Me lembrei de Carolina…
Carolina era o nome da minha avó paterna, mãe do meu pai e de outros 11 tios. Conheci nove, porque dois Deus levou ainda na infância: uma menina e um menino.
Casada com o meu avô Mário, que fora servidor público no Departamento de Estradas de Rodagem (DER) do Estado de São Paulo, teve uma biografia marcada pela fé, força e pela virtuosidade. Sofreu, mas sorriu. Lutou e nunca se cansou. Como herança, além do caráter cultivado em cada um dos dez corações que colocou no mundo, ela conseguiu dar uma casa para cada um dos filhos. Era muito esforçada. Mas a Carolina que me lembrei não era a dona Carolina, filha de imigrantes italianos que desembarcaram no Brasil em 1888 e rumaram para o Oeste paulista, ajudando a construir a história de cidades como Óleo, Avaré, Timburi, Ipaussu e Itaí.
Aliás, nunca estive em Itaí e a cidade vive no meu imaginário por ser a terra natal de meu pai. Certa vez a Folha de S. Paulo queria me enviar para Itaí, até pagariam o táxi, para que pudesse acompanhar a visita do então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin – hoje, vice-presidente da República.
Não dava para ir, mas indiquei o jornalista Rodrigo Viudes para fazer a reportagem. O Viudes foi e esteve presencialmente na cidade que era referência na produção de feijão.
Como estava dizendo, a Carolina que me veio outro dia na mente é a Maria de Jesus, a escritora Carolina Maria de Jesus.
Autora do best-seller “Quarto de Despejo”, foi uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos, respeitada por grandes nomes da literatura nacional: de Jorge Amado a Clarice Lispector, de Guimarães Rosa a Lygia Fagundes Telles.
Carolina, a escritora e não a minha avó, nasceu em 1914 e faleceu em 1977. A minha avó nasceu em 1915.
No começo dos anos de 1960, após ser descoberta pelo jornalista Audálio Dantas numa reportagem que realizou na comunidade do Canindé, na periferia paulistana, publicou “Quarto de despejo, o diário de uma favelada”. O livro, profundo, triste e verdadeiro é lido até hoje e foi traduzido para vários idiomas.
uas décadas atrás, conheci na Unesp de Marília o cineasta Jefferson De. Ele acabara de lançar o curta-metragem inspirado na obra homônima de Carolina. Perguntei para ele sobre o processo de produção do curta e preparei uma matéria especial para o jornal que então trabalhava como repórter.
Recordo, também, que quando minha vó Carolina partiu, em 2008, aos 92 anos de idade, a família solicitou que eu escrevesse a notícia da perda. Comecei descrevendo um feito que até hoje nossa família tem muito orgulho em compartilhar: lavando roupas em um córrego de Ipaussu, a vó Carolina conseguiu economizar recursos até comprar, à vista e em dinheiro vivo – nota por nota – uma segunda casa para a família.
Estive neste imóvel, alguns anos atrás, e pude conferir com os meus próprios olhos o feito da nossa matriarca, aquele baita protagonismo feminino numa época em que as mulheres nunca tinham vez. Dela aprendi e carrego comigo a seguinte sabedoria: “o pouco com Deus é muito”.
Também me ensinou que, ao menos uma vez por dia, todos os anjos do céu dizem amém: “Portanto, filho, jamais diga coisas feias ou deseje o mal para alguém, porque pode ser que exatamente naquele instante, os anjos estão dizendo amém e aquele seu desejo, infelizmente, irá se realizar!”
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Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’ (La Musetta Editoriais), ‘A próxima Colombina’ (Carlini & Caniato), ‘Contos do japim’ (Carlini & Caniato), ‘Vargas, um legado político’ (Carlini & Caniato), ‘Laurinda Frade, receitas da vida’ (Poiesis Editora) e das HQs ‘Radius’ (LM Comics), ‘Os canônicos’ (LM Comics) e ‘Onde nasce a Luz’ (Unimar – Universidade de Marília), ramonimprensa@gmail.com.