‘Ninguém espera que um negro com terno e gravata seja um juiz ou advogado’
Consciência Negra é um termo que ganhou notoriedade no Brasil na década de 1970, em razão da luta de movimentos sociais que atuavam pela igualdade racial, como o Movimento Negro Unido. De lá para cá, muitos desafios foram vencidos.
A luta inclusive ganhou uma data, 20 de novembro é lembrado o Dia da Consciência Negra. O mês é todo voltado à conscientização do tema.
Neste contexto, a advogada criminalista mariliense Bruna Carla Simeão de Oliveira, de 32 anos, casada e mãe de três filhos, considera que vários direitos adquiridos ao longo do tempo ainda necessitam “sair do papel”. “É uma luta diária e escolhi a carreira criminal por vivenciar a realidade na periferia”, conta a profissional, que também é candidata ao conselho estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Durante sua trajetória acadêmica, Bruna teve ajuda e incentivo da família. Estudou os ensinos fundamental e médio na Escola Estadual Benito Martinelli, no Santa Antonieta, e passou três anos pelo curso de Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Marília – através da conquista da bolsa de estudos do Programa Universidade para Todos (ProUni).
Também ex-aluna do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e Escola Técnica (Etec) do Centro Paula Souza, Bruna sempre sonhou em fazer Direito. Mesmo sem condições financeiras, persistiu e, em 2013, deixou Ciências Sociais na Unesp e ingressou no tão sonhado curso no Univem, em Marília.
Bruna se formou em 2017 e já começou a advogar em 2018, obtendo grandes destaques na carreira até hoje. Premiada em 2019 pela Associação Nacional da Advocacia Negra (Anam) – onde está como coordenadora -, a advogada, que atualmente sugere a leitura do livro “Fala, Crioulo”, de Haroldo Costa, é a entrevistada da semana do Marília Notícia.
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MN – A sua motivação pelo direito nasceu por uma questão de gênero, raça ou afinidade com a profissão?
BRUNA – Eu cresci em uma família de mãe solteira. Meu pai foi ausente durante minha infância, adolescência, juventude. Sou a mais velha de cinco irmãos e vi, na situação em que vivíamos, a necessidade de mudança pela busca da sobrevivência, mas sobretudo do direito. Foi aí que percebi que deveria seguir esta profissão, pelo bem da minha família, principalmente da minha mãe, que tanto trabalhou para nos sustentar, e pelo meu pai também. Eu sou apaixonada pela advocacia.
MN – Quantos negros estudaram Direito contigo na faculdade?
BRUNA – Eram poucos negros na faculdade – cerca de 10% dos 200 formandos – e achei o ambiente bem etilizado. A Unesp era um ambiente mais acolhedor do que a faculdade particular. Uma das minhas referências no Direito é o Nadir de Campos, também negro, com quem conversava bastante.
MN – Quantos professores eram negros?
BRUNA – Na Unesp, tinha mais professores negros. No Univem, menos. Não acredito que seja culpa da instituição, mas atribuo o fato ao contexto geral do país.
MN – Ainda como universitária, que direitos percebeu negados às mulheres e aos negros?
BRUNA – Uma pessoa se descobre negra muito cedo e em alguns locais você não é bem visto, por conta do cabelo, vestimentas e outros detalhes. O negro muitas vezes pode passar por brincadeiras e situações desagradáveis, mas não sabe que teve um direito lesado. Na verdade, nem tudo que a gente sofre é um problema social, mas pode ser um crime. É necessário ter este conhecimento, não acho que temos direitos negados. Os direitos, na realidade, precisam sair do papel, partir para a prática.
MN – Negros são maioria entre mortos pela PM e mais de 60% no sistema prisional, segundo dados oficiais. Em que estas estatísticas que impulsionaram a atuar na área criminal?
