Funai mantém posição de Bolsonaro e caso de ‘campo de concentração’ fica parado
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) agora durante o governo Lula (PT) mantém na Justiça uma posição jurídica da gestão Jair Bolsonaro (PL) que impede a etnia krenak de ter um desfecho na busca por reparação pelo caso de um reformatório em Minas Gerais durante a ditadura (1964-1985).
Apesar de haver desde 2021 uma decisão favorável, de caráter urgente, a Funai recorreu e conseguiu suspender a reparação na segunda instância, ainda no final do governo anterior.
Desde então, o tribunal não pautou a análise do mérito, e a fundação não informou um novo entendimento, mantendo o efeito suspensivo da medida.
Nesta terça-feira (2), a Comissão da Anistia concederá o primeiro julgamento de reparação coletiva da história do país aos krenak e aos guyraroká.
Lideranças krenak, por meio do Ministério Público Federal (MPF), pedem ainda ao colegiado que emita uma série de recomendações, dentre elas, a de que a Funai revogue o efeito suspensivo da apelação que fez no caso em Minas Gerais.
Procurada antes do julgamento desta terça, a fundação respondeu à Folha que a atual gestão não foi formalmente notificada de nenhum andamento no processo. Destacou também que já deu início ao processo de demarcação da Terra Indígena Krenak, uma das determinações da Justiça.
“Não houve, portanto, demanda formal do Poder Judiciário para nova manifestação da Funai no processo judicial, a ensejar a avaliação sobre o reposicionamento”, diz.
O desembargador do caso, André Prado de Vasconcelos, disse, por meio da assessoria do TRF-6 (Tribunal Regional Federal da 6ª Região), que o processo dos krenak está na posição 5.778 na ordem cronológica do acervo de cerca de 9.000 processos.
O magistrado disse ainda que fez despacho para que as partes dessem vista da última manifestação da União no caso o que foi feito, segundo ele, no dia em que respondeu à reportagem (18).
O Reformatório Krenak, também conhecido como Presídio Krenak, funcionou no interior de Minas Gerais de 1969 a 1972, onde o menos 94 indígenas de 15 etnias foram detidos, segundo documentos recuperados da época.
O local realizava tortura e trabalho forçado, e por isso foi chamado de “campo de concentração indígena” pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Com base nesse documento, o MPF de Minas Gerais entrou com uma ação por danos morais, em nome dos krenak, contra o estado, a União e a Funai. Em setembro de 2021, a Justiça Federal acatou o pedido e condenou os três por “graves violações de direitos aos povos indígenas”.
“As consequências de tal regime implantado pelo acusado se fizeram sentir muito fundo para os indígenas que estiveram presos no Reformatório Krenak, mas, de modo particular, para o povo krenak, que teve que receber essa aberração jurídica em suas terras e conviver diariamente com todas as atrocidades”, diz trecho da peça do MPF.
Todas as partes recorreram da decisão, mas a Funai foi a única que conseguiu emplacar efeito suspensivo no TRF-6, em outubro de 2022.
À época, o desembargador André Prado de Vasconcelos deferiu pedido de Funai ainda sob a gestão de Bolsonaro e disse que haveria “julgamento célere” do caso o que hoje, quase um ano e meio depois, ainda não ocorreu.
Se a fundação retirasse a ação suspensiva, poderia dar seguimento à reparação determinada pela Justiça em 2021.
O procurador do MPF que atua no caso, Edmundo Antônio Dias, fala em “contradição” da Funai, ainda que reconheça o avanço com a demarcação da TI.
“Considero uma contradição que, nesse momento de refundação, a Funai não tenha voluntariamente dado cumprimento à sentença que foi proferida em 2021”, disse à Folha o procurador, que atua em Minas Gerais na área de direitos de povos e comunidades tradicionais.
Ele afirmou ainda que, em junho do ano passado, esteve na Funai em Brasília junto a lideranças indígenas krenak para tentar destravar o processo e que representantes da fundação ficaram de analisar o caso.
A decisão da juíza de primeira instância determinava cinco pontos, dentre eles um pedido de desculpas público ao povo krenak, no prazo de seis meses, por parte da União, da Funai e do governo de Minas Gerais. Também falava em ações e iniciativas, por parte dos entes e do órgão, para o registro, a transmissão e o ensino da língua krenak.
Outra determinação foi a demarcação da Terra Indígena de Sete Salões (MG), em seis meses.
Nesse ponto, o governo Lula 3 deu seguimento. Em abril do ano passado, a Funai assinou o ato de identificação e delimitação da terra indígena krenak, na região do Rio Doce. Este foi um dos passos para a efetiva demarcação do território. Ainda faltam a declaração, a homologação e a regularização.
Dos pontos determinados pela juíza em 2021, ao menos um foi cumprido – o que mandava a União reunir e sistematizar toda a documentação relativa à violações de direitos no Reformatório Krenak e na transferência forçada à Fazenda Guarani, para onde os indígenas dessa etnia foram obrigados a se mudar.
Isso ocorreu também porque a Funai não era citada nessa determinação e, portanto, a medida suspensiva não alcançava a decisão.
Por fim, há a determinação da existência de relação jurídica entre Manoel dos Santos Pinheiro, mais conhecido como Capitão Pinheiro, e a União, a Funai e o governo de Minas Gerais. Segundo o MPF, ele foi o responsável pela prática de violações de direitos no reformatório, e depois na Fazenda Guarani.
O militar ficou em silêncio durante depoimento aos procuradores em 2015. Ele morreu em 2022.
O Ato Institucional Número 5 (AI-5) foi um marco no sistema repressor e punitivo da ditadura militar e ampliou a repressão contra indígenas, de forma coordenada.
“O Estado brasileiro criou, no final dos anos 1960, uma cadeia oficial em território krenak, exclusiva para a detenção de indígenas, sobre a qual colhemos denúncias de casos de morte por tortura no tronco, trabalho forçado e desaparecimento de prisioneiros”, diz trecho do relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014.
O reformatório foi construído em 1969 dentro da área indígena que pertencia à etnia, na região hoje do município de Resplendor, leste do estado, a 445 km de Belo Horizonte.
O local recebia também integrantes de tribos de outros estados. De acordo com a peça do MPF, entre janeiro de 1969 até a transferência dos indígenas do reformatório para a Fazenda Guarani, em dezembro de 1972, foram recebidos no mínimo 94 indígenas no local.
Eles eram confinados por motivos diversos e muitas vezes sem registro, de embriaguez a vadiagem, passando por “perturbação” das autoridades e manutenção de relações sexuais consideradas ilegítimas.