‘Minha vida, nos últimos dois anos, foi muito melhor que nos outros 37’
Para muitas pessoas, o Dia Nacional de Luta Contra o Câncer – lembrado nacionalmente em 27 de novembro – pode até ser um importante lembrete à sociedade, mas é insuficiente para expressar o tamanho da guerra. São pessoas que batalham ou já batalharam por milhares de dias contra a doença.
É o caso da enfermeira e professora Sônia Leopize Takano, que em 2015, aos 52 anos, descobriu uma neoplasia maligna de mama, às vésperas do Natal. Ela teve diagnóstico precoce e todos os fatores possíveis favoráveis à superação da doença.
“Eu queria fazer reposição hormonal e o meu marido, que é médico (Luiz Takano), não estava muito favorável, até porque conhece bem todas as implicações. Conversamos e ficou combinado que eu faria, mas ele cobrou que eu atualizasse meus exames preventivos”, conta Sônia.
Há apenas dez meses ela havia feito o check-up, que incluía a momografia, mas, como combinado com o marido, repetiu a varredura. O exame de imagem não constatou nada, mas durante o procedimento, uma descoberta chamou a atenção.
“O médico [já conhecido] citou um fibroadenoma que eu já tenho há mais de 20 anos, mas falou de memória. É uma confirmação que o profissional faz, quando já sabe de uma condição prévia do paciente. Só que ele citou o lado contrário. Aquilo ascendeu o alerta”, relata Sônia.
Se a alteração anatômica não era o tumor benigno que acompanhou a professora por décadas, a nova descoberta precisava de investigação. O médico indicou a ressonância magnética, que acabou por localizar o minúsculo nódulo. Biópsia constou o câncer, inclusive considerado invasivo.
“Eu faço o autoexame, mas levaria pelo menos uns dois anos para ficar perceptível. Com a reposição hormonal e o câncer já instalado, eu estaria seriamente em perigo. Foi Deus que interviu, que usou meu marido para falar comigo. Foram os bons profissionais”, atribui Sônia.
Felizmente não havia evidências de linfonodos comprometidos, o que poderia apontar início de processo metastático, quando o câncer atinge outros órgãos e dificulta o controle. Sônia, às vésperas de final de ano, não queria preocupar os familiares, com a sensação de que estragaria a festa.
Dividiu o segredo com o marido, até que iniciasse o tratamento. Com todos os exames em mãos, iniciou uma corrida pela vida. O oncologista responsável pelo tratamento recomendou a quadrantectomia, na qual a remoção seria apenas parcial.
“Fiz muitas pesquisas. Não em qualquer fonte de internet, mas com referências científicas confiáveis. Eu sabia o que estava acontecendo e o que poderia acontecer. Não queria dar nenhuma chance à recidiva (volta do tumor). Conversei com o oncologista. Ele explicou que não era a conduta indicada inicialmente, mas ele me respeitou, me ouviu”, conta a enfermeira.
Em menos de um mês Sônia já estava sendo submetida a uma cirurgia de mastectomia bilateral – remoção das duas mamas -, com posterior implante de próteses.
Para ela foram fundamentais a valorização do diálogo médico-paciente na decisão do tratamento, o apoio da família e dos amigos, além do fato de ter acesso aos recursos, inclusive com um médico para apoio emocional e técnico em casa. Sônia sabe que a maioria das pessoas acometidas pela doença não tem esse suporte.
“Eu tive medo, noites sem dormir, a ideia da mutilação, de tudo que você pode passar, traz momentos de tristeza profunda. Meu maior temor era pensar que poderia deixar a Mariana (filha com síndrome de down) assim, tão cedo. Na minha cabeça, ninguém cuidaria dela como eu”, relata a enfermeira.
Sônia, como a maioria dos pacientes com câncer, sabia que algo poderia dar errado e terminar muito mal, mas esses pensamentos ruins não predominaram. “Na maior parte do tempo, o otimismo prevalecia”, define.
