de experiências vividas na entidade em que entrou como office-boy, Guto, como é conhecido, falou sobre a vida, o comércio e o futuro em entrevista exclusiva ao Marília Notícia.
Em tempos de negócios digitais, ele não titubeou em abordar as dificuldades de adaptação do mercado tradicional frente às tecnologias, e o esforço da entidade, em parceria e eventos, para que o comércio online aconteça em Marília.
“O comércio precisa criar experiências diferentes para o cliente sair de casa”, frisou o superintendente. A discussão sobre a eventual mudança da jornada de trabalho e a expectativa com o futuro governo municipal não ficaram de fora da conversa.
Confira entrevista completa abaixo.
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MN – O senhor está há quanto tempo na Acim?
GUTO – Eu entrei na associação comercial no dia 16 de março de 1979, ou seja, há 45 anos e alguns meses. O ano que vem faz 46 anos. Na época, eu era um legionário e eles encaminhavam os estagiários para as empresas. Eu fui encaminhado para ser office boy e lá acabei ficando a minha vida inteira.
MN – Foi seu primeiro emprego?
GUTO – Meu primeiro e único emprego. Tudo bem que eu tive atividades em outras organizações também, mas sempre como principal a associação comercial.
MN – Como foi sua trajetória na Acim?
GUTO – Depois de começar como office boy eu passei para o atendimento, fui chefe de escritório, gerente de serviços, passei para diretor administrativo e depois superintendente, que faz a gestão da entidade como um todo. Durante essa trajetória, eu me formei em Ciências Contábeis no Univem. Atualmente, faço mestrado em administração profissional em organizações inovadoras na Unimar. Eu ainda ministrei aulas na Fundação Bradesco, no curso técnico em administração, de 1999 até 2005, se eu não me engano. E depois também no Senac, no curso de gestão, a exemplo do curso MBA da Faculdade Católica também. Ou seja, eu passei por um período aí sendo docente, mas sem deixar de estar atuando na associação comercial.
MN – A partir de qual etapa de sua vida escolar o seu passou a conciliar sua vida com a Acim?
GUTO – Desde a sexta série eu já estava na Acim. Faz tempo (risos).
MN – Atualmente não se permite que estudantes trabalhem nesta idade escolar. O que o senhor pensa sobre isso?
GUTO – O Brasil é um país com dimensão continental. Mas, acabam tratando São Paulo como os estados lá do Nordeste, do Norte, onde há exploração do trabalho infantil. Eu comecei a trabalhar com 12 anos. Foi muito importante para minha carreira poder ter entrado tão cedo ao mercado de trabalho. Foi pela Legião Mirim. Mas hoje o menor aprendiz é com 14 anos. Eu acho que dificulta muito para o menor. No Estado de São Paulo existe uma fiscalização maior. Acho que poderia liberar ao adolescente que pudesse trabalhar. Faz parte da formação do caráter da pessoa. Eu sou o segundo de uma linhagem de oito filhos. Meu pai não perdeu tempo (risos). E todos começaram a trabalhar por volta dos 12 anos. E hoje continuam no mercado profissional.
MN – Esse início tão cedo no trabalho, seu e dos irmãos, foi por necessidade?
GUTO – Foi importante para a composição da renda familiar sim. Minha mãe era do lar e meu pai um panificador. Ele pai tinha dois empregos. Chegou a trabalhar até em três padarias para sustentar uma galera. O meu irmão mais velho tem 60 anos. Os que estão abaixo de mim têm de 58 para trás, um por ano.
MN – Até comprar uma televisão (risos)?
GUTO – Até que ele comprou uma televisão, uma Panasonic colorida. Aí criou juízo.
MN – Vamos falar do comércio. Qual sua avaliação atual?
GUTO – Primeiramente, é preciso haver renda no município e na região. E nós temos, porque a nossa economia é diversificada. Há indústrias que geram emprego e isso acaba repercutindo no comércio como um todo. A pecuária é forte e isso acaba fortalecendo bastante.
MN – Os pedágios rodoviários interferem na vinda do consumidor da região pelo comércio de Marília?
GUTO – Sim. Eles dificultaram o acesso do consumidor regional para Marília, que ficou ilhada.
MN – Como as vendas online têm interferido na rotina do comerciante em Marília?
GUTO – O comerciante não concorre mais apenas com o do outro lado da rua, do bairro. Hoje é com o mundo. Por isso, tem que estar se readequando a essa nova ordem mundial de compras. Afinal de contas, hoje é muito mais fácil as pessoas comprarem por telefone, pelo computador/celular e receber no conforto as mercadorias.
