Mensagens mostram pressão da Americanas para bancos mudarem informações
Os executivos da Lojas Americanas buscaram cooptar funcionários dos bancos Itaú e Santander para adulterar documentos enviados a auditorias externas que analisavam as contas da varejista, apontam mensagens coletadas pela Polícia Federal.
O material é um dos elementos da atuação da diretoria da empresa na fraude contábil que resultou no rombo de R$ 25,2 bilhões utilizados pela PF para deflagrar a operação Disclosure na quinta-feira (27).
Mensagens da diretoria mostram a pressão feita para que funcionários das duas instituições deixassem de fora o termo “risco sacado” das cartas enviadas para auditorias externas, conhecidas no jargão técnico como cartas de circularização.
O risco sacado é uma operação entre varejistas e bancos, que emprestam dinheiro para que as empresas paguem os fornecedores. Para a varejista, o benefício é uma melhor condição de pagamento, como prazo maior. Em troca, paga juros, de onde vem o lucro das instituições financeiras. A fornecedora recebe o valor previsto no contrato com a varejista.
A Americanas utilizava o recurso para ter fluxo de caixa condizente com o que afirmava ter em seus balanços fraudados. O problema é que eles não incluíam a dívida de risco sacado no balanço, aumentando o tamanho da fraude.
O Itaú negou qualquer participação direta ou indireta na fraude da Americanas. “O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa”, disse, em nota, a instituição financeira.
“Os informes enviados às auditorias sempre alertavam para a existência das operações de risco sacado. Os diretores da Americanas envolvidos na operação interagiram com representantes do Itaú no sentido de retirar os alertas. O banco nunca concordou com esse pedido e inclusive interrompeu, por mais de 6 meses, as operações de risco sacado”, prossegue a nota.
O Santander repudiou “qualquer insinuação contrária à lisura de sua relação com a Americanas” e afirmou que o banco também é vítima da fraude. “A instituição sempre informou integralmente os saldos das operações da Americanas no Sistema Central de Risco do Banco Central, que constitui uma entre as possíveis fontes de auditagem, além das cartas de circularização”, acrescentou.
As cartas enviadas pelo Itaú e pelo Santander para as auditorias eram discutidas antes com a Americanas, que tentava encontrar formas de tirar o termo “risco sacado” do documento. Como a operação não constava no balanço oficial da empresa, a sua menção poderia levar as auditorias a descobrirem a fraude.
Em mensagens discutindo o balanço de 2016, o ex-diretor financeiro da Americanas, Fabio Abrate, diz que tinha chegada a uma solução com o Santander.
Dias depois, Abrate diz que “o assunto azedou” e afirma que o Itaú não vai se comunicar direto com o auditor e que enviará a carta no formato pedido pela companhia para um funcionário da Americanas. No corpo do e-mail viriam as solicitações de mudanças. “O corpo do e-mail não nos ajuda”, resume.
“Agora é a hora! Vamos com tudo. Itaú não é Santander. Assunto azedou muito. Podemos ter efeitos colaterais”, conclui Abrate. A partir daí, o ex-diretor relata como está fazendo para convencer o Itaú a enviar a carta nos moldes desejados pela Americanas.
Em um outro e-mail obtido pela PF, Abrate relata que funcionários do Itaú tinham pedido sugestões de texto para alteração das cartas de circularização que seriam enviadas às auditorias.
Sobre o episódio, o MPF (Ministério Público Federal) diz que os bancos, contrariando o desejado pelos executivos, “informaram à auditoria a existências das dívidas decorrentes das operações de risco sacado”.
“A partir de então, foi realizada uma operação para obter outros documentos das instituições bancárias, de forma a iludir os auditores”, aponta o texto.
Na quinta-feira, (27), a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão contra ex-diretores e pessoas ligadas à Americanas. Além disso, a Justiça Federal determinou o sequestro de bens e valores destes ex-diretores que somam mais de R$ 500 milhões. Não houve nenhuma ação envolvendo os bancos nessa operação.
Os mandatos de prisão são direcionados para o ex-CEO Miguel Gutierrez, preso nesta sexta-feira (28) em Madri, e a ex-diretora Anna Saicali, que deixou o país no último dia 15 e é procurada.
A defesa de Miguel Gutierrez disse que não teve acesso aos autos das medidas cautelares e por isso não comentaria o assunto. “Miguel reitera que jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude e que vem colaborando com as autoridades, prestando os esclarecimentos devidos nos foros próprios”, acrescentou.
