Inteligência artificial vira arma na luta do coronavírus
Enquanto autoridades, médicos e trabalhadores de saúde de todo o mundo estão na linha de frente no combate à pandemia do novo coronavírus, pesquisadores, cientistas e empresas de tecnologia tentam acelerar e popularizar a aplicação de inteligência artificial (IA) para lutar contra a covid-19. Em anos recentes, a tecnologia foi propagandeada como uma das ferramentas essenciais da medicina do futuro. Agora, com um enorme desafio pela frente, a área tem a chance de provar de pode ser uma arma fundamental no presente.
Foram algoritmos que detectaram, em dezembro de 2019, o surgimento de uma nova forma de doença respiratória na região de um mercado em Wuhan, na China. A empresa canadense BlueDot fez um alerta em 31 de dezembro, nove dias antes do primeiro comunicado oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS). A BlueDot desenvolve um algoritmo que varre milhares de fontes de dados, de documentos de autoridades a publicações médicas a relatórios de condições climáticas, em busca de informações sobre doenças e sua capacidade proliferação.
A técnica, chamada de processamento de linguagem natural (NLP), faz com que a máquina identifique e compreenda texto, o que é poderoso para análise de muitas fontes de informação. Mais importante: essa mesma técnica está sendo aplicada agora para encontrar os melhores métodos de tratamento e possíveis fontes de cura para o coronavírus.
Na semana passada, a Casa Branca, em parceria com a Microsoft e o Google, lançou um desafio para a análise de 29 mil artigos médicos. “A IA é fundamental para a educação médica, ao compilar e selecionar a literatura mais importante. É impossível para um médico humano acompanhar tudo o que é publicado”, explica o radiologista Gustavo Meirelles, membro do Advanced Institute for Artificial Intelligence (AI²), e gestor médico de Inovação do Grupo Fleury.
Ao garimpar tantos estudos, a IA pode indicar os melhores caminhos para combater e tratar a doença. Nos EUA, por exemplo, o Summit da IBM, mais potente supercomputador do mundo, fez milhares de simulações e afirma ter encontrado 77 compostos com potencial para combater o vírus da doença. Outras iniciativas do tipo envolvem universidades americanas e até a Petrobrás, que anunciou nesta semana ter direcionado parte da capacidade de processamento de dois dos seus supercomputadores para pesquisas científicas em parceria com a Universidade Stanford (EUA).
Diagnóstico
Com o crescimento dos casos de doenças e gente se acumulando nos hospitais, porém, a análise de informações e predição de resultados se tornam cruciais para decisões ainda mais urgentes. Hoje, a inteligência artificial consegue ajudar na triagem, no diagnóstico e na gestão de recursos, como leitos de UTI.
Um consórcio entre hospitais, grupos de saúde e empresas de tecnologia, que inclui o Hospital das Clínicas (HC), de São Paulo, está testando um algoritmo de análise de imagens de tomografia realizadas em pulmões para tentar diagnosticar a doença. Lá fora, esse tipo de expediente já é utilizado para diagnosticar até mesmo câncer de pulmão a partir da análise de imagens.
“A covid-19 deixa o pulmão com aspecto de vidro fosco”, explica Gustavo Araújo, cofundador da empresa de inovação Distrito, que é parceira do HC em um hub dedicado a startups de saúde. “Pela falta de testes no Brasil, a análise de tomografia pode ser uma opção para um diagnóstico correto, se estiver ligada a sintomas do coronavírus, como tosse seca e febre.”
Segundo Araújo, o algoritmo deve estar pronto em no máximo 30 dias e poderá ser utilizado por qualquer estabelecimento de saúde. “Desenvolver um algoritmo custa caro, mas aplicá-lo é algo acessível. Basta ter uma conexão de internet”, explica o médico Guilherme Salgado, presidente executivo da 3778, startup de IA especializada em saúde.