BRUNA – A carreira criminal não era minha preferência de atuação na advocacia, mas se tornou com o tempo. Morei na periferia e tenho muitos amigos da comunidade que foram presos e precisaram de defesa jurídica. Por conta de minha atuação, estou sempre no presídio e noto a realidade na prática. Para os crimes de “colarinho branco”, temos diversos instrumentos jurídicos para defesa. O “direito criminal negociado” não alcança os menos favorecidos. De fato, acho que temos uma política criminal de encarcerar infelizmente pessoas negras e pobres. O que mais encarcera no Brasil hoje é crime de furto, roubo e pequenos delitos.
MN – Negra, mulher, advogada criminalista. Já sofreu algum preconceito na sua atuação profissional?
BRUNA – Os negros geralmente são enquadrados no perfil de criminoso e muitas vezes são abordados pela polícia por estarem transitando na rua de madrugada ou em um veículo de luxo. Já fui confundida com testemunha numa audiência por ser negra. Ninguém espera que um negro com terno e gravata seja um juiz ou advogado.
MN – Mulheres são maioria entre advogados em Marília, segundo a OAB. O quanto essa diferença faz ou deveria fazer em prol do gênero na advocacia?
BRUNA – Esses dados contribuem muito para a causa negra em Marília. O perfil de liderança da mulher é diferente do homem, porque a mulher é mais acolhedora, gera e cuida dos filhos e ainda tem uma atuação profissional. Na prática, são mais atividades durante o dia do que o homem. As mulheres advogadas acolhem mais a dor que é a advocacia e entendem melhor os direitos em prol do gênero.
MN – Por outro lado, os negros ainda não são maioria entre os advogados…
BRUNA – Precisamos mudar este cenário e levará tempo. Acredito que levaremos mais uns 30 anos para equiparar esta realidade no Brasil. Primeiro, temos que projetar a qualificação profissional e que os negros ingressem no ensino superior. Por exemplo, Marília não tem um curso de Direito dentro de uma instituição pública e enfrentamos a barreira das mensalidades. A cada 200 formados no Direito, cinco ou 10 são negros na cidade.
MN – Hoje temos uma mulher no comando da OAB Estadual (Patricia Vanzolini). O que acha?
BRUNA – Infelizmente não foi 100% do que esperávamos. Faltou nela este olhar sensível em prol do gênero.
MN – A sua candidatura ao conselho estadual da OAB visa dar visibilidade a esta diferença?
BRUNA – Sim, e nossa intenção é fazer um movimento para que haja mais pessoas negras indicadas para o quadro de desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, além do corpo de assessores e funcionários. Queremos estar mais presente na OAB, cobrando avanços mesmo. Temos mais pautas além do racismo e precisamos abordar outros temas relevantes. Lutamos por mais diversidade na OAB e na estrutura judiciária.
MN – Como coordenadora da Associação Nacional da Advocacia Negra quais avanços tem alcançado na advocacia em Marília?
BRUNA – Foram muitos avanços. Nunca achei que teria voz dentro da carreira e da própria OAB. Eu mesmo tinha preconceito, mas hoje sou bem aceita dentro do meio. Como coordenadora da Associação Nacional, ainda estamos caminhando em Marília e firmamos uma parceria com o Instituto Aura, para fomentar a advocacia negra na cidade. É um trabalho de apoio ao empreendedorismo negro e que traz para perto da gente mais profissionais dentro da causa negra.
MN – Qual seu conselho aos estudantes negros?
BRUNA – Meu conselho é para que se dediquem e façam o curso com seriedade e responsabilidade. Necessitamos de uma formação de qualidade para nos tornarmos profissionais capacitados. São grandes os desafios, porém, a educação tem o poder de mudar não só nossa realidade, mas a realidade de toda nossa família e da sociedade. Estudem para concursos públicos, façam o exame da OAB e plantem bastante dedicação, para colher bons frutos no futuro. Deus é justo.
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POR RODRIGO VIUDES E GUSTAVO CÉSAR