Gordofobia: cresce número de ações na Justiça
Embora ainda não exista estatística padronizada, o número de ações na Justiça com alegação de gordofobia vem crescendo nos tribunais brasileiros. A aversão a pessoas gordas se manifesta em vários ambientes: do trabalho à internet. E o aumento das discussões sobre o problema nas redes sociais tem feito com que mais pessoas se mobilizem para buscar reparação.
Só no Estado de São Paulo, foram quatro sentenças este ano em pedidos de indenização por dano moral apresentados por pessoas que se sentiram ofendidas por referências ao seu peso, segundo levantamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). No ano passado, foram três decisões e, em 2020, apenas duas. Dessas nove ações, sete foram julgadas procedentes, reconhecendo o direito das vítimas à indenização.
De acordo com juristas, a busca de reparação por danos morais por gordofobia é um fenômeno recente, tanto que ainda não há jurisprudência com esse termo no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Até agora são mais comuns os casos de assédio moral no ambiente de trabalho, tratados como questões trabalhistas.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) registrou aumento do número de ações de pessoas contra empresas por causa da gordofobia. Até a quarta-feira, 17, havia 1.414 processos tramitando na Corte, dos quais 328 deram entrada nos últimos dois anos.
A advogada Mariana Vieira de Oliveira, da Comissão de Direitos Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Espírito Santo e ativista contra a gordofobia, afirma que advogados e juízes vêm tratando a questão como “preconceito” ou “discriminação”.
“Quando a gente faz a pesquisa pela palavra gordofobia, aparecem poucos casos, porque os juízes não usam esse termo, mas a gente acompanha os processos e sabe que estão aumentando. Isso tem a ver com o boom dos direitos sociais e do feminismo, pois as mulheres estão à frente dessa tomada de consciência”, disse.
A gordofobia é definida como “repúdio ou aversão preconceituosa a pessoas gordas, que ocorre nas esferas afetiva, social e profissional”, segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Embora o termo seja um neologismo (palavra nova), o preconceito existe há muito tempo. Diariamente, pessoas obesas saem de casa e sabem que vão encontrar pela frente desafios no transporte público, escritórios, restaurantes e outros ambientes que não estão preparados para recebê-las. Sabem também que vão ser alvo de piadas, julgamentos e ouvir de muita gente que precisam emagrecer.
Foi o que aconteceu com a bacharel em Direito e ativista Rhayane Souza. Ela foi vítima de bullying na escola – foi criado até um grupo de WhatsApp para comentários sobre seu aspecto físico. Rhayane foi colega da advogada Mariana na faculdade de Direito e as duas se juntaram para combater a gordofobia, criando o movimento Gorda na Lei para compartilhar informações sobre os direitos da pessoa gorda.
“Sempre fui gordinha, não me recordo de não ter um corpo gordinho em toda minha vida. Sofri bullying inclusive na faculdade”, conta. “Em 2014, eu estava bem depressiva, autoestima bem balançada e meu pai viu que ia ter um concurso para eleger a gordinha mais bonita do Estado. Fui mais com a intenção de autoestima e fiquei em terceiro lugar.”
Foi quando Rhayane teve contato com o body positive, movimento pela aceitação do próprio corpo, e surgiu o interesse de descobrir por que a mulher com corpo gordo era tão estigmatizada “Quando entendi o que era gordofobia, entendi grande parte do que tinha acontecido na minha vida e me questionei sobre a ideia de ter uma espécie de proteção, que a gente não poderia ser desrespeitada por conta do peso. Aí surgiu a ideia do Gorda na Lei, convidei a Mariana, que já era advogada feminista e da luta por direitos sociais, e começamos a falar de gordofobia, a mostrar os direitos dessas pessoas.”
Grande parte do preconceito, ela afirma, vem do entendimento de que ser gorda não é ser saudável. “Isso não tem nada a ver, como não tem a ver dizer que é legal ser gordo. Não é legal, porque a pessoa gorda é negligenciada ao longo da vida, na rua, na vida social e principalmente no trabalho.”
