Mulheres negras assumem cabelo crespo e resgatam autoestima
Usar o cabelo de forma natural pode parecer algo simples e corriqueiro, no entanto, para boa parte das mulheres negras, que passaram um período da vida alisando, puxando ou escondendo os cachos, é uma conquista.
Assumir o cabelo afro é mais do que uma questão estética, é o resgate de uma identidade que ficava oculta por comentários e imposição da sociedade. É a retomada da autoestima e empoderamento.
A modelo Vitória dos Santos Faria, de 21 anos, nunca vai esquecer o preconceito e racismo sofrido devido ao seu cabelo ‘black power’.
Em entrevista ao Marília Notícia, Vitória contou que durante a adolescência teve muita dificuldade em aceitar o cabelo.
“Nunca alisei, mas na escola, por vergonha, ia toda hora ao banheiro para molhar e deixar ele bem baixo”, relembra.
Vitória só aceitou as madeixas quando tinha 17 anos ao ver certa representatividade nos holofotes. O incentivo foram as lindas mulheres negras que via na TV e na passarela.
No entanto, ela sofreu muito preconceito ao deixar o cabelo armar, ficando ‘black power’.
“Quando finalmente decidi usar ele armado, sofri muitos ataques. Alguns colegas da minha sala fizeram um grupo no WhatsApp para me humilhar. Uma colega que não estava a favor viu e me mandou todos os áudios. Teve até ameaça física. Um menino disse que iria cortar meu cabelo com uma tesoura de cortar árvore. Falavam que meu cabelo era duro, que parecia uma esponja de lavar roupa”, contou.
A modelo relata que a princípio ficou com medo, principalmente por conta da ameaça de lhe cortarem o cabelo.
“Primeiro medo porque foi uma ameaça, mas me senti muito mal por não ter feito nada e ouvir muitas palavras fortes em relação a mim vindo de meninas, todas brancas, fiquei muito magoada. Mas sabia do meu valor e pensei que iria dar meu melhor para mostrar que posso sim ter minha beleza”, disse a linda Vitória.
Apesar dos ataques, nunca passou pela cabeça da modelo desistir de assumir o cabelo. “Nunca senti vontade de desistir, pelo contrário, queria mostrar que poderia sim ser linda com meu ‘black”.
Um ano depois de todo o preconceito sofrido, Vitória entrou na disputa de um concurso de beleza de Marília e foi eleita Miss Beleza Negra.
A modelo aproveitou para deixar uma mensagem de incentivo a todas as meninas que assim como ela sofrem preconceito e racismo.
“Sempre se sinta única, se ame e use as críticas para mostrar seu poder. Você sempre pode o que quiser”.
Hoje, Vitória faz parte do “Negra Sou”, um coletivo de mulheres negras que visa o empreendedorismo e empoderamento negro.
Para ela o dia da Consciência Negra, comemorado nesta sexta-feira (20), é um momento de reflexão, significa a inclusão do negro na sociedade e da importância da cultura negra.
Quando alisar o cabelo se torna o ‘certo’
A secretaria Maria Emília Silva Fonseca, de 28 anos, também faz parte do “Negra Sou” e contou que durante cinco anos alisou o cabelo porque era isso o que a sociedade “aceitava”.
“Passei cinco anos da minha vida fazendo progressiva porque ter o cabelo liso era o certo, o bem visto, o que a sociedade achava bonito e aceitava”, relatou.
Certo dia, ao ir no cabeleireiro para retocar a progressiva e cortar, observou os cachinhos surgindo e decidiu que era hora de parar com o alisamento químico.
“Na hora que lavei e cortei vi aquele cabelo enorme, cheio de volume e cachinhos, me apaixonei. Algo mudou em mim. Desisti de alisar e resolvi assumir de vez. Foi a melhor escolha da vida”, exaltou.
Durante a chamada transição capilar, ela viu a oportunidade de uma nova profissão e começou a fazer vídeos para o Youtube.
“Eu comecei a encontrar uma Maria diferente, que nunca tinha visto. O jeito de arrumar o cabelo mudou, então comecei a fazer vídeos de como finalizava o cabelo, como fazia penteados para passar na transição e meio que gostei. Vi a oportunidade e peguei, apesar de hoje não estar ativa”, explicou.
Ela contou que a transição foi difícil no início, mas no final o resultado vale a pena. “No começo foi difícil porque o cabelo não fica do jeito que a gente vê na TV. Isso é culpa da ditadura dos cachos que fala que para meu cabelo natural ser bonito ele tem que ser cacheado, quando na verdade não é assim.”
Maria também já sofreu ataques de racismo. “A primeira vez foi na escola. Os meninos da minha sala viviam me xingando e passando pó de giz branco em mim”, desabafou.
“A mulher negra está numa luta constante para ser aceita e para quebrar aquele estereótipo de que tem que ter corpão, que o cabelo dela tem que ser perfeito, cada cacho feito a dedo e que só vai ganhar a vida se for a próxima ‘globeleza’. Somos mais que isso. Temos que sempre estar provando que somos capazes”, falou.
“Quanto mais representatividade nos cargos públicos, na mídia, melhor pra despertar as mulheres incríveis que existem em cada pretinha no mundo”, diz Maria.
Para ela o Dia da Consciência Negra “mostra que temos que continuar lutando para que nunca caía no esquecimento”.
“Precisamos lembrar de todos que um dia lutaram pra eu que tivesse a chance de trabalhar, minha prima estudar e meus sobrinhos terem um futuro melhor sem racismo e preconceito”, finalizou.