Fazenda determina regras para conter vício em bets e multa de até R$ 2 bi por infrações
A Fazenda definiu nesta quinta-feira (1º) as regras de “jogo responsável” para o mercado de apostas, com objetivo de mitigar vício e endividamento excessivo. A pasta definiu em outras duas portarias como será a fiscalização e as penalidades em caso de infração, que incluem multa de até R$ 2 bilhões.
As regras de jogo responsável tratam de dependência associada a jogos, violações do direito do consumidor, propaganda enganosa ou para menores de idade, recompensas para atrair clientes e marketing de afiliados -ramo da publicidade que, hoje, concentra o maior número de queixas no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e inunda as redes sociais com anúncios sobre apostas.
As regras dizem respeito a apostas online, englobando modalidades como o “jogo do tigrinho” e outros caça-níqueis virtuais, jogos de cartas, apostas esportivas, roleta e formatos semelhantes.
O site de apostas terá o dever de impedir o cadastro ou limitar o acesso a pessoas com diagnóstico comprovado por laudo médico de ludopatia (vício em jogos) ou que estejam impedidas de apostar por decisão administrativa ou judicial, em caso de notificação.
As bets receberão denúncias de dependência e “jogo patológico” por meio de uma ouvidoria que deverão manter para atender e orientar apostadores e familiares. Além disso, precisarão usar dados da navegação do usuário para identificar indícios de vício.
Cada pessoa poderá ter apenas um cadastro em cada site de apostas, para dificultar que alguém que esteja impedido drible o veto.
Bets deverão, ainda, emitir sinais de alerta para informar o jogador sobre os riscos de dependência, com critérios de periodicidade predeterminados na política da própria empresa. Essa política deverá ser aprovada por um certificador externo e estará sob fiscalização da SPA (Secretaria de Prêmios e Apostas).
Para o pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) Rodrigo Machado, que é especialistas em compulsões tecnológicas, os mecanismos de bloqueio para quem já está adoecido não bastam. “Hoje, a gente nem sequer sabe quantas pessoas dependentes existem no Brasil, não há dados públicos para traçar uma política de prevenção.”
O país, segundo Machado, vem de uma tradição de veto aos jogos de azar, e, por isso, nunca se preparou para enfrentar uma crise de saúde pública na área. “É uma situação complexa: as evidências científicas mostram que a liberação aumenta o adoecimento, mas, depois que está liberado, temos que trabalhar para minorar os riscos.”
“É de primeira ordem direcionar parte do dinheiro arrecadado para a formação de profissionais que possam atender essa população e, hoje, não há sequer mão de obra para isso”, diz o especialista.
O serviço do HC para pessoas com compulsão por jogos é um dos únicos centros especializados no Brasil e deveria receber somente pessoas em situações gravíssimas, por ser um ponto de atendimento terciário.
As medidas anunciadas na quarta ainda incluem a realização de campanhas educativas, adoção de limite de apostas de acordo com critérios de tempo, valor gasto ou quantidade de apostas e adoção de períodos de pausa.
A portaria proíbe publicidade que possa sugerir ganho fácil ou associe a ideia de sucesso às apostas, como afirmações de celebridades dizendo que o jogo contribuiu para a melhoria de suas condições financeiras. Regulamenta ainda os direitos e deveres de apostadores e das empresas responsáveis pelos jogos.
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, Andre Guelfi, foi uma boa surpresa a pontualidade da Fazenda no cumprimento da agenda regulatória, que definia a publicação de todas as portarias até julho. “Assim, estaremos prontos para começar o mercado regulado no próximo mês de janeiro.”
A saída do antigo secretário de Prêmios e Apostas José Francisco Mansur da pasta em fevereiro preocupou o setor. Como adiantou a coluna Mônica Bergamo, Mansur se tornou sócio em junho do escritório CSMV, que atende mais de 20 clubes de futebol, após a Comissão de Ética Pública da Presidência dispensar o advogado de cumprir quarentena.
O presidente do Instituto Jogo Legal, Magno José, avalia que as medidas da Fazenda darão fim, a partir de 2025, a um “mercado selvagem”. “Sem regulamentação, as bets destinaram o dinheiro que seria arrecadado pelo governo e destinaram à publicidade sem controle”. Para ele, o arcabouço regulatório elaborado pela Fazenda em seis meses protege o apostador.