MN – O Mercado Livre está instalando uma nova sede em Marília. O que isso interfere no mercado local?
GUTO – É uma grande preocupação. O Mercado Livre está ali naquela região da Examar montando um galpão com mais de 60 mil metros. Eles vão fazer entrega no mesmo dia, dependendo do mesmo período. Se comprou de manhãzinha, antes do almoço, a mercadoria já estará na porta da tua casa. Tudo isso é concorrência para o comércio. E acaba dificultando especialmente para o micro e pequeno comerciante.
MN – O que estes comerciantes podem fazer para sobreviver a esta futura concorrência?
GUTO – O consumo é derivado hoje de uma experiência do consumidor. Na maioria dos casos, quem compra precisa ter um motivo para ir até a loja, se encantar e acabar comprando a mercadoria que talvez ele nem tivesse saído de casa para comprar.
MN – A exemplo da Black Friday, não?
GUTO – Tem muita gente que saiu para comprar e que está atrás de uma promoção, mas nem sabe do quê. A pessoa entra na loja, vê uma coisa com preço legal e compra. Essa experiência da Black Friday para o consumidor em geral acaba movimentando todo mundo. Se você andar pela cidade vai ver que a movimentação está grande, o comércio precisa criar experiências diferentes para o cliente sair de casa, viver algo novo e, consequentemente, comprar, porque a mercadoria está ali. E aí tem toda a habilidade do comerciante de transformar isso em vendas.
MN – Além da necessidade da criatividade o tempo todo para vender, o que mais dificulta a vida do comerciante hoje?
GUTO – O comerciante tem dificuldade com mão de obra qualificada, uma carga tributária muito pesada. Isso acaba encarecendo os produtos. Isso não é uma característica apenas de Marília, mas do país como um todo. Por isso, os comerciantes pensam duas vezes ao investir no negócio, em abrir novas lojas.
MN – Qual sua opinião sobre a recente proposta parlamentar de mudança de jornada de trabalho sem redução de salários?
GUTO – O comerciante teria o mesmo custo com um tempo menor de trabalho de seu funcionário. Isso vai repercutir onde? No preço do produto. Quem vai pagar a conta é o consumidor. E isso acaba transformando que o produto não seja competitivo no mercado. Essa questão é uma das mais desestimulam o comerciante porque acaba dificultando a venda. Já tem concorrência para todo quanto é lado. E agora, para ele operar presencialmente ainda teria que aumentar os custos.
MN – A pandemia intensificou as vendas online. Ocorreu o mesmo no comércio de Marília?
GUTO – Sim, porque o consumidor passou a se interagir melhor com a tecnologia. As reuniões que a gente fazia antes se deslocando de uma cidade para outra, hoje você faz de forma online. Facilitou muito a proximidade da população com tecnologia. E com isso também a facilidade para as compras online que se transforma num grande concorrente para o comércio físico. Alguns comerciantes se prepararam para isso e continuam agindo, efetuando vendas pela internet.
MN – Qual o significado ao comércio, neste contexto de vendas online, da presença física de uma grande empresa de e-commerce como a Tray?
GUTO – A Tray está fazendo um trabalho de capacitação dos comerciantes no sentido de mostrar que ele pode continuar no varejo, mas tem que ter uma empresa online, fazer suas vendas ali, para poder abrir mais um canal de vendas. E é nisso que a associação está trabalhando. Prova disso é que a gente fez o evento Connect e trouxe a Amazon, o Google, o próprio Facebook para mostrar para o comerciante como efetuar vendas online também. É o nosso esforço para que esses comerciantes não percam espaço nessa guerra que não para de acontecer aí entre o online e o físico.
MN – Pode, mas deve, não Guto?
GUTO – Exatamente, exatamente. As grandes lojas de rede como Magazine Luiza, Riachuelo, Renner, Casas Bahia, e assim por diante, todas já estão antenadas no e-commerce. O problema é o micro e o pequeno comerciante. Eles têm dificuldade porque a venda online envolve controle de estoque, capacitação que ele precisa ter e investimento também. A gente está buscando uma forma para que as empresas que operam neste mercado nos auxiliem, a exemplo da Tray e outras. Elas possibilitem que esses comerciantes entrem no mercado online também, mas de uma maneira que possam entender como funciona.
MN – A inclusão da [palavra] ‘Inovação’ no nome da Acim vai neste sentido, não?
GUTO – Quando se fala em inovação nos referimos a um momento atual de surgimento de empresas de base tecnológica. São as startups, geralmente ligadas a jovens, na grande maioria jovens. O nosso pensamento é em criar um ambiente de inovação dentro da associação que envolve três grandes núcleos. Ou seja, uma aceleradora, um instituto de pesquisas e uma incubadora digital, no sentido de que o jovem possa ter condições de converter suas ideias à montagem de uma empresa com o respaldo e a tutoria que a associação pode dar. A empresa pode crescer dentro da própria entidade.
