Mercado de startups caminha para ter melhor ano da história
O ano de 2020 certamente se tornará inesquecível para muita gente – mas, para as startups brasileiras, as lembranças serão positivas. Mesmo com a pandemia e a crise econômica, o ecossistema brasileiro de inovação caminha para ter seu melhor ano da história nesta temporada. Os sinais até aqui são bons: segundo dados da empresa Distrito, que mapeia o setor, aconteceram 100 aquisições de startups entre janeiro e setembro, superando os anos de 2018 e 2019.
O número de aportes realizados em novatas também já tem recorde histórico de 322 cheques, superando o melhor ano do setor com folga – em 2017, foram 263 investimentos. E o volume total e aportes está em US$ 2,2 bilhões, completando 82% do que foi injetado no mercado em todo o ano de 2019.
“Esperamos que o último trimestre faça superar o ano de 2019, mas mesmo com crise a gente enxerga um mercado forte e muito aquecido”, diz Gustavo Araújo, presidente executivo da Distrito. “Só não estamos maiores em volume porque os investidores ficaram cautelosos no início da pandemia, mas a recuperação é em V, setembro foi um mês muito forte.” Só no mês passado, as startups brasileiras receberam US$ 843 milhões em investimentos.
“É muito positivo o balanço de 2020 até aqui. É quase como se o ecossistema estivesse à margem da crise que se vive no Brasil”, diz Gilberto Sarfati, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). “A digitalização já ganharia destaque de qualquer jeito à médio prazo, mas a crise acelerou o processo.”
Expectativa para 2020 não era tão boa mesmo antes da pandemia começar
O bom desempenho surpreende, inclusive, as expectativas do setor antes da pandemia. No início do ano, o mercado de startups estava cauteloso – supercheques feitos pelo grupo japonês SoftBank em empresas como WeWork e Uber levantaram o risco de uma possível bolha no setor.
Aqui no Brasil, os japoneses foram o fator principal para o sucesso de 2019, despejando dinheiro no mercado ao investir em empresas como QuintoAndar, Gympass e Loggi – ao todo, eles participaram de rodadas que, somadas, movimentaram US$ 1,3 bilhão. “O SoftBank distorceu um pouco o mercado. Eu achava que 2020 ia ser um ótimo ano, mas difícil de bater por causa disso”, avalia Renato Valente, sócio do fundo Iporanga Ventures e veterano do setor.
Em março, quando o coronavírus começou a atacar o Brasil, os investimentos foram reduzidos bruscamente – houve queda de 85% no total de investimentos naquele mês, contra março de 2019, segundo a Distrito. Muitos fundos preferiram focar em ajudar as startups de seu portfólio a sobreviver à crise do que fazer novas apostas. O mercado passou a acelerar de novo em junho, e teve em setembro seu melhor mês, com US$ 843 milhões investidos. “Quando veio a pandemia, todo mundo brecou, mas agora o mercado está acelerado e acho difícil que não supere 2019”, complementa Valente.
Aceleração da digitalização e liquidez no mercado de capitais mudaram humor
Três fatores, na visão dos especialistas, ajudaram a mudar a cara de 2020. O primeiro é a onda de liquidez pela qual passa hoje o mercado de capitais – o cenário de mínima histórica na taxa Selic proporciona um bom ambiente de negócios. O otimismo é o que levou startups como Méliuz e Enjoei.com a começarem um processo de abertura de capital na bolsa brasileira – um caminho pouco usual para as companhias daqui.
O segundo é a aceleração da digitalização. Setores como o comércio eletrônico, que já vinham num movimento de crescimento, explodiram por conta do período de isolamento social: segundo relatório do fundo de investimentos Atlantico, a penetração do e-commerce no varejo saltou 5 pontos porcentuais entre março e maio de 2020 – o mesmo crescimento, em termos absolutos, registrado entre 2009 e 2019.
