Monitoramento obrigatório ameaça nossa privacidade
O lema do correio norte-americano é bem conhecido: “nem a chuva, nem o calor, nem a escuridão da noite impedirão o carteiro de completar eficazmente sua missão”. No tema lembro-me de um livro da adolescência: “Miguel Strogoff, o correio do Czar”, de Júlio Verne, onde essa heroica missão era a bela viagem a que o autor nos levava.
Além de garantir a entrega expedida da correspondência, seu conteúdo considera-se inviolável: o sigilo da correspondência seria sagrado, como o eram as confissões e os diários pessoais. As coisas têm mudado rapidamente com a informática. Diários pessoais se transformaram em “blogs”, cartas migraram para uma versão eletrônica e, logo depois, fundiram-se com outras formas de comunicação. Especialmente, deixaram de ser algo um-para-um e tornaram-se um-para-muitos, através das redes sociais. Novos modelos de negócio surgem fundados, por exemplo, no impacto que cada um pode causar pelo que afirma, verdadeiro ou não, desde que seja suficientemente bombástico.
Para este novo ambiente em que, sem dúvida, também multiplicam-se ameaças, a Comissão Europeia estuda formas de solicitar aos provedores de serviços de internet que, “transitoriamente”, todas as comunicações entre seus usuários, tanto no correio eletrônico, como nas conversas pela rede, sejam monitoradas para a “prevenção de ameaças e crimes”. Para a “nossa própria segurança”, as comunicações pessoais seriam passíveis de constante e obrigatório monitoramento pelas plataformas e provedores. E essa ideia ganha força e apoio por meio dos representantes da maioria dos países no Parlamento Europeu.
Sou do tempo em que se considerava o correio inviolável. Não é um objetivo recente: há referências sobre técnicas de criptografia já na antiga Grécia. Neste mesmo tema, há dias, outra curiosa notícia dava conta de que cartas com mais de 300 anos e que não puderam ser entregues a seus destinatários, foram encontradas, intactas, guardadas em Haia. O artigo aproveitou para ilustrar diversas maneiras que os remetentes usavam para tornar visível uma violação da correspondência. Podiam, por exemplo, dobrar o papel de uma forma tão complexa que uma tentativa de desdobrá-lo seria fatalmente notada no destino. Ou usar lacres aplicados à carta, de forma a deixar claro que se ela fossa aberta, isso seria facilmente notado. Aliás, o próprio envelope fechado com cola, mais recente, é uma forma de garantir alguma proteção ao conteúdo.
O que causa perplexidade a alguns (e me incluo entre eles…) é que, ao mesmo tempo em que bradamos pela defesa de nossa privacidade e nos incomodamos quando vemos sistemas que automaticamente detectam nossos interesses e desejos, nos enviando em instantes alguma propaganda sobre o que apenas acabávamos de pensar, pouco alvoroço causa uma notícia como esta, que vai exatamente no sentido inverso. Ao invés de diminuir o monitoramento a que estamos sujeitos, estamos a vê-lo tornar-se obrigatório. Claro que sempre recheado de “boas intenções”, para “coibir ilegalidades” e garantir “nossa segurança”. Ora, “se você nada deve, por que se preocupa em manter sua correspondência sigilosa”? Rompidas barreiras éticas e morais, só nos restará o uso da criptografia. E ela também pode ser alvo da sanha dos “bem intencionados”. Iremos defendê-la!
Talvez haja uma explicação irônica do que se passa… Atendendo a uma leitura atravessada de Lucas 12:3: “o que vocês disseram nas trevas será ouvido à luz do dia, e o que vocês sussurraram aos ouvidos dentro de casa, será proclamado dos telhados”, membros da Comissão Europeia resolveram ser o momento para assumirem, já aqui na Terra, o papel que o evangelista atribui às esferas transcendentes.