MN – Um ambiente parecido ao que forjou o nascimento da Tray, que acabamos de citar…
GUTO – O William (Marques, fundador da Tray) começou a carreira dele estudando no Univem e de lá foi para incubadora de empresas da universidade. A Tray é a maior empresa de e-commerce do Brasil hoje. A gente entende que as startups precisam de apoio desde o momento da ideação da criação, do pensamento e é nisso que a gente está trabalhando. Por isso que a gente está trazendo também o método Farani para dentro do nosso ambiente de inovação, que é a parceria com a Camila Farani, sócia do nosso ambiente de inovação, justamente para que a gente dê condições para que esses jovens desenvolvam a sua startup de maneira saudável. Resumindo, é essa a ideia da diretoria da associação, quando se fala em inovação.
MN – O Connect Acim chegou à 7ª edição neste ano e consolidou-se como maior evento de empreendedorismo da região. Quais resultados o evento já trouxe ao comércio de Marília?
GUTO – O objetivo é trazer conhecimento para os nossos empreendedores, trazer grandes profissionais. Nós já tivemos a possibilidade de trazer no decorrer desses anos o Oscar Schmidt, o Leandro Karnal, o astronauta Marcos Pontes. Para assistir a um palestrante desses você precisa ir a São Paulo, gastar a maior grana. Trouxemos essa oportunidade para cá para abrir a mente dos empreendedores, criar networking para que as pessoas possam fazer negócios. A gente acabou virando inspiração no Estado de São Paulo inteirinho. A gente deu apoio a um evento em Avaré. De alguma forma, contribuímos no desenvolvimento paulista e do próprio país.
MN – Qual o impacto da política econômica atual no comércio de Marília?
GUTO – Quando você fala em economia, especialmente carga tributária, o governo tem uma voracidade muito grande. Por quê? Porque ele não equilibra as contas e precisa cobrar mais impostos. Quando você tira o dinheiro do bolso do consumidor para colocar no governo afeta o giro na economia. O comerciante não está vendendo, nem contratando, e comprando menos da indústria. É um ciclo grande, que passa da matéria-prima até o consumidor final. A gente pensa a economia como um todo. O governo tem a missão de incentivar a economia e não tirar dinheiro. O dólar passou dos R$ 6. Isso impacta no preço dos combustíveis, da matéria-prima e vai explodir no bolso do consumidor, que vai diminuir o poder de compra. Isso gera um processo de recessão que provoca perda de emprego e de renda. Percebe como são as consequências das coisas?
MN – No meio de todo este processo está o comércio…
GUTO – É o primeiro que sente. As pessoas sentem. O comércio dá uma esvaziada. Quando a economia tem uma injeção de recurso, e sempre parte do governo, o comércio é o primeiro que se recupera, e rápido. O nosso comércio é um forte, atende a região, mas está muito sensibilizado. O Poder Público, seja municipal, estadual ou federal, precisa apoiar mais a livre iniciativa, o empreendedorismo e facilitar para o comerciante.
MN – Que impacto poderá haver no comércio de Marília com a isenção da cobrança de Imposto de Renda ao consumidor que ganha até R$ 5 mil?
GUTO – Isso vai funcionar como a primeira parcela do terceiro salário que já foi pago pelas empresas. E vai ser distribuído em várias áreas. Primeiro, o consumidor vai optar em pagar dívidas. Isso é líquido e certo. Mas sim, repercute no comércio. Mas eu não acredito que cause um impacto extremamente positivo. Vai alavancar, mas não é algo que vá fazer com que o comércio passe a girar muito mais. A gente precisa parar de ter dependência de recursos do governo. Para o comércio ser saudável, a renda tem que ser proveniente de produção como uma grande família que junta todos os salários. Se você consegue reter isso e tentar gastar o mínimo possível a família vai enriquecer. E assim no comércio também. Ele tem que gerar renda e as pessoas têm que ter renda. Vai chegar muito pouco dinheiro ao pequeno. As grandes redes á devoram tudo.
MN – Como a Acim se preparou para atrair o consumidor neste fim de ano?