PENALIDADES E FISCALIZAÇÃO
As casas de apostas terão responsabilidade jurídica pelo cumprimento das regras e estarão sob fiscalização da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda. Responderão legalmente também pela mensagem de seus afiliados -espécie de revendedores terceirizados da marca. No caso da publicidade, influenciadores que divulgarem as casas de apostas compartilharão da responsabilidade.
A SPA vai manter um canal para recebimento de denúncias sobre campanhas publicitárias que violem as regras de “jogo responsável”, notificará as marcas, que deverão retirar o conteúdo do ar.
A portaria de “regime sancionador” das apostas de quota fixa determina multas de R$ 50 a R$ 2 bilhões, sempre superiores a vantagem auferida pelo infrator.
O modelo de autuação por processo administrativo vai seguir o padrão de outros órgãos reguladores: notificação, resposta, decisão, recurso e decisão final. As multas serão encaminhadas ao Tesouro Nacional.
A SPA, eleita em portaria como ente regulador do mercado de apostas de quota fixa, terá ainda o poder de cassar ou suspender a licença dos sites de apostas.
Na fiscalização, a secretaria poderá atuar junto com as polícias estaduais, distrital e federal, e os Ministérios Públicos dos estados e da União, que deverão ser notificados em caso de indícios de delito.
A secretaria vai manter no Sistema de Gestão de Apostas (Sigap) dados das empresas autorizadas a atuar nesse mercado no país, com CNPJ e as marcas administradas por cada negócio. Divulgar bets não cadastradas também configurará infração passível de penalidade.
Todos os sites registrados terão de estar sob o domínio “.bet.br”. A secretaria responsável irá bloquear, a partir de 2025, domínios de plataformas de apostas que não estiverem registradas no Brasil, proibir que os sites não cadastrados façam publicidade e atuar junto ao Banco Central para impedir a saída de recursos financeiros de bets irregulares. Essa última medida visa evitar lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
A Fazenda espera que as medidas de transparência ajudem o usuário a separar os sites de aposta em situação regular das plataformas de aposta fraudulentas de jogos online como versões adulteradas do “tigrinho”, hoje sob investigação por acusações de estelionato, pirâmide financeira e lavagem de dinheiro em estados como São Paulo, Goiás, Maranhão e Alagoas.
Até o momento, cinco empresas se registraram no Sigap e oficializaram o interesse de participar do mercado regulado. São elas: Kaizen (responsável pela marca Betano), SPRBTBR, MMD Tecnologia (por trás do site Rei do Pitaco), Ventmear LTDA e Big Brazil Tecnlogia e Loteria (vai representar a marca Caesars Sportsbook).
Como grande parte dessas empresas ainda não está registrada, a Receita Federal ainda não tem um registro de quantas bets atuam no país. Essas plataformas atuam sob o modelo “white label”, em que uma marca responde pela relação comercial com o cliente, mas todo o serviço é terceirizado -o que facilita a proliferação dessas casas de apostas online.
Entre os direitos do apostador estão não ser coagido, ter acesso ao SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor) e ao histórico de sua movimentação financeira, além de encerrar com facilidade a conta no sistema de apostas.
O apostador ainda deverá ter acesso a mecanismos para se afastar das apostas por tempo determinado, similar a interrupção de notificações em redes sociais.
O Ministério da Fazenda já havia publicado a regulamentação dos jogos de apostas online, englobando modalidades virtuais como o “jogo do tigrinho” e outros caça-níqueis virtuais, jogos de cartas, roleta e formatos semelhantes.
A portaria anunciada na quarta-feira (31) encerrou a incerteza sobre a legalidade de caça-níqueis online, ao detalhar como devem funcionar os chamados jogos de slots, como o Fortune Tiger e o Fortune Dragon. Esses sites eram mencionados em um jabuti na lei que regularizou as bets no país, em que não havia permissão explícita, segundo advogados ouvidos pela reportagem.
