Marília acolhe refugiados e ajuda a resgatar dignidade
Janeiro de 2019. Após trabalhar em um garimpo e passar semanas fugindo de saqueadores, Nohyluzmar tem 28 anos, uma filha, alguns trocados na carteira e muita esperança de escapar da miséria. Ela cruza a fronteira entre o Brasil e a Venezuela com alívio, e junto com outras famílias.
Após três dias em um abrigo de refugiados, montado com o apoio do governo brasileiro, seguiram para Manaus em busca da ajuda de venezuelanos conhecidos, que fizeram o mesmo caminho.
Para trás ficaram familiares, amigos e um país conflagrado, à época com conflitos entre grupos partidários nas ruas e “dois presidentes” – período com forte influência do autoproclamado Juan Guaidó, líder da oposição.
Mas agora Nohyluzmar tem 30 anos e mora em Marília. A filha, que tinha oito anos na época e há quatro esperava substituto ao dente de leite, já está com a dentição completa. “O dente dela não nascia porque não tinha cálcio suficiente no corpo. A alimentação era precária” conta a mãe.
A imigrante que adotou a Capital do Alimento – onde se produz muita guloseima – e trabalha hoje como auxiliar de cozinha. A próxima meta dela é estudar português para dominar o idioma de forma mais eficaz, fazer cursos e se desenvolver profissionalmente.
MARÍLIA ACOLHE
De acordo com dados da Secretaria de Direitos Humanos de Marília, que criou o Núcleo de Apoio Humanitário na cidade, desde agosto – início dos trabalhos –, foram 150 atendimentos. A maioria é apoio para regularização de documentação migratória.
A maioria dos atendidos são venezuelanos, mas ainda há demanda de haitianos e crescente procura de estrangeiros de países árabes. Eles fogem de crises econômicas e políticas, intolerância religiosa e étnica.
O Núcleo, que funciona para assessorar imigrantes e refugiados que chegam ao município, tem o apoio da Defensoria Pública, universidades e Polícia Federal, em ação articulada entre Saúde, Assistência Social e a comunidade, principalmente, através de igrejas e associações de voluntários.
PASSAGEM DE OURO
Antes de chegar a Pacaraima, no Norte de Roraima por via terrestre, Nohyluzmar trabalhou durante 21 dias em uma mineração de ouro perto da cidade onde morava.
“Eu não pensava em vir para o Brasil. Queria ir para a Colômbia, mas uma amiga da minha mãe comentou sobre um filho dela em Manaus, que estava muito bem. Não aguentava mais a privação, a dificuldade para comprar comida, para vestir, para criar minha filha”, lembra.
Religiosa, ela acredita que a conversa com a mulher foi um sinal de Deus, que definiu o destino da viagem. Mas faltava o dinheiro para aventura. “Eu pedi uma resposta. E Ele sempre me responde, sempre dá a direção. Apareceu uma pessoa conhecida em casa e falou de uma vaga na mina de ouro. Eu já tinha trabalhado um ano sem achar nada. Mas senti que era a minha chance”, conta.
Foram 27 dias na mineração e Nohyluzmar encontrou ouro suficiente para bancar a viagem. O plano era viajar sozinha, arrumar um emprego e depois voltar para buscar a família.
“Nessa época já estava tendo muita delinquência por lá e eu sabia do perigo. Fui dormir na casa da minha mãe, para que não roubassem o resultado do meu trabalho”, narra a venezuelana.
À noite, casa dela foi invadida. Os bandidos perseguiam as pessoas que voltavam da mineração. Na casa de sua mãe, Nohyluzmar e a filha também não estavam seguras. “Eu resolvi mudar todos os planos. Não ia deixar ninguém para trás. Viajamos eu, minha filha e meu marido”, relata.
A FRONTEIRA
Na chegada a Rondônia, três dias de acolhimento no acampamento organizado pela missão internacional liderada pelo Brasil. Em seguida, era hora de encarar o gigante continental de idioma estranho – a ouvidos venezuelanos. Foram 18 horas de ônibus até Manaus, passando por Boa Vista.