ENTENDA COMO OS DADOS CONTÁBEIS DAS AMERICANAS ERAM FRAUDADOS
Registro de cartas de VPCs (Verba de Propaganda Cooperada) fictícias
As Verbas de Propaganda Cooperada (VPC) são uma ferramenta legítima utilizada no setor de varejo. Envolve a concessão de créditos por parte dos fornecedores aos varejistas por motivos comerciais variados. Por exemplo, as cartas de VPC são pagas para a empresa incluir produtos em materiais promocionais de lojas ou websites.
As VPCs são como um crédito para o comerciante e, como explica a PF em seu relatório, podem ser utilizadas para abater dívidas com o fornecedor em questão, culminando em uma melhora nos resultados financeiros da empresa.
Uma das delações do caso Americanas resume como se dava a fraude envolvendo VPC. “Criavam-se lançamentos contábeis fraudulentos, referentes a VPC inexistentes. O registro contábil era efetuado sem qualquer documentação de suporte. Documentos falsos para amparar esses lançamentos contábeis seriam criados, quando e se necessários, apenas para atender eventual demanda de comprovantes pela auditoria externa”, afirmou em depoimento.
Na prática, relatou a delatora Flavia Carneiro, o resultado contábil era apresentado com o total de cartas de VPC “A” (reais), mas, para melhorar os números, eram criadas de forma fraudulenta novas cartas contabilizadas como “arrecadação complementar”, segundo a PF, um eufemismo para a fraude, fazendo com que resultados atingissem os números esperados pelo mercado.
O delator Marcelo Nunes relatou aos investigadores que chegou a fraudar emails das empresas fornecedoras para criar os documentos necessários para validar as cartas de VPC. Segundo relatório sobre as investigações, quem fazia as alterações nas cartas de VPC era o suporte comercial, um funcionário do time de Nunes. “Essa prática de alteração das cartas de VPC consistia em pegar uma carta de VPC verdadeira e, com base nessa verdadeira, eram modificadas as datas e os valores, mantendo os dados cadastrais.”
Fraude mediante risco sacado
Também comum no varejo, a operação de Risco Sacado é uma estratégia financeira que envolve a participação de instituições bancárias na liquidação das obrigações da varejista para com seus fornecedores.
“Este arranjo permite que o prazo para desembolso de recursos financeiros pela varejista seja postergado, otimizando assim sua gestão de caixa. À medida que se aproxima a data de vencimento de uma determinada obrigação financeira documentada por nota fiscal, a varejista estabelece negociações com um banco para que este efetue o pagamento diretamente ao fornecedor”, afirma a PF.
Na prática, o banco paga a dívida com os fornecedores e depois a empresa, ao final do contrato, paga essa dívida com o banco.
No caso das Americanas, segundo o depoimento de delatores e provas coletadas, os valores ou parte dos valores de operações de Risco Sacado não eram informados ao comitê financeiro e assim não constavam no balanço.
Elas também não constavam nas cartas de circularização que os bancos com os quais a empresa tinha dívida enviavam para a auditoria.
“As cartas de circularização são documentos por meio do qual a equipe de auditoria faz contato com terceiros, que sejam fontes de informações externas à entidade, para que confirmem a ocorrência de fatos contábeis ou seus respectivos saldos registrados”, diz a PF.
Emails e mensagens coletadas pelos investigadores mostram que a direção do banco chegou a cooptar funcionários dos bancos para que eles alterassem as cartas de circularização, evitando que a fraude fosse descoberta pelas auditorias.
Outras fraudes (fraudes que melhoravam o resultado e fraudes sem impacto contábil)
A PF cita outros dois tipos de soluções financeiras que não foram “discriminadas nas demonstrações financeiras e não informadas nas cartas de circularização dos bancos para as auditorias externas.”
Cartão de crédito – Parecida com o risco sacado, a operação previa um acordo com bancos que pagavam aos fornecedores os valores integrais das notas fiscais, e, em aproximadamente 30 dias, a varejista pagava à instituição financeira o valor despendido, acrescido do custo financeiro das operações.
“Essa operação cartão de crédito gerava essa dívida de curto prazo com o banco que não era divulgada e que, na prática, funcionava quase igual ao Risco Sacado. A diferença é que a operação cartão de crédito era de curtíssimo prazo (aproximadamente 30 dias) e a operação Risco Sacado tinha prazo maior”, disse em depoimento o delator Marcelo Nunes.
Antecipação de VPC – Segundo o delator Marcelo Nunes, esse modelo de operação surgiu em 2022 e, basicamente, consistia na antecipação de VPC, “também considerando o VPC que sequer existia”.
“Na prática ia uma relação de cartas para o banco, e o banco antecipava essa relação de créditos para a empresa, com a contrapartida de que a empresa fizesse uma aplicação em torno de 70% a 100% daquele valor antecipado”, disse o delator.
POR LUCAS MARCHESINI E FABIO SERAPIÃO