Livro de médico que sobreviveu ao Holocausto chega ao Brasil
É como sua mãe costumava dizer: Auschwitz esteve sempre à mesa com a família. Assim, não houve uma primeira vez que Melcher de Wind ouviu falar no livro de seu pai ou nas atrocidades sofridas por ele no campo de concentração nazista na Polônia, onde milhares de judeus morreram e de onde ele saiu para sempre ferido, mas vivo.
Melcher só soube da importância do livrinho guardado no armário quando a família decidiu emprestar o caderno original e o volume que ele publicou por uma pequena editora um ano depois de sua volta à Holanda, em 1946, para uma exposição em Madri dois anos atrás. Uma editora o abordou perguntando como ninguém conhecia aquele livro e destacando seu ineditismo: era o único escrito dentro de Auschwitz.
Um parêntese. Houve outros relatos escritos em tempo real dentro do campo. Muitos se perderam, mas os papeizinhos preenchidos e escondidos pelo prisioneiro Zalmen Gradowski, por exemplo, foram encontrados depois da guerra e deram origem ao livro From the Heart of Hell – Manuscripts of a Sonderkommando Prisoner, Found in Auschwitz. Gradowski, ao contrário de sua família que morreu já na chegada, na câmara de gás, foi escolhido para integrar o grupo que ajudava a recolher os cadáveres justamente das câmaras de gás e a levá-los aos crematórios e morreu provavelmente em 1944.
Eddy de Wind (1916-1987) escreveu sua história – não em primeira pessoa, porque seria impossível, mas por meio da saga do dr. Hans – dentro de Auschwitz, sim, sob os efeitos do que tinha vivido em quase dois anos. Era janeiro de 1945 e, com a aproximação do Exército Vermelho, os nazistas começavam a debandar e tentavam apagar seus rastros. Eddy não se juntou à Marcha da Morte. Em vez disso, se escondeu com alguns prisioneiros políticos, comunistas espanhóis, de quem se aproximara por terem vivido no mesmo bloco – Eddy foi médico e enfermeiro lá.
Quando a SS já estava longe o suficiente, ele começou a vagar pelo campo e encontrou muitos doentes, que ele tentou, sem remédio e em vão, ajudar. O cenário era desolador e a ideia de que sua mulher Friedel, com quem se casou no campo de Westerbork, estaria morta, desesperadora. Sem poder fazer nada por aquelas pessoas, voltou a vagar, procurando uma razão para continuar vivo. Viu uma torre alta no meio do caminho e foi impelido a subir, e a pular. Foi por muito pouco. Olhando o horizonte, ele se lembrou de uma senhora dizendo que ele tinha que sobreviver para contar o que tinha se passado ali, para provar que era tudo verdade. E foi neste momento que sua nova história começou.
Eddy desceu e foi direto para um depósito da SS. Encontrou cadernos velhos – eles usavam muitos cadernos, anotavam tudo – e lápis e começou a escrever. Cerca de dois dias depois os russos chegaram, ele se tornou membro do Exército Vermelho e começou a cuidar dos feridos. Trabalhava como médico de dia e escrevia seu livro à noite. Isso durou cerca de oito semanas.
O médico ficou três meses em Auschwitz depois da libertação, em 27 de janeiro, do campo. Nos cinco meses seguintes, seguiu com os russos pelo leste europeu até que decidiu começar a voltar para a Holanda achando que não encontraria mais ninguém. Num desses acasos do destino, porém, ao pisar em Amsterdã e ser abordado por um membro da Cruz Vermelha, soube que Friedel estava viva.
Um ano depois, Última Parada Auschwitz era publicado por uma pequena editora comunista e não teve repercussão porque ninguém queria ouvir e relembrar as histórias. A obra teve outra edição nos anos 1980, também sem sucesso. E então está tendo uma nova chance, mais de 30 anos depois da morte do médico judeu, que, aos 26, se voluntariou para trabalhar no campo de Westerbork achando que isso pouparia sua mãe, o que não aconteceu, que sobreviveu não se sabe como e que se especializou em psiquiatria e se tornou um psicanalista especializado em trauma de guerra – um trauma do qual ele nunca se curou.
Pois entre janeiro e dezembro do ano passado, os direitos de Última Parada Auschwitz: Meu Diário de Sobrevivência foram vendidos para 25 línguas diferentes, com previsão de lançamento em dezenas de países. O título chega às livrarias brasileiras pela Planeta no dia 28.
“Isso é inacreditável porque o livro sempre esteve ali. Esse reconhecimento é para o meu pai e nos deixa muito orgulhosos. Este livro é muito mais do que uma história sobre o terror de Auschwitz: ele ajuda as pessoas a entender o que o terror e a intolerância podem provocar e mostra do que as pessoas são capazes. Mas ele também ajuda a entender que mesmo nessas circunstâncias há sempre esperança e solidariedade – e que é isso o que nos mantém vivos e seguindo em frente”, diz Melcher em entrevista por telefone ao jornal O Estado de S. Paulo
O historiador, que organiza grandes exposições na Holanda (de Rembrandt à história da prostituição), diz que este livro que salvou a vida do pai está ajudando também ele e seus irmãos – todos filhos da segunda mulher de Eddy (o casamento entre os dois sobreviventes acabou pouco depois do reencontro pelo peso da experiência compartilhada). “Meu pai foi uma pessoa psicologicamente doente e foi muito difícil para nós, mas ele também foi uma pessoa muito doce e amável. Essa é uma história triste para a família e ver que ela está indo para o mundo todo e levando conforto para outras pessoas nos ajuda também.”
A sombra de Auschwitz nunca se dissipou para Eddy de Wind, que morreu aos 71 em decorrência de enfarte. As últimas horas no hospital, lamenta o filho, foram muito tristes: ele estava de volta ao campo de concentração.
“Coisas terríveis estão acontecendo no mundo hoje. As pessoas não vão mudar. E a única coisa que podemos fazer por nós mesmos é estar atento, ler e compreender como se manter humano em tempos de horror e desespero. O livro ajuda nisso. É uma história terrível, mas nos ajuda a entender”, finaliza.
ÚLTIMA PARADA: AUSCHWITZ
Autor: Eddy de Wind
Tradução: Mariângela Guimarães
Editora: Planeta (240 págs.; R$ 44,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.