Médica foi condenada a pagar R$ 10 mil
Em um dos casos de São Paulo, julgado no dia 20 de maio na 2ª Vara do Fórum Regional de Santo Amaro, a técnica de enfermagem D procurou a Justiça depois de ser ofendida moralmente por uma médica na unidade de saúde em que ambas trabalhavam. A vítima relatou que, por várias vezes, a médica impediu que ela usasse uma cadeira da área de atendimento, pois poderia “quebrá-la”. “Você é muito gorda, vai quebrar a cadeira de minha amiga. Já não disse para você pegar outra cadeira mais forte?”, afirmou a médica, segundo a sentença.
Em outra ocasião, ao ver a atendente sentada, ela afirmou: “coitadinha da cadeira”. Na defesa, a médica alegou que teve apenas cuidado e não intenção de ofender, mas a juíza Andrea Ayres Trigo entendeu que houve gordofobia e ela foi condenada a pagar R$ 10 mil à vítima. “E nem se fale que a ré apenas exerceu o seu direito de liberdade de expressão, visto que a liberdade de expressão se limita ao atingir a honra e a imagem da pessoa, devendo, assim, ser reconhecido o ato culposo da requerida, bem como o abalo moral sofrido pela requerente. Ressalte-se, ainda, que as ofensas ocorreram em ambiente de trabalho da autora, o que lhe gera mais angústia por ser local frequentado cotidianamente, passando a ser um ambiente hostil, por conta das atitudes da parte ré”, escreveu a juíza.
Direito sobre o próprio corpo
Apesar de o Brasil não ter uma lei específica para punir quem pratica a gordofobia, a Constituição brasileira prevê que ninguém pode sofrer discriminação por nenhuma característica ou atributo pessoal. O trabalhador que sofre qualquer tipo de preconceito no ambiente corporativo pode ter direito à indenização por assédio moral. “As primeiras ações judiciais foram na esfera trabalhista, pois isso acontece muito no ambiente de trabalho, como aquela cobrança de que a pessoa precisa emagrecer porque está muito lenta, muito preguiçosa. A partir daí houve a percepção de que aquilo pode ser um crime e que a pessoa pode ser punida por injúria e, também, de que é algo indenizável”, disse Mariana.
Para a advogada, graças ao ativismo, as pessoas estão passando a ter consciência do direito sobre o próprio corpo e de que as demais pessoas devem respeitar. O desafio, segundo ela, ainda é fazer as leis de inclusão serem cumpridas. “Os espaços públicos ou comerciais não estão preparados para receber bem esse corpo. A maca de um hospital é dimensionada para no máximo 110 quilos. Quando a pessoa gorda precisa de uma máquina de ressonância, como ela faz para entrar naquela abertura estreita?”
Com a universalização das redes sociais, segundo Mariana, a gordofobia ganhou uma nova dimensão. Em outubro de 2021, a bailarina e influenciadora Thais Carla venceu um processo judicial que moveu contra um humorista após sofrer gordofobia, abrindo caminho para outras ações semelhantes. As ofensas aconteceram e viralizaram em redes sociais. O caso foi julgado pela 8ª Vara Cível do Juizado Especial de Salvador e o humorista foi condenado a pagar R$ 5 mil por danos morais. “Entrei com a ação para inspirar, mesmo, muitas outras pessoas. Ninguém pode nos ofender livremente e achar que está tudo bem. Fiz isso não só por mim, mas por todas as pessoas gordas que sofrem ataques”, disse ela.
Decisão de juiz cita impacto na saúde mental
Em Franca, interior de São Paulo, o ex-vereador e jornalista José Corrêa Neves Júnior entrou com ação contra o engenheiro Ivom Rodrigues Pereira Júnior alegando ter sido ofendido por ele ao ser chamado pejorativamente de “gordo” e “gordão” em publicação em rede social que teve dezenas de visualizações, comentários e compartilhamentos. O juiz Humberto Rocha condenou o engenheiro a pagar indenização de R$ 20 mil a título de danos morais. A sentença, de 29 de abril deste ano, incluiu outras acusações que o juiz considerou caluniosas contra o ex-vereador
Na decisão, o juiz lembrou que o preconceito contra a obesidade compromete a saúde, dificulta o acesso de pessoas acima do peso ao mercado de trabalho e a tratamentos adequados, afeta suas relações sociais e, também, a saúde mental. “Os dados são de um periódico científico publicado em 2020 pela Nature Medicine, e assinado por mais de 100 instituições de todo o mundo, incluindo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), que divulgou a informação em seu site”, disse o juiz.