GUTO – A Associação Comercial está fazendo um trabalho no sentido de criar algo diferente para a cidade de Marília. Nós decoramos a sede, criamos a casa do Papai Noel. Vamos ter o trenzinho. Criamos o ônibus do Noel em parceria com a empresa Sorriso, que vai estar nos bairros para as famílias visitarem, nas áreas comerciais dos bairros. Infelizmente, a gente não tem uma decoração de Natal condizente com o que esperava. Temos incentivado os comerciantes a decorarem suas vitrines, prepararem suas equipes, iluminarem suas lojas, pedindo para o Poder Público municipal cuidar da zeladoria da cidade, mantendo as calçadas limpas, as ruas sem buracos, a verificação de lâmpadas nos postes para que não tenha nenhuma queimada. Já pedimos para a Polícia Militar ampliar o efetivo e a segurança no nosso comércio neste período. Estamos cuidando para que o consumidor tenha um momento de experiência de passeio tranquila.
MN – Apesar dos contextos econômicos, qual é a expectativa da Acim para as vendas de fim de ano?
GUTO – A gente tem uma expectativa de 5% a 6% de aumento nas vendas. É isso que a gente espera para esse período do fim do ano.
MN – Mesmo com apoio da polícia, qual orientação da Acim para aprimoramento da segurança nas lojas?
GUTO – A tecnologia, aquela das vendas online, de uma certa forma faz concorrência para o comércio físico. Por outro lado, também traz segurança. Hoje todas as empresas têm câmeras instaladas, a exemplo das ruas da nossa cidade, que têm câmeras de alto potencial e são monitoradas pela Polícia Militar. Então isso faz com que realmente haja uma segurança maior, porque qualquer infração, qualquer questão de roubo, furto, qualquer crime cometido nas ruas do comércio, rapidamente o autor é identificado. Por isso, os consumidores e comerciantes, especialmente na nossa cidade, têm se sentido mais seguros.
MN – A redução da movimentação do dinheiro em espécie no comércio também implica em maior segurança ao comércio?
GUTO – Antigamente movia-se muito mais dinheiro. Hoje não. O Pix se transformou num dos principais meios de pagamento, além do cartão de crédito, e tudo isso não envolve dinheiro em papel. Isso gera mais segurança para o comerciante, em geral. Quanto aos assaltos a lojas, realmente a Polícia Militar ela tem feito um trabalho de monitoramento e o criminoso pensa para agir porque tem a consciência de que vai ser filmado e ser preso com a brevidade
MN – O Pix é o principal meio de pagamento no comércio de Marília?
GUTO – Hoje já não se vê mais movimentação de cheque. Ainda tem, mas é muito pouco. Dinheiro também, mas eu acho que ele seria o terceiro. Primeiro é cartão de crédito, depois débito, Pix, e depois é dinheiro. E então os outros meios de pagamentos que existem.
MN – Carlos Bittencourt assumiu a presidência da Acim. O quanto ele poderá contribuir de sua experiência como empresário para a cidade?
GUTO – O Carlos já atua na rede de associações comerciais há mais de 20 anos. Ele está presidente agora. Conhece bem o funcionamento não só da associação de Marília, mas de vários locais. Ele tem sido um líder muito responsável, o tipo de liderança que ele exerce é a participativa. Por isso, o envolvimento de toda a diretoria da associação comercial. O Carlos não toma nenhuma decisão sozinho. Ele envolve a diretoria, a equipe de trabalho. A gente trabalha a todo instante, procurando incentivar a nossa equipe e escutando os associados para entender quais são as dificuldades, para que junto com a diretoria tomemos as melhores decisões.
MN – Há algum propósito de projeção da presidência atual para uma representação maior da categoria?
GUTO – É um trabalho no sentido de cada vez mais fazer a nossa associação se destaque regional e estadual. Carlos está enveredando agora para se candidatar a ser o vice-presidente da nossa federação. Já está praticamente certo de que ele será o vice-presidente da federação das associações comerciais no próximo ano. Claro que tem todo um processo eletivo, mas já parece estar tudo bem encaminhado. Com certeza ele vai contribuir não só para continuar a desenvolver a associação de Marília, mas de todas as outras 18 que acompanham a nossa região.
MN – O que a associação espera da próxima gestão municipal?
GUTO – A associação comercial sempre foi muito parceira do prefeito da cidade de Marília. Independentemente de quem estiver na Prefeitura, ela precisa muito do apoio nas ações que são realizadas em prol da estrutura do comércio da cidade como um todo, assim como a Prefeitura também sempre cobra muito da associação comercial. O (prefeito eleito) Vinicius (Camarinha) esteve na associação comercial e recebeu um documento com todos as expectativas dos comerciantes. Ele se prontificou a analisar todas. São questões sobre zeladoria, de melhoria do comércio, de revitalização do comércio como um todo. Queremos trabalhar junto com o prefeito pensando sempre no desenvolvimento econômico de Marília.