Juiz analisa decisões sobre quarentena em entrevista ao MN
O juiz da Vara da Fazenda de Marília, Walmir Idalêncio dos Santos Cruz, deu uma entrevista exclusiva por telefone ao Marília Notícia em que abordou importantes temas, como as decisões judiciais que vêm sendo tomadas sobre a quarentena no Estado.
Há cinco anos no cargo, ele tem sido responsável por importantes decisões sobre Marília – desde a recente sentença que obrigou o prefeito Daniel Alonso (PSDB) a seguir as ordens do Estado relacionadas à pandemia, até diversas condenações de políticos – inclusive do atual chefe do Executivo municipal.
Durante a entrevista o magistrado também falou sobre os principais temas que envolvem os processos em curso na vara sob seu comando e alguns problemas que permeiam essas ações, além de ter contado – a pedido do MN – um pouco sobre seu currículo.
De perfil reservado, Walmir inicialmente havia concordado em enviar uma foto para o site, com o objetivo de ilustrar a entrevista – como é praxe no jornalismo. No entanto, horas mais tarde disse ter meditado melhor sobre o assunto e pediu licença para não enviar o retrato.
“Um de meus maiores prazeres é não ser reconhecido por onde ando e nos lugares que frequento em Marília. Não gosto, de verdade, de exposição pública, embora o meu trabalho, em razão dos temas abordados, acabe sendo de interesse público”, comentou o juiz.
“Prefiro passar por mais um na multidão, como de fato sou”, completou. Natural de São Paulo, Walmir é formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).
Antes de se tornar juiz, há cerca de 15 anos, ele atuou como professor de inglês, escrevente técnico judiciário e tradutor público. E disse que só decidiu fazer o curso após ter aula de Direito Constitucional na graduação de Administração na FGV – curso que acabou abandonando.
Até ser promovido para Marília, onde chegou no dia 28 de outubro de 2014, Walmir serviu em varas de outras áreas – como criminal – e passou por comarcas como Piracicaba, Tatuí e Dracena.
“Na estrada quando ia para Dracena, passava por Marília e achava a cidade muito bonita”, disse o juiz ao confessar que desejava ser transferido para cá por este motivo – sonho que acabou realizado.
Covid-19
Durante sua entrevista ao MN, o magistrado deixou claro que não pode antecipar decisões nem fazer comentários detalhados sobre processos específicos em andamento, conforme dita a Lei Orgânica da Magistratura.
Mesmo assim, ele concordou em comentar brevemente sobre questões judiciais que estão em voga.
Como dito acima, Walmir sentenciou a Prefeitura de Marília a seguir o Estado nas regras de combate à pandemia.
No entanto, duas cidades da região conseguiram no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) direito à flexibilização das regras sobre fechamento físico de comércio e serviços não essenciais, ainda nas últimas semanas – mesmo que de forma temporária, até a criação do Plano São Paulo.
“Com relação à restrição de circulação, abertura do comércio, no âmbito do Estado, esse tema foi judicializado em quase todas as comarcas”, comentou o juiz.
“E de forma praticamente unânime, o que se decidiu é que o município tem que obedecer os critérios do Estado. As decisões do município são suplementares, então o município só pode criar regras ainda mais restritivas”, detalhou.
De acordo com ele, esse é o entendimento majoritário na Justiça paulista e “não só do TJ (Tribunal de Justiça), como do STF (Supremo Tribunal Federal)”.
Sobre Tupã e Bastos – em que um desembargador autorizou a reabertura de estabelecimentos antes do Estado – Walmir classificou os casos com “isolados”. Mas o magistrado deixou claro que não teve acesso à fundamentação jurídica que embasou as decisões. Ontem, no entanto, Marília conseguiu vitória parecida após apreciação do desembargador Jabob Valente.
“O que se entendeu, ou o que vem se entendendo, é que o município não pode flexibilizar essa questão de abertura de comércio em desconformidade com o decreto estadual”, reafirmou o juiz.
Para ele, as decisões divergentes, talvez representem “a beleza do Direito” que, como lembrou, “não é uma ciência exata, mas uma ciência humana”.
“Quando o juiz dá a sentença ele utiliza os elementos jurídicos, mas também se vale de seus valores, sua bagagem cultural”, disse Walmir.
O juiz da Vara da Fazenda Pública utilizou a analogia com o árbitro de futebol para comentar sobre “a perplexidade” com que a população encara decisões divergentes.
“Quando um jogador encosta a mão na bola dentro da área, por mais que exista uma norma, tem árbitro que vai apontar pênalti e tem aquele que vai dizer que não foi. Mesmo hoje com o VAR, se marcou pênalti, ele pode ver melhor e mudar de ideia”, exemplificou.
O magistrado lembrou ainda a origem etimológica da palavra “sentença”. “Vem do latim sententia, de ‘sentir’, ‘sentimento’”, comentou.
Improbidade
Algumas das principais decisões da Vara da Fazenda Pública de Marília no âmbito político envolvem processos de improbidade administrativa, dano ao erário e outros assuntos que se relacionam com a má lida na coisa pública.
Sentenças condenando gestores públicos por descumprimento à lei são frequentemente assinadas por Walmir. Recentemente algumas delas saíram praticamente em sequência, envolvendo dispensas de licitação na Secretaria da Cultura de Marília.
Nelas foram condenados tanto os atuais prefeito e secretário da Cultura, quanto os ocupantes dos mesmos postos na gestão passada. A prática irregular, como se vê, perpassa os governos.