Ele acrescentou que, segundo artigo publicado pela SBCBM, estudos apontam que crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade, vítimas de bullying, são significativamente mais propensos a sofrer com ansiedade, baixa autoestima, estresse, isolamento, compulsão alimentar e depressão se comparados com adolescentes magros.
Ainda segundo o magistrado, os textos publicados pelo engenheiro na rede social utilizando-se das expressões “gordo” e “gordão”, tiveram o sentido de agredir o autor em sua esfera psíquica, tanto que ele usou caixa alta para escrita, dando destaque à ofensa ao jornalista, demonstrando sua vontade de ofender. “Enfim, os transtornos e sofrimentos experimentados pelo autor repercutiram diretamente em seu direito da personalidade, afetando sua dignidade e autoestima, donde surge para o requerido o dever de indenizar os danos morais suportados”, escreveu.
Ao Estadão, Neves Júnior disse que em seu trabalho de comunicador está acostumado com as críticas, mas o engenheiro extrapolou, partindo para ataques pessoais. “Ele podia me criticar à vontade, mas defendeu dar porrada em mim, pegar o ‘gordão’ e bater. Usou muitos termos gordofóbicos, como se ser gordo fosse um ato de vontade.” O jornalista lembrou que o episódio começou quando ele defendia pelos meios de comunicação as medidas de controle da pandemia de covid-19. “Ele nem entrou no mérito dessa questão, foi logo me agredindo verbalmente. As ofensas vieram sem nenhum contexto com o assunto.”
Para Neves Júnior, não há compreensão da sociedade com as pessoas gordas. “No mundo em que o padrão é de uma pessoa que mede 1,70 m e pesa de 60 a 70 quilos, quem está fora desse padrão sofre. Quando essa pessoa se esforça para caber em uma cadeira, dão risadas. É tudo difícil, comprar roupa numa loja normal, sentar em algum lugar, é tudo olhar de reprovação.”
Embora tenha perdido peso nos últimos anos, o jornalista afirma que nunca teve vergonha de ser gordo. “Não preciso me envergonhar do meu peso. Casei, tenho filhos, estou bem, mas vou processar quando me sentir ofendido. Ninguém é menos apto, menos decente e menos inteligente por ser gordo. Todo mundo tem de ser respeitado e ponto final.” Procurado pela reportagem, Pereira Junior não deu retorno. No processo, seu defensor negou a intenção de ofender o jornalista. A ação ainda não transitou em julgado, sendo, portanto, passível de recurso.
Estigma cultural
Autora do livro Lute Como Uma Gorda: Gordofobia, Resistências e Ativismos, resultado de sua tese de doutorado na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a pesquisadora Malu Jimenez considera a gordofobia um estigma estrutural e cultural que é transmitido em diversos espaços e contextos da sociedade contemporânea. “O prejulgamento acontece com a desvalorização, a humilhação, a inferiorização, ofensas e até restrições aos corpos gordos e a pessoas gordas de modo geral”, explicou.
A pesquisadora destacou que comportamentos gordofóbicos são atitudes que reforçam o preconceito, estereótipos que acabam culminando em situações degradantes e constrangedoras que marginalizam a pessoa gorda e a excluem socialmente. “Esses comportamentos acontecem na família, na escola, no trabalho, na mídia, nos consultórios, no hospital, na balada, em qualquer lugar da sociedade”, disse.
Ela lembra que 57% da população no Brasil está acima do peso, segundo dados de 2021 do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas. “É um grande erro acreditar que um corpo gordo não pode ser um corpo saudável. Isso só mostra o quanto a gordofobia está internalizada nas pessoas, seja quando acreditam que um corpo gordo não pode ser saudável ou quando acreditam que um corpo magro é saudável. Nem sempre é assim, inclusive, temos de questionar o que significa ser saudável em uma sociedade doente”, afirma a pesquisadora.