Para ela, a luta contra a doença exige humanização, atenção multidisciplinar e presença de pessoas que façam o paciente se sentir amado. A guerra contra o câncer pede profissionais de saúde que considerem, resguardando ética e protocolos, o eventual conhecimento da pessoa atendida.
PALIATIVO É FUNDAMENTAL
Driblar as reações, “enganar o cérebro” e tirar o foco da doença foram algumas das escolhas da advogada Marília Emiko Touma Matos, de 39 anos. Em 2019 ela descobriu um câncer colorretal, com processo metastático.
“Já era situação emergencial, em uma crise de dor súbita. Havia, inclusive, perfurações no intestino. Estes sintomas severos demoraram a aparecer, mas o que ocorreu comigo, ocorre com muita gente; subestimamos os sinais, os sintomas”, acredita a advogada.
Desde então, Marília teve que se submeter a uma série de cirurgias e ao tratamento quimioterápico, com todos os efeitos colaterais ao organismo. Evidente que o abalo emocional foi grande, mas ela conta que o processo doloroso – ainda em andamento – a fez resignificar a doença, com uma mudança radical na maneira de viver.
“Minha vida, nos últimos dois anos, foi muito melhor que nos outros 37. A ideia de finitude [da existência] nos faz questionar os propósitos da vida. Algumas coisas que me preocupavam, já não me preocupam mais. A minha relação com o tempo mudou. Aumentei minha dedicação a tarefas mais relevantes à minha vida e às pessoas ao redor”, ensina.
A reprogramação pessoal, para enfrentar a doença, também fez a advogada mudar o foco de sua atuação profissional. As atividades eram nas ações cíveis. Agora, Marília foca em processos de Direito na área da Saúde, que inclui um vasto campo, como causídica e ativista.
Na pandemia liderou uma ação junto aos advogados de Marília e comunidade para arrecadar donativos aos hospitais. A campanha surgiu depois que ela viu de perto as inúmeras necessidades e observou o quanto a estrutura social é importante para os tratamentos de saúde.
A advogada também aprofundou estudos sobre o chamado cuidado paliativo, que para ela precisa ser melhor compreendido pela sociedade. “O conceito de que o paliativo é o fim de vida é muito equivocado. Isso não significa que a pessoa desistiu, mas que também está comprometida com a qualidade de vida em outras áreas, de uma forma mais ampla que o tratamento tradicional”, explica.
A ideia de que o câncer pode ser curado apenas com tratamento médico, medicamentoso e os períodos indicados de descanso para o corpo é superada.
Além de reconhecer a importância da multdisciplinariedade, da saúde mental, o apoio emocional e social, profissionais de saúde, governos e sociedade precisam trabalhar para que toda essa gama de necessidades sejam supridas.
Para a advogada, é preciso que existam núcleos que envolvam profissionais de diferentes áreas, de forma institucional – com respaldo e suporte dos hospitais e serviços de saúde – para oferecer o cuidado paliativo de maneira adequada.
“O cuidado paliativo é direcionado a aliviar o sofrimento e dar qualidade de vida. Vale para outros tipos de doenças. Inclusive o conceito de que o paliativo é o fim da vida, precisa mudar. Não é disso que se trata, mas de oferecer uma vida melhor”, defende a advogada.
Marília, em sua busca pela vida melhor, conta que sempre foi aconselhada a fazer atividades físicas, o que nunca foi efetivamente possível – nos últimos dois anos – devido ao curto intervalo entre as cirurgias.
Recentemente ela aproveitou a trégua nas etapas mais radicais no tratamento para praticar um esporte. Para surpresa de muita gente, que associa a pessoa com câncer com fragilidade, necessariamente, escolheu o Crossfit – modalidade a qual o marido é adepto.
“Os exercícios são adaptados, mas podem ser feitos com muita segurança. O tempo é muito precioso, e todas as pessoas devem aproveitar com responsabilidade. Tenho uma nova condição de vida, mas isso não me define. O que eu faço com a minha vida é que vai me definir”, ensina a advogada, que luta com inteligência e valentia contra o câncer.