O segmento de e-commerce, inclusive, gerou um unicórnio – apelido dado a startups avaliadas em pelo menos US$ 1 bilhão – durante a quarentena. É a Vtex, dona de um software que ajuda mais de 3 mil marcas a abrirem e manterem suas lojas online (e físicas): em setembro, a empresa levantou um aporte de US$ 225 milhões e foi avaliada em US$ 1,7 bilhão. “No nosso segmento, a pandemia encurtou em pelo menos um ano o movimento do mercado. A gente sabia que poderia virar unicórnio, mas se não fosse o coronavírus, talvez isso acontecesse só em 2021 ou 2022”, diz Rafael Forte, presidente executivo da Vtex no Brasil.
Além disso, o setor também impulsionou empresas que lhe prestam serviços – caso da Kestraa, que organiza o comércio exterior, e da Acesso Digital, que faz assinaturas digitais e valida pagamentos pela internet com ajuda de biometria facial. As duas levantaram aportes – de R$ 15 milhões e R$ 580 milhões, respectivamente – nos últimos três meses.
O período de isolamento social, seja pelo fechamento de lojas ou pela necessidade de trabalho remoto, também levou muitas empresas tradicionais a perceberem que precisavam se digitalizar. Esse movimento é o que explica porque diversas companhias saíram fazendo aquisições – é o caso da aquisição da Triider, um Uber das reformas, por uma joint venture entre Gerdau, Tigre e Votorantim. Outras aproveitaram o momento para pisar no acelerador e intensificar sua transformação – caso, por exemplo, de XP e Magazine Luiza, que encheram o carrinho de compras este ano
Crise não deve afetar setor, dizem especialistas
Enquanto na economia real as dúvidas sobre o futuro – vacina, eleições aqui e nos EUA e o impacto da crise – deixam tudo complicado de prever, a opinião geral dos especialistas é de que 2021 deve ser um bom ano para as startups. A sensação é de que o cenário cinza da economia não deve afetar tanto as companhias de tecnologia, até porque o ecossistema brasileiro viu seu desenvolvimento acontecer ao longo dos últimos anos justamente num panorama de recessão.
“A economia real vai sofrer, então todo mundo vai correr atrás de melhores margens de lucro reduzindo custo. É uma oportunidade para empresas que fazem mais com menos e a tecnologia é uma arma para isso”, diz Renato Valente, da Iporanga Ventures.
Na visão de Gilberto Sarfati, professor da FGV, o ecossistema hoje tem um crescimento sustentável. “É um processo que está sendo vivido há duas décadas e, de forma mais intensa, nos últimos cinco anos”. Gustavo Araujo, presidente executivo da empresa de inovação Distrito, também vê o momento de forma otimista. “Em 2021, a movimentação entre grandes empresas e startups crescerá ainda mais. Isso é importante porque injeta mais capital no mercado e gera a criação de novas empresas. Será um ano muito forte para o setor.”
O que pode mudar a vida das startups no futuro próximo, dizem os analistas, são questões regulatórias. De um lado, há oportunidades com a criação do Marco Legal das Startups, projeto de lei enviado na semana passada pelo Palácio do Planalto ao Congresso.
O texto promete desburocratizar condições para a criação de empresas inovadoras, bem como sua contratação por agentes públicos. A negociação corrente, no momento, é de que ele seja votado na Câmara até o final do ano. Para entidades do setor, a proposta é bem vinda, mas precisa ser refinada para incluir temas trabalhistas e de tributação, que ficaram de fora inicialmente.
Repensar as regras do jogo é importante, segundo os especialistas: um dos fatores que ajudaram as startups nos últimos tempos foram, por exemplo, mudanças e inovações no setor financeiro, puxadas por postura pró concorrência do Banco Central. Há ainda muito potencial a partir de inovações como open banking – que facilitará a troca de dados entre instituições (leia mais sobre o tema com a Quanto, startup envolvida no setor) – e o sistema de pagamentos Pix.
Para Araújo, da Distrito, a falta de mudanças pode travar o mercado. “A telemedicina, que permite consultas médicas online, foi aprovada agora em caráter emergencial, mas pode ser revogada após a pandemia. A regulação é necessária, mas também é um empecilho para o desenvolvimento”, diz.