Para o advogado criminalista Matheus Herren Falivene, em algumas situações, chamar uma pessoa de gorda pode configurar crime. “Apesar de a gordofobia não configurar o crime de racismo por falta de disposição legal, eventuais condutas gordofóbicas podem configurar o crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal”, explicou.
Para a configuração do crime, afirma, é necessário demonstrar o dolo, a intenção do autor em ofender a vítima. “Quando restar configurado o crime ou até mesmo em outras situações em que, ainda que não tenha ocorrido o crime, a pessoa tenha tido sua honra ou sua imagem atingidas, será possível a reparação civil, por meio de uma ação de indenização por danos morais”, disse.
O jurista observou que houve aumento na demanda para propor essas ações. “Isso se deve a mais informação a respeito do tema e, também, porque só recentemente a gordofobia passou a ser considerada um tema relevante. Antes, na maioria das vezes, essas ações nem eram propostas ou, se eram, eram julgadas improcedentes sob a alegação de que haveria ‘animus jocandi’, que é vontade de fazer uma piada, brincar, e não de ofender.”
O advogado e professor de direito penal Yuri Carneiro Coelho explica que há um movimento para tipificar como crime a gordofobia, como houve com a homofobia, o racismo, a violência doméstica. “Há até um movimento para que se torne qualificado um crime de homicídio contra uma pessoa em razão da fobia por ela ser gorda”, diz. O advogado aponta, no entanto, que a criminalização da gordofobia deve ser o último recurso.
“Penso que, em um primeiro plano, podem ser criadas imposições ao poder público, para que faça campanhas contra esse tipo de ação e atue efetivamente conscientizando as pessoas de que elas não devem ser discriminadas por sua condição de estar acima do peso. Em um momento posterior, se isso não adiantar, aí sim, se justificaria a criminalização da gordofobia”, acrescentou.
Uma pesquisa da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) e da Sociedade Brasileira de Metabologia e Endocrinologia (SBEM) realizada entre os dias de 11 e 21 de fevereiro deste ano ouviu 3.621 pessoas, entre 18 e 82 anos de idade, acima do peso, sendo 75,4% com diagnóstico nutricional de obesidade (89% mulheres). Um total de 85,3% dos participantes relatou ter sofrido constrangimento por causa do seu peso. Quanto maior o grau de obesidade, mais comuns os relatos: quase 100% das pessoas com grau III de obesidade disseram ter sido vítimas.
Proteção legal
Reportagem publicada no The New York Times na edição de 27 de fevereiro deste ano, sob o título “Brasil, terra da tanga, abraça seu eu mais pesado”, coloca o País na vanguarda mundial em cuidar da proteção legal de pessoas acima do peso. O jornal apontou leis municipais aprovadas em cidades como Recife, onde foi criado o “Dia Municipal de Luta contra a Gordofobia” em setembro de 2021.
A lei criada no Recife assegura às pessoas gordas carteiras escolares adequadas aos seus biotipos corporais nas instituições de ensino básico e superior da cidade, seja de instituições públicas ou privadas, além garantir o ensino livre de discriminação ou práticas gordofóbicas.
Dois projetos de lei do senador Romário de Souza Faria (PL-RJ), em tramitação no Senado, abordam perspectivas de acessibilidade da população gorda. O PL nº 3461/2020 visa a proibir a cobrança adicional para pessoas obesas em transportes – algumas companhias aéreas cobram um adicional de 20% do valor da viagem de pessoas obesas – e em eventos culturais.
Já o PL nº 3526/2020 obriga hospitais e clínicas a disponibilizarem equipamento médico adequado para pessoas obesas Hoje não há nenhuma regulamentação nesse sentido, o que inviabiliza o atendimento de muitos pacientes, segundo Mariana.
Conforme a advogada, embora o Brasil ainda não tenha leis específicas contra a gordofobia, como nos casos de homofobia e feminicídio, os juízes têm utilizado leis de combate ao preconceito, ao crime de injúria e até o estatuto de proteção à pessoa com deficiência, no que tange à mobilidade, para a proteção da pessoa gorda.