COMO BUSCAR AJUDA
Jogadores Anônimos do Brasil
Encontros para compartilhar experiências e ajudar outras pessoas a se recuperar de problemas de jogo. Há cidades que realizam reuniões semanais regulares
jogadoresanonimos.com.br
PRO-AMJO
Serviço do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP é voltado para estudar e tratar pacientes com transtorno do jogo
www.proamiti.com.br/transtornodojogo
(11) 2661-7805
Serviços de saúde
Procure uma UBS (Unidade Básica de Saúde) ou Caps (Centros de Atenção Psicossocial) mais próximos de sua residência para encaminhamento psicológico
VEJA AS REGRAS DE JOGO RESPONSÁVEL
Os objetivos das regras de jogo responsável são:
- Prevenir a dependência e transtornos do jogo patológico
- Garantir a proibição de apostas por crianças e adolescentes
Isso será feito por meio de: - Campanhas educativas direcionadas a diferentes públicos
- Alertas periódicos do risco de vício
- Transparência nas taxas de retorno de cada jogo
- Oferta de mecanismos de limite de aposta por tempo ou de bloqueio de acesso programado a plataforma
- Monitoramento de comportamento possivelmente nocivo de jogadores
- Solicitação de autoexclusão da plataforma
- Suspensão do uso do sistema de apostas pelos apostadores em risco alto de dependência
- Proibição de parcerias ou convênios para facilitar acesso a crédito por parte do apostador
- Manter ouvidorias para familiares e apostadores
O site de apostas deve vedar acesso ao jogo a: - Menores de 18 anos
- Proprietários, administradores, diretores ou pessoas com influência significativa sobre a bet
- Agente público ligado a regulação de apostas
- Pessoa com informações privilegiadas ou que tenha influência real sobre o evento que é tema da aposta (no caso do esporte, por exemplo, isso envolve jogadores, técnicos, dirigentes e árbitros)
- Pessoa diagnosticada com ludopatia por laudo médico
- Pessoas impedidas de apostar por decisão judicial ou administrativa
REGRAS DE PROPAGANDA E MARKETING
Toda publicidade sobre aposta deverá seguir as normas de jogo responsável e adotar linguagem clara, que destaque a proteção dos menores de idade.
O uso da palavra “grátis” fica permitido apenas quando não houve chance de prejuízo para o apostador.
Ficam proibidos anúncios que:
- Sugiram obtenção de lucro fácil ou associem a ideia de aptidão a apostas
- Apresentem a aposta como socialmente atraente ou contenham afirmações de personalidades conhecidas ou de celebridades nesse sentido
- Encorajem práticas excessivas de apostas
- Contenham frases convocatórias como “aposte agora”
- Apresentem a aposta como prioridade na vida
- Estabeleçam elo entre aposta e sucesso pessoal ou financeiro
- Vinculem apostas a comportamentos ilegais ou discriminatórios
- Contenham informação falsa ou enganosa
- Liguem apostas a locais de atendimento médico, psicológico, destinos frequentes de menores de idade ou instituições de ensino
- Veiculem afirmações enganosas sobre a chance de ganhar
- Promovam apostas como meio para recuperar os valores perdidos
- Ofendam tradições culturais ou religiosas contrárias à aposta
- Apresentem a aposta como alternativa ao emprego ou forma de investimento
- Circulem em programas ou meios, cujo o públicos-alvo seja crianças e adolescentes
- Utilizem imagens de crianças e adolescentes ou elementos apelativos para menores de idade
- Usem mensagens de cunho sexual ou parta da objetificação de atributos físicos
Os materiais publicitários serão obrigados a: - Exibir cláusulas de advertência de restrição etária, com o símbolo “18+”
- Advertir sobre o risco de dependência e transtornos de jogo patológico
Essas cláusulas também devem constar em bilhetes impressos, sites, aplicativos e até em disparos em aplicativos de mensagem como WhatsApp feitos por afiliados de bets.
As bets e plataformas de apostas não cadastradas no Ministério da Fazenda ficam proibidas de divulgar publicidade.
Após notificação de irregularidade pela SPA: - Empresas que ofereçam serviço de publicidade na internet, como as redes sociais, terão de excluir anúncios
- Provedores de internet deverão bloquear sites ou excluir aplicativos
- Lojas de aplicativos como Play Store e App Store também terão de excluir aplicativos de sua lista de ofertas
A SPA manterá um canal para receber denúncias dos cidadãos. - REGRAS PARA PROMOÇÕES
Quem opera jogos de apostas tem permissão dar prêmios e recompensas para quem joga, desde que se adeque aos critério abaixo.
As regras para ganhar esses prêmios precisam ser detalhadas e citadas nos termos e condições do jogo.
Fica vedado: - Demandar que pessoa gaste dinheiro para ganhar um prêmio
- Dar adiantamentos ou bônus antes da aposta ser registrada, mesmo se for só para promover o jogo
- Exigir que a pessoa deposite mais dinheiro para receber um prêmio
Tudo isso deve ser registrado pelo operador do jogo, para futuras prestações de conta.
Sorteios de prêmios terão de estar adequados a lei 5.768 de 1971.
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POR PEDRO S. TEIXEIRA