A iniciativa do HC está longe de ser a única da área: no último dia 16, foi formado também um grupo de 450 radiologistas brasileiros de instituições públicas e privadas para trocas de informações que possam avançar o uso de IA no contexto de coronavírus. Na China, a gigante Alibaba diz ter desenvolvido um algoritmo do tipo que consegue identificar em 20 segundos a presença do novo coronavírus em exames de imagem do pulmão, com índice de acerto de 96%.
Recursos
Não são apenas diagnósticos: a IA consegue predizer a gravidade de casos, o que permite administrar melhor os recursos do sistema de saúde. Pacientes com potencial de escalarem para casos graves poderão receber tratamento intensivo imediato, mesmo que isso não seja aparente num primeiro momento.
O Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (Labdaps) da Universidade de São Paulo (USP) já tem algoritmos que conseguem predizer a mortalidade de idosos em condições específicas, conforme estudo publicado no ano passado. Agora os 20 pesquisadores do Labdaps estão de plantão trabalhando para receber dados e conseguir adaptar o sistema ao contexto do novo coronavírus.
Não é mágica: a IA pode analisar diferentes fatores para dar estimativas de gravidades de casos e propor tratamentos personalizados. As correlações podem passar longe do óbvio – afinal, o sistema calcula as probabilidades a partir do que aprende e enxerga como ‘casos similares’. Ter outras doenças ou histórico de atleta são fatores simplistas demais aos olhos da máquina. “O algoritmo consegue tomar decisões complexas, que envolvem muitos fatores e interações de variáveis complexas. A máquina entende todas as nuances”, explica Alexandre Chiavegatto Filho, diretor do Labdaps. (leia entrevista abaixo).
O Hospital Albert Einstein, em São Paulo, está usando o IA para prever quantos pacientes com covid-19 precisarão de leitos. “Estamos pesquisando uma maneira de usar IA para detectar os casos que possam vir a piorar”, diz Sidney Klajner, presidente do Hospital.
“Uma série de parâmetros, como idade, histórico clínico, condição de saúde atual e local de residência, pode ser utilizada para estimar a probabilidade de determinado paciente necessitar de um leito para cumprir o tratamento contra o vírus e determinar também se há chances de uma piora em seu quadro clínico”, explica. Com base em dados de outros países, o hospital usou algoritmos para projetar até a quantidade necessária de luvas e álcool-gel, além de respiradores.
Desafio
Se o combate ao coronavírus por si só já é uma corrida contra o tempo, outro fator entra como obstáculo no uso da inteligência artificial como ‘remédio’ para a doença: a quantidade de dados. Para um algoritmo funcionar bem, ele precisa do maior número de informações possíveis – e, se possível, que elas tenham algum grau de padronização. “Precisamos de dados de qualidade. Os algoritmos aprendem com exemplos a tomar as melhores decisões”, diz Chiavegatto.
“Os dados são fundamentais, porque é a partir deles que é possível entender o perfil dos casos atendidos e então projetar a demanda futura”, diz Klajner. “Para ter dados com a qualidade, a granularidade e a frequência necessárias é preciso investir em duas frentes: na implantação de um prontuário eletrônico adequado para o registro de todas as informações relacionadas ao paciente e seu tratamento, e na cultura de registro adequado destes dados pelas equipes médica e assistencial”.
Mesmo com o Brasil entrando numa onda posterior de infecções pelo Covid-19, dados e algoritmos desenvolvidos em outros países não podem ajudar o nosso sistema de saúde. Essas informações são referentes a populações e condições locais, que refletem características que nem sempre serão encontradas no Brasil – seja por conta da distribuição etária, das condições de vida e até mesmo a reação do vírus a diferentes tipos de clima.
“Estamos aguardando os dados do Brasil. Aqui, temos um bom histórico de dados médicos, mas eles estão fragmentados. Mesmo assim, acredito que vai dar tempo de gerarmos essas informações e colocarmos algoritmos em prática”, diz Chiavegatto, em uma demonstração de otimismo que contrasta com os relatos de que há casos de subnotificação relacionados à doença no País. Ele ressalta: “estamos abertos aos contatos de quaisquer instituições que queiram compartilhar informações.”