“Chegando lá [casa do filho da amiga da mãe] não tinha como ficar além de alguns dias. Era a casa deles, o espaço deles, não comportava. Eles tinham alguns problemas pessoais, começou a não dar certo. A gente tinha que sair rápido dali”, relembra a imigrante.
Ela e o marido tiveram dias de desespero. Na busca por contatos com familiares, Nohyluzmar descobriu que uma das suas irmãs que saiu mais cedo de casa havia conseguido chegar ao interior de São Paulo. Ela teve ajuda de uma igreja.
Após esforço de convencimento de líderes religiosos, a imigrante conseguiu o acolhimento de mais uma família, que ganhou as passagens aéreas e um lugar para ficar na cidade.
BRASIL CENTRAL
“Quando chegamos em Marília, na casa já tinha duas famílias. Nós dormimos no chão, mas eu dormi muito feliz. Recebemos muita ajuda. Tivemos doação de alimentos, meu marido conseguiu um trabalho temporário, tivemos ajuda com aluguel por três meses. Ganhamos móveis, geladeira. Recebemos amor, primordialmente”, conta.
Com o suporte do Núcleo de Apoio Humanitário, ela e a família conseguem se manter regularizados como imigrantes. A filha estuda e todos têm acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e proteção social.
“Fiquei um ano sem conseguir trabalho, mas graças a Deus agora estou trabalhando. Eu amo o Brasil, que me acolheu, que nos deu uma chance. Tenho gratidão pelas pessoas que nos ajudaram e ainda ajudam. Estamos ensinando a nossa filha a amar o Brasil, que é a nossa nova casa”, afirma.
DOCE LAR
A confeiteira Carmen Barreto, de 36 anos, chegou ao Brasil em março de 2018. Ela passou oito meses vivendo de pequenos trabalhos. Em Boa Vista/RR, ganhava R$ 5 por dia colocando pratos nas mesas de um restaurante. Depois foi vender escovas de dentes e meias nas ruas.
“Cheguei com uma amiga. Eu não conhecia ninguém, mas ela tinha um tio que deu um cantinho para a gente dormir. Mas não tínhamos o que comer. Passávamos o dia na rua, procurando o que comer. Lá tinha muito venezuelano, mas não havia trabalho porque a cidade é muito pequena. Não tem indústrias”, relata.
Logo as amigas decidiram ir para Manaus/AM, mas sem dinheiro, foram para um posto de combustíveis pedir carona. “Quando conseguimos uma pessoa que aceitou nos levar, tivemos que esperar 12 dias no posto, onde o caminhão estava aguardando uma carga. Tivemos que contar com a solidariedade de desconhecidos para nos alimentar”, conta.
Em Manaus, Carmem trabalhou como cuidadora de uma criança com problemas de saúde. Mas continuou conversando com o generoso caminheiro, que a conduziu de Boa Vista. Começou a namorar com o estradeiro.
“Ele me ajudou a trazer a minha mãe e meu irmão da Venezuela. Ele alugou uma casa em Manaus. Moramos lá por um ano”, conta a confeiteira, que passou a ganhar a vida fabricando doces e salgados caseiros, que ela mesma e os familiares vendiam nas ruas.
O companheiro, que já conhece o Brasil em função do ofício, detectou que a nova família teria mais oportunidades no interior paulista. “Mudamos para cá e começamos a trazer os venezuelanos da família. Já são mais de 30 pessoas morando aqui. Estamos muito agradecidos com Deus, ao Brasil, a Marília e sua gente, pelo carinho com que nos fomos recebidos”, festeja Carmen.
A melhor notícia para a imigrante que se sente em casa – em uma cidade farta na produção de insumos para confeitaria – é que logo haverá uma grande festa, onde o portunhol será o idioma oficial.
“Vou me casar no ano que vem com o melhor homem do mundo, um grande ser humano, um homem maravilhoso”, anuncia Carmen, com alegria.
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