No ABC do santeiro e os 100 anos de Dias Gomes
Posso estar enganado, mas certa vez vi o Dias Gomes (1922-1999). O escritor e um dos pilares da teledramaturgia brasileira, Alfredo de Freitas Dias Gomes, que em 19 de outubro completaria 100 anos – ele é do mesmo ano da Semana de Arte Moderna, estaria saindo de um teatro numa pequena cidade do Interior de São Paulo. Estava ocorrendo um festival de teatro por aqueles dias e reparei que aquele homem concentrava as mesmas características físicas do autor de ‘O bem-amado’, ‘O santo inquérito’, ‘O pagador de promessas’ e ‘Roque Santeiro’.
Ele notou que eu reparava muito nele, mas naquela época – ainda um estudante do Ensino Médio às voltas com o teatro e a dramaturgia – tinha muita vergonha de conversar com estranhos. Vergonha que, com o tempo e a profissão de repórter, tive que perder de qualquer jeito.
Ainda me lembro que ele saiu da peça e caminhou até um carro novo e a placa era do Rio de Janeiro. Aliás, fora um dos primeiros automóveis que com placas da Cidade Maravilhosa. Confesso que cresci na dúvida, pois seis ou sete anos mais tarde, Dias Gomes viria a falecer vítima de acidente de trânsito em São Paulo, nos Jardins. Chamara um táxi conduzido por um motorista cooperado, pois sabia que aquele trabalhador iria ter uma renda maior com o que ele pagaria com a corrida.
Num acidente, acabou arremessado para fora do veículo e morreu na queda. Sempre conto esse possível encontro com um dos ídolos que me fizeram escrever e ter uma profissão ligada à escrita.
Não sei se era realmente Dias Gomes, mas aquele senhor se assemelhava muito com ele. Em suas obras, o dramaturgo relatou na ficção um Brasil intolerante, com sérios problemas de moradia, muito desemprego, muita fome e com políticos autoritários que exploravam a fé do povo, além de contextualizar em peças e na TV uma gente que confiava em falsos mitos.
Escrita em 1959, a peça ‘O pagador de promessas’ traz a saga do ingênuo e devoto Zé do Burro, que no desespero para salvar a vida de Nicolau (seu jumento de estimação) promete carregar uma cruz tão pesada quanto a do Cristo até a igreja de Santa Bárbara.
A promessa, feita num terreiro de candomblé para Iansã, que no sincretismo religioso é considerada a santa católica Santa Bárbara, é rechaçada pelo padre que não o deixa carregar a cruz até o altar e, assim, cumprir o prometido para a santa.
A trama, adaptada ao cinema pelo diretor Anselmo Duarte, conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes (França) no ano de 1962. Na Literatura de Cordel, ABCs (Abecês) são poemas onde cada estrofe começa com uma letra do alfabeto, de forma sequencial. Neste centenário de Dias Gomes, o escritor ao longo de seus 76 anos de vida, a cada período, escreveu uma parte bem significativa da alma brasileira.
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Ramon Barbosa Franco, escritor e jornalista, é autor de ‘Canavial, os vivos e os mortos’, ‘A próxima Colombina’, ‘Contos do Japim’, ‘Vargas, um legado político’ e contos