A equipe do MN questionou Walmir se haveria algum cuidado especial com esse tipo de caso ou mesmo se as decisões – por envolverem casos similares – receberiam um ritmo parecido, com o objetivo de mostrar que a Justiça vale para todos, independente da coloração partidária.
O magistrado negou a existência de qualquer encaminhamento nesse sentido – “ou preferência pessoal, por esse ou aquele governo” – e lembrou que as ações de improbidade administrativa tramitam de forma mais célere do que outros processos, por determinação do Tribunal de Justiça.
“O Tribunal, através de orientações da nossa própria Corregedoria e de diretrizes para as Varas da Fazenda Pública, determina que seja dada prioridade às ações de improbidade”, explicou. “Tem que seguir uma ordem cronológica de feitos na hora de sentenciar, mas dentro dessa ordem cronológica, temos que dar prioridade para alguns processos”.
Walmir destacou que os juízes são submetidos a concurso público, sem qualquer vinculação política.
“Eu vim para Marília e não conhecia ninguém”, afirmou. “Quando da minha promoção para Marília, não houve contribuição, indicação, sugestão de nenhum político. Foi feito de acordo com critérios objetivos. Isso me dá certa tranquilidade na hora de julgar”.
Walmir explicou que busca ter uma relação institucional com o chefe do Executivo e também com vereadores e presidente da Câmara, assim como nas gestões anteriores.
Mas deixou claro que “isso não influencia em nada”. “Em algumas ações o município tem razão e se for o caso, é ganho de causa. Se não tiver razão, não vai ter êxito”.
“Nós, juízes, não somos perfeitos, mas algumas das coisas que buscamos são a garantia da impessoalidade e a segurança jurídica. Esses são alguns dos nossos nortes”, declarou.
Walmir disse ainda que o fato de terem saído algumas sentenças de improbidade na mesma época que outras pode ter sido mera coincidência e lembrou que o Judiciário não toma iniciativa de processar ninguém.
Quem propõe ações desse tipo é o Ministério Público e as ações citadas acima – envolvendo a pasta da Cultura – foram apresentadas em sequência pela promotoria, que investigou de um vez diversos casos parecidos.
“A partir do momento que se judicializa a questão, tem que ter reposta. E são muitas ações de improbidade. Não é incomum que haja mais de uma na mesma semana”, apontou.
Principais ações
Na Vara da Fazenda Pública de Marília tramitam acima de 60 mil processos e demais procedimentos jurídicos, sendo que mais de 50 mil envolvem execuções fiscais. Processos civis são 6,2 mil e do juizado especial são 3,4 mil feitos.
A grande maioria dos processos, portanto, envolve cobranças de débitos entre cidadãos e empresas e o poder público.
A maior demanda, segundo o juiz, é de ações da Prefeitura e, mais especificamente, de cobranças do Departamento de Água e Esgoto de Marília (Daem).
“Tem uma explicação prática para haver mais ações do município do que do Estado. A Fazenda Pública do Estado racionalizou há bastante tempo a questão das execuções fiscais”, comentou o juiz.
Ele disse que a judicialização gera custos inclusive para os autores das ações, além de levar mais tempo do que outras formas de composição – ou seja, outros modos de se resolver o litígio.
“Na execução fiscal, pode haver penhora de bens do devedor, possibilidade de leilão, que as vezes se realiza e em outras não tem licitante, pode haver questionamento na avaliação do valor do imóvel. São fatores que retardam o desfecho e isso gera custo”, especificou o juiz.
De acordo com ele, há algum tempo o Estado padronizou o protesto da certidão de dívida ativa, procedimento que tem previsão legal. “O que acontece se alguém deve? O Estado apresenta a certidão em cartório de protesto antes mesmo da execução fiscal”.
De acordo com o magistrado, a medida “costuma resolver quase a totalidade dos casos, já que ninguém quer ter o nome protestado”.
Walmir explica que tanto o Daem, quanto o município, relutaram muito em adotar a mesma medida e só recentemente os entes passaram a fazer o protesto antes da judicialização.
Controle social
Também foi tema da entrevista a importância do controle social do poder público desempenhado pela sociedade civil organizada e pela imprensa.
O magistrado exaltou, por exemplo, o papel assumido pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Marília Transparente (Matra).
“Para minha felicidade, como morador de Marília, essa fiscalização da Matra atravessa as gestões. Vinha fiscalizando bastante e continua”, comentou.
Não são poucas as ações que tramitam na Vara da Fazenda iniciadas após denúncias feitas pela entidade, que também serve como “amicus curiae” ou “amigo da corte” em algumas ações – ou seja, o terceiro que auxilia no fornecimento de provas e pareceres.
“Tive a oportunidade de conhecer os representantes da Matra e parabenizá-los. Como uma Oscip, a Matra tem contribuído muito”, declarou.
Walmir também destacou o que a “liberdade de imprensa é fundamental paro estado democrático de direito e esse controle que a Matra exerce, é um controle que também é exercido pela imprensa, todos os meios de comunicação”.
No entanto, ele ponderou que já teve problemas com distorções de sua fala por jornalistas e avaliou que “nem sempre a imprensa é bem intencionada, tem bons e maus profissionais, como em todas as áreas”.
Por isso, o juiz disse entender o motivo pelo qual alguns de seus colegas juízes preferem não dar entrevistas. “Às vezes acaba saindo enviesado, de uma forma que venda mais, mas até para isso existem mecanismos do Direito para corrigir”.
E concluiu repetindo que “sem imprensa livre não se pode nem falar em estado democrático de direito”, bem como garantiu que está aberto aos jornalistas. “Até por isso, aceitei dar